Rozario morreu e com ele uma língua inteira
As línguas são como a vida. Nascem, crescem e morrem. Há uma ecologia para elas, se não quisermos que as variadas paisagens linguísticas desapareçam a um ritmo superior ao da extinção dos seres vivos. O último falante de português crioulo de Cochim morreu. O idioma foi com ele. Por Francisca Gorjão Henriques
Neste mesmo segundo uma língua pode ter acabado de morrer. E se assim for, dizem as estatísticas que daqui a duas semanas morrerá outra. Mais de 50 por cento de todas as línguas do mundo correm perigo de vida. Os crioulos portugueses não são excepção. Quando o coração de 87 anos de William Rozario deixou de bater, na cidade indiana de Cochim, calou-se também um idioma que já só ele falava.
O linguista Hugo Cardoso conheceu William Rozario em 2007 e não teve dúvidas de que aquele homem guardava um tesouro. Rozario era uma herança viva e rara. Cresceu em Wayanad, no estado de Kerala, no Sul, mas parte da sua família era proveniente de Cochim, a principal cidade do estado. Cresceu a ouvir crioulo, aquilo que se falava em casa. Décadas depois, é possível que alguns indianos reconhecessem a língua se a ouvissem na rua. Mas quando morreu, em Agosto, Rozario era já a única pessoa no mundo que a dominava.
Não a passou para os filhos - "quando nasceram já estava em desuso", diz o investigador da Universidade de Macau - e a mulher nunca a aprendeu. "Seria difícil usar como língua de casa."
Como todos os crioulos, o de Cochim nasce de um encontro: o do português com o malaiala, entre outros idiomas que circulavam naquela cidade cosmopolita do século XV. Quando os portugueses descobriram o caminho marítimo para a Índia estabeleceram-se ali antes de qualquer outro lugar do Sul Asiático. Daí que se admita que o crioulo indo-português tem em Cochim a sua origem. Também se coloca a hipótese de terem partido daqui os outros crioulos da região: Diu, Damão, Korlai e Cananor; e na Ásia há ainda o de Sri Lanka - se não tiver morrido durante a guerra civil com os tâmiles - Malaca e Macau.
"Todos estão ameaçados", alerta Hugo Cardoso. "Quando as comunidades são pequenas basta um desastre, um tsunami, para ditar o fim de uma língua."
O crioulo português de Damão, Diu e Korlai ainda vai passando para as gerações seguintes no contexto familiar. "É uma questão de identidade e de afecto. É falado por católicos, que estão assim a marcar uma diferença e a declarar uma espécie de aliança cultural às coisas que são portuguesas." Começa com a religião, mas passa também pelo vestuário ou gastronomia, ou seja, pelas várias peças com que se constrói a identidade.
Naquele primeiro encontro de 2007, o investigador viu em Rozario uma língua quase desconhecida e à beira da extinção; Rozario, alguém que falava português, uma espécie de berço ancestral. Foi um encontro feliz, mas um não entendeu o outro. Mesmo quando o léxico tem pontos comuns, a pronúncia faz dele algo totalmente desconhecido ou apenas vagamente familiar.
"A primeira entrevista foi difícil. Ouvi a gravação, depois, e comecei a habituar-me." Conseguiu decifrar alguns aspectos e perceber coisas como esta: tal como muitos crioulos asiáticos, este não obedecia à ordem (quase) universal sintáctica entre as línguas crioulas de sujeito-verbo-objecto, mas antes de sujeito-objecto-verbo. E tal como o crioulo de Diu, o de Cochim também apresenta diferenças morfológicas em relação ao português, excluindo, por exemplo, as desinências pessoais: eu vai, tu vai, ele vai, nós vai, vós vai, eles vai.
"Por um lado há simplificações, mas para a mensagem passar é preciso recorrer a mais contexto. É um tipo de complexidade diferente", explica.
O Atlas das Línguas em Risco da Unicef diz que há 6000 línguas em todo o mundo, mas 97 por cento da população fala apenas quatro por cento das línguas; 90 por cento dos idiomas não estão representados na Internet. Cerca de 2500 correm perigo de vida e, entre estas, 199 têm menos de dez falantes. Algumas previsões pessimistas apontam para a extinção de 90 por cento das línguas em 2100.
Os locais com maior diversidade linguística são geralmente os mais ameaçados de extinção. Mas a regra tem excepções. Não há outra região com tanta diversidade como a Papua Nova Guiné - onde se falam mais de 800 línguas e apenas 88 estão em risco.
"Justifica-se classificar os crioulos como línguas autónomas porque, se fizermos os cálculos das influências, nem tudo vem do português", realça Hugo Cardoso. E o facto de serem línguas parece garantir alguma protecção: pode haver a tentação de submeter um dialecto à norma padrão da língua, ao português falado em Portugal. Seria a sua extinção.
De resto, a diferença entre língua e dialecto não é necessariamente linguística. Distinguir uma coisa e outra é muitas vezes um acto "sociocultural e político", adianta. Como na ex-Jugoslávia: "Os dialectos passaram a ser considerados línguas por decisão política", para sustentar a soberania dos novos Estados. Já na China se passa o inverso: "Os dialectos são tão diferentes que podiam ser considerados línguas de pleno direito, mas há um poder centralizado", que procura a homogeneidade e a coesão nacional.
