A meio do longínquo ano de 1890 era publicado em Copenhaga, com um repentino sucesso, um estranho romance intitulado "Fome" - a história de um homem que caminha esfomeado pela cidade, tentando escrever entre repetidos acessos de loucura -, da autoria de um norueguês de trinta anos que assinava Knut Hamsun. Até então ele era apenas conhecido nos círculos intelectuais dinamarqueses e noruegueses pelos seus artigos de jornal e conferências, onde mostrava alguma da sua ambição e uma veia irónica apurada. Hamsun enviou então exemplares do livro a críticos literários suecos, dinamarqueses e também americanos, e esclarecia, numa nota a acompanhar, que o romance não tratava dos problemas amorosos de um casal, ou de excursões ou de bailes - isto conta o biógrafo norueguês Ingar Sletten Kolloen, autor de "Knut Hamsun, Soñador y Conquistador" (edição espanhola publicada em 2009 por Nórdica Libros). O que realmente lhe interessava, dizia ele ainda nessa nota: "as infinitas mudanças da minha alma, a especial singularidade da minha vida interior e o mistério que encerra o sistema nervoso dentro de um corpo famélico. O livro é um instrumento que se toca voluntariamente com uma só corda tentando tirar cem tons diferentes dessa única corda." Ainda por essa altura, e a propósito desse seu primeiro romance a sério (houve antes duas "tentativas juvenis"), escreveu ao editor de uma revista: "não acredito que possa encontrar mais emoção intelectual, por exemplo em Raskolnikov [personagem central de 'Crime e Castigo', de Dostoievski] do que no meu livro."
De facto, poucos anos antes, Hamsun lera alguns escritores russos, mas sobretudo Dostoievski, o autor que deixava que as suas personagens se revoltassem contra a razão; e os livros deste parecem ter-lhe ensinado que um desequilíbrio mental pode ser uma das ferramentas mais valiosas para um escritor, e que as batalhas secretas em torno do orgulho, dos complexos de inferioridade e das contradições da vida interior, poderão originar uma grande obra de arte. A juntar a isto, há o facto de em Copenhaga ter privado com alguns jovens autores dinamarqueses que apontavam a psicologia do homem moderno e urbano como o principal motivo da criação literária futura; e assistira ainda, com admiração, à representação teatral de "A Menina Júlia", de Strindberg. Com tudo isto, o jovem Knut encontrara o seu caminho no mundo das letras: a literatura de feição psicológica; e a ele não lhe faltavam experiências (vividas por ele ou por familiares) onde ir buscar inspiração!
Mas quem era, e de onde vinha, este homem, de modos por vezes rudes e arrogantes, que irrompe como um cometa pelas letras europeias e que, passados 30 anos, receberia o Prémio Nobel da Literatura (1920), sendo reconhecido por alguns como "o pai da literatura moderna" e com influência assumida nas obras de Franz Kafka, Thomas Mann, Herman Hess, Henry Miller, entre outros, e mais recentemente também na de Paul Auster?
Pouca simpatia por padres e polícias
No começo do mês de Agosto de 1859, os camponeses do vale junto à montanha mais alta da Noruega, Galdøpiggen (bem no interior do país, onde os fiordes e a água do oceano não chegam), acendiam já as fogueiras durante a noite para que o fumo - como uma bruma protectora - evitasse as primeiras geadas nocturnas do frio Outono que se aproximava e destruísse as colheitas de cereais. O alfaiate Pedersen fazia o mesmo, pois trazia de renda umas terras de um cunhado que estava impossibilitado de as trabalhar, dizia-se, por ter "mercúrio no sangue e ser um insaciável bebedor de aguardente". Numa dessas noites claras povoadas de fogueiras por todo o vale, nasceu o quarto filho do alfaiate, a quem ele chamou Knud Pedersen (era este o nome daquele que anos depois viria a ser conhecido como Knut Hamsun). Menos de três anos passados, e motivada por falta de dinheiro, a família deixou as montanhas e foi instalar-se numa quinta, em Hamarøy, a norte do Círculo Polar.
A avó de Knut, que padecia de uma doença nervosa, morreu ao fim de quatro meses, o que veio agravar também o sistema nervoso da mãe, entretanto grávida pela sexta vez. Em Hamarøy nevava ainda em Abril, e havia anos em que a neve nunca chegava a derreter. As condições de vida eram extremas. A mãe do pequeno Knut passava a maior parte do tempo acamada, de olhar perdido, ou então saía de casa aos gritos, corria pelos montes e caminhos e emitia sons incompreensíveis. (Segundo o biógrafo, há múltiplas razões para acreditar que durante este período Hamsun ficaria marcado por este comportamento estranho, pois livros como "Fome" ou "Mistérios" mostram o seu interesse em alterações bruscas do ânimo.) Aos nove anos, Knut começa a frequentar a escola - a lei exigia que as autoridades mantivessem a escola aberta durante pelo menos nove semanas por ano, mas ali não havia condições para que ela estivesse aberta mais do que quatro. Aos doze anos começa a trabalhar com um tio, o que lhe permite conviver com os homens mais importantes do lugar: o médico, o polícia e o padre. A vida é dura, e ele aprende a odiar, a resistir, a nunca se vergar. Parece vir desse tempo a sua pouca simpatia por padres e polícias, que é evidente em alguns dos seus livros. Mas com quinze anos inicia uma viagem para Sul, estava agora fora da alçada do tio, e na mala levava um papel que certificava ter assistido à escola num total de 252 dias.
Nos anos que se seguiram, Knut Hamsun teve vários ofícios, foi aprendiz de sapateiro, moço de recados e trabalhou num armazém de peixe de um homem rico. Apaixonou-se pela filha deste, Laura, rapariga que irá aparecer descrita nos muitos livros que viria a escrever. A sua fascinação pela paradisíaca vida rural (esta é mais uma das suas muitas contradições, o fascínio idêntico pela ruralidade e pelo cosmopolitismo) surgiria como tema recorrente em vários romances, mas sobretudo em "Pan" (1894), onde se narra a vida de um caçador e os estados eróticos da natureza primaveril na região da Nordland. Em toda a sua obra, na criação das suas personagens, Hamsun parece querer justificar a frase de Miguel de Unamuno no ensaio "Como se escreve um romance": "Todas as criaturas são o seu criador".
Desde os quinze anos, Knut nunca parou de escrever, muitas vezes febrilmente (como a personagem de "Fome"); os seus textos foram muitas vezes rejeitados pelos mesmos editores que anos mais tarde o viriam a aclamar. Por duas vezes, antes de se tornar famoso, emigrou para os EUA - a colónia norueguesa era a segunda mais populosa, logo a seguir à irlandesa - trabalhou nas linhas de caminho de ferro e foi um desastrado condutor em Chicago. Mas voltava sempre à cidade que o rejeitava, Kristiania (a actual Oslo), onde passou fome e teve que empenhar pertences, sobretudo livros e roupas. O prémio Nobel chegou-lhe em 1920.
A primeira edição de um livro de Knut Hamsun em Portugal aconteceu em 1942 com a publicação de "Pão e Amor" (cujo título, caso tivesse sido traduzido literalmente, seria "Colheitas da Terra") pela casa editorial Parceria António Maria Pereira; mais tarde, em 1953, este romance seria reeditado pela Guimarães na colecção "Obras-Primas Contemporâneas". Consta ainda no arquivo da Biblioteca Nacional, um livro publicado em 1949, "Filhos da Época", mas sem referência à casa editorial. Em 1955, a Guimarães torna a publicar Hamsun, desta vez o romance "Pan", com tradução de César de Frias, que no prefácio se queixa (com palavras que poderiam ser actuais, com as devidas correcções de estilo) da pouca divulgação das letras nórdicas em Portugal, pois os poucos publicados foram-no devido ao Prémio Nobel. Escreveu ele: "O opulento e ostentoso galardão é que fez o obséquio de os empurrar até cá. O que é sinal de que nos falham os olhos e os ouvidos para tudo quanto não envergue roupagens de cores berrantes e se não saracoteie com guiseiras de ouro."
Em 1957, a Fomento de Publicações traduz a colectânea de contos "Zaqueu e Polly, o cozinheiro". Depois deste, foi preciso esperar meio século para que Knut Hamsun voltasse às livrarias portuguesas, e desta vez calhou em sorte aos leitores a obra-prima do norueguês, "Fome" (Cavalo de Ferro, 2008).
Os anos do nazismo
Até meados da década de 30, Hamsun teve estatuto de herói nacional, tendo sido distinguido pelo rei em várias ocasiões. Os leitores alemães tinham sido até então, a par dos noruegueses, os grandes admiradores da sua obra. Por razões várias, algumas delas enraizadas em histórias ouvidas na infância, sobretudo quanto ao domínio marítimo e a dificuldades postas no início do século à independência da Noruega, Hamsun nutria um ódio visceral por Inglaterra. Daí a ter mostrado a sua admiração pelo regime Nazi foi um passo. Em mais uma das suas contradições entre o escritor e o homem (toda a su a obra é distante de qualquer ideia nacional-socialista, antes contraria muitas vezes essa ideologia), Hamsun envolve-se durante os anos da ocupação alemã da Noruega, com o regime hitleriano. Chega a visitar Hitler, mas a conversa não acabou bem. Hitler estava interessado em falar sobre arte e genialidade e Hamsun (já então um ancião de oitenta e alguns anos) sobre política, sobretudo tentar a substituição do Comissário do Reich da Noruega, homem que ele odiava. Hitler, já alterado, acabou por lhe dizer que ele não percebia nada de política.
No pós-guerra foi julgado por traição à pátria. O tribunal considerou-o culpado, em 1948, e ele foi internado num hospital e desapossado dos seus bens. Morreu em Nørholm em 1952, na sua antiga quinta, que entretanto lhe fora devolvida.
Ainda hoje não existe na Noruega nenhuma rua com o seu nome.