Poupar uma língua
Por muito estimulante que possa ser para um linguista o confronto com uma raridade absoluta como o crioulo português de Cochim, "não há muito que se possa fazer" para o salvar da extinção, desabafa Hugo Cardoso. "O que se pode fazer é documentar." Para o ressuscitar (a palavra certa é revitalizar) terá de haver o interesse da comunidade. "Os macaenses estão a fazer isso [com o patuá] por uma questão de identidade, para recuperar as suas referências", diz.Para poupar uma língua da morte, ou trazê-la novamente à vida, é preciso levá-la para as escolas, meios de comunicação, serviços religiosos, "dar espaço para que ela seja usada". Ou seja, reunir o empenho de uma comunidade, já que o interesse científico, por si só, não basta.
A vitalidade de uma língua minoritária depende de vários factores: do seu peso demográfico, mas também da sua utilização em domínios de uso mais alargado: tribunais, religião, ensino, aparelho e burocracia do Estado, meios de comunicação, literatura, enumera por email Isabel Tomás, do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa. Isto "requere a existência de uma ortografia oficial para línguas que foram (ou são ainda) quase exclusivamente orais".
Há vários casos em que a ressurreição foi possível, e outros onde se registou uma inversão do risco: aymara e quechua, no Peru; maori na Nova Zelândia, guarani no Paraguai...
Quando uma língua está exangue, pode não restar outro remédio senão assistir à sua morte. "Para mim, é uma verdadeira tragédia", diz o investigador, referindo-se à herança que Rozario levou consigo. Não é só por perder-se um objecto de estudo, "mas, sobretudo, porque vejo desaparecer o produto de um período histórico que, para o bem ou para o mal, mudou não apenas o Sul da Ásia mas também a ordem mundial. Para além disso, esta foi a língua materna de famílias inteiras em Cochim durante quase cinco séculos".
Normalmente, quando se extingue uma língua extinguem-se outras coisas com ela, salienta o investigador: "Os processos sociais que a fizeram desaparecer são os mesmos que vão levando ao desaparecimento das tradições, cultura e conhecimento cumulativo da comunidade que a falava."
O ciclo de vida
As línguas nunca estiveram livres de um certo ciclo de vida. "O fenómeno da extinção das línguas não é um fenómeno contemporâneo, pelo contrário", diz Isabel Tomás. "O que é preocupante na contemporaneidade é o ritmo quase alucinante a que a extinção de línguas se dá."Nos Estados Unidos, por exemplo, nos últimos cinco séculos extinguiram-se 115 línguas, como a eyak, falada no Alasca, que desapareceu em 2008 com a morte de Marie Smith Jones.
Há vários factores que explicam este "ritmo alucinante". O discurso nacionalista, que ganhou fôlego a partir do século XIX, "apoia-se na ideia da homogeneidade e da necessidade de haver uma língua nacional. Começa a dar mais atenção à norma padrão", adianta Hugo Cardoso. Ficam de fora as excepções.
"A minha impressão é que na Índia esta é uma tendência recente. O normal era falar duas, três, quatro línguas. Agora, a par de um punhado de línguas regionais mais estabelecidas, há duas dominantes: o inglês (no caso das classes mais altas) e o hindi, para criar uma coesão nacional."
Para além disso, dá-se o facto de algumas línguas serem "economicamente mais apetecíveis" do que outras, continua o investigador. Como o inglês no contexto indiano: oferece mais possibilidades de futuro e por isso há uma preferência por escolas anglófonas.
"A única força que pode parar o caminho para a extinção é a vontade colectiva dos seus falantes", acrescenta Isabel Tomás. Mas cabe-nos a todos ter a noção de que "a solução está no bilinguismo ou mesmo no multilinguismo generalizado. Sem essa consciência, as paisagens linguísticas em que existimos, a ecologia linguística de um mundo cada vez mais global, determinarão inevitavelmente a morte de línguas a um ritmo superior mesmo ao da extinção de seres vivos".
Nem todos os idiomas morrem da mesma maneira. "Poderemos falar em três tipos de morte", continua Isabel Tomás: "Morte súbita, com o desaparecimento catastrófico de todos os seus falantes", como acontece com um genocídio; "morte radical, em que a perda da língua é também rápida, em geral provocada por repressão severa exercida por um poder político exterior à comunidade"; ou ainda a "morte gradual, quando os seus falantes se deslocam para o uso de uma língua dominante, com maior prestígio e valor de mercado".
Neste último caso - o mais frequente -, a língua deixa de ser transmitida às gerações mais novas. Os linguistas afirmam que uma língua só resiste se for falada por mais de 100 mil pessoas e está em perigo quando mais de 30 por cento das crianças já não a usam.
Foi isto que aconteceu com o crioulo de Cochim. Mas para Isabel Tomás, o idioma não morreu com Rozario porque já estava morto há muito. "Uma língua que deixa de ser funcional já não está viva, a sua morte anunciada espera apenas pela certidão de óbito."