As pessoas não têm instrumentos intelectuais para lidar com o multiculturalismo
A geografia religiosa da Europa mudou por causa das migrações. Por isso, e pela estranheza de costumes e culturas, inventou-se a ideia de que os estrangeiros pertencem a mundos exóticos e longínquos. E os ciganos são as piores vítimas, na mais baixa escala do termómetro do preconceito. Ideias do sociólogo italiano Enzo Pace, co-autor de um livro sobre religião e migrações. Por António Marujo
Professor na Universidade de Pádua, no Norte de Itália, Enzo Pace diz que há uma cada vez maior etnicização do mercado de trabalho, com tarefas atribuídas a determinados grupos etno-religiosos. Co-coordenador, com a socióloga portuguesa Helena Vilaça, do livro Religião em Movimento - Imigrantes e Diversidade Religiosa em Portugal e Itália (ed. Estratégias Criativas), Enzo Pace participou numa conferência internacional sobre o tema, no Porto, há duas semanas. Nesta entrevista, traça as características principais da mudança social, cultural e religiosa que os imigrantes trouxeram à Europa. Ainda este fim-de-semana, a chanceler alemã, Angela Merkel, assumiu que o multiculturalismo falhou na Alemanha.
A configuração religiosa da Europa mudou nas últimas cinco ou seis décadas. O pluralismo é a característica principal dessa mudança?
O facto é que, desde os anos 60, a chegada de homens às diversas regiões do mundo levou à diversidade cultural, religiosa, linguística, de usos e costumes...
O aspecto mais específico da Europa é que nós, europeus, fomos habituados a pensar que a divisão histórica, do ponto de vista religioso, era entre católicos e protestantes. Estamos agora perante uma diversidade inédita, não familiar à nossa sensibilidade e à nossa cultura. E, sobretudo, estamos perante um fenómeno de repovoamento da Europa que, por razões demográficas, se esvazia.
Este repovoamento inclui um novo mapa das religiões, uma geografia religiosa diferente à qual não estamos habituados. Isso explica por que há conflitos, contradições mesmo na vida quotidiana.
O verdadeiro conflito de civilizações é no quotidiano?
Sim.Como se manifesta?
De muitos modos. Para lá das grandes metrópoles europeias, a estrutura urbana que a Europa conhece é muito difusa no território. Os imigrantes chegam onde há trabalho. Podem ir mesmo para pequenas aldeias ou pequenos centros. Os habitantes descobrem-se a viver com pessoas das quais não conhecem a língua, os símbolos religiosos, os usos e costumes, a comida...
Num condomínio ou num bairro, o facto de haver comida com características culturais diferentes perturba o nosso odor, que está habituado a outra comida. Ou o nosso modo de vestir. Por exemplo, os sikhs usam o turbante e, por vezes, sucede que dizem que eles são árabes. É o insulto mais grave que se pode chamar a um sikh.
Isto explica o facto de, na Europa, haver conflitos à volta dos símbolos religiosos. Eles são o sinal da dificuldade de não nos sentirmos mais em nossa casa.
É isso que traduz o referendo da Suíça sobre os minaretes?
Sim, porque se inventou de novo esta ideia de que estas pessoas pertencem a mundos longínquos, exóticos. O que sucede? Estes símbolos religiosos marcam o território - e aqui surge o lado animalesco - e as pessoas sentem-se ameaçadas.
A questão do islão é uma dramatização, pela realidade que está por detrás, multicultural, a que não estamos habituados. As pessoas não têm instrumentos intelectuais para lidar com isso. Há medos...
E há um discurso político que aproveita esses medos e a ideia da insegurança?
Exacto. E que toma tudo isto não como um problema a gerir, porque as pessoas, em épocas de crescimento [económico], querem viver cá, ter filhos, trabalhar, pagar impostos, criar riqueza... Em vez disso, em épocas de medo, aparecem problemas...
Há experiências positivas de integração, com muçulmanos, africanos. Mas com os ciganos a questão é mais complicada.
É mais complicada e mais antiga. Os ciganos estão no valor mais baixo do termómetro do preconceito. Usando as categorias bom/mau, feio/belo, porco/limpo, os ciganos foram sempre colocados na escala mais baixa. Em Itália, por exemplo, os albaneses chegaram na década de 90 e estiveram no mais baixo da escala, mas hoje já subiram. Os ciganos continuam no mais baixo grau do preconceito.
Isto complicou-se quando se deu o alargamento da União Europeia à Roménia, passando a haver livre circulação. Não obstante, a UE investiu muito para torná-los mais estáveis, integrá-los na escola e no mercado de trabalho, resolver certos problemas de base...
A solução é fazer como fez o governo de França?
Penso que não. Expulsá-los não resolve, eles reentram individualmente dentro de alguns meses.
A comissária Viviane Reding tinha razão quando disse que não se deviam repetir os erros da II Guerra Mundial?
Tinha. Exagerou no método, mas tinha razão. Não podemos deixar de enunciar princípios caros à nossa sensibilidade jurídica: não se pode meter alguém na cadeia como responsável por todo um grupo. Se alguém faz um roubo, processa-se, não se mete na cadeia.
O que disse dos albaneses remete para a etnicização do mercado de trabalho. Há também um problema social e económico?
Sim. Pensávamos que isto já não sucedesse mais, que estas coisas já estariam superadas. Em vez disso, vemos que as leis internas do mercado de trabalho mostram por exemplo, entre os sikhs italianos, que os que pertencem à casta mais baixa trabalham em fábricas de peles, porque as peles dos animais são consideradas impuras.
Isto é a reprodução de um esquema estranho à nossa cultura. Não estamos habituados a ler os conflitos sociais e económicos com esta lente etno-religiosa. Temos que esperar pelas novas gerações para o superar.
Podemos dizer que as migrações e os imigrantes foram o grande factor de mudança religiosa na Europa?
Penso que sim, podemos começar a dizê-lo, pois levou todas as grandes igrejas - Católica, Anglicana, Luterana - a porem-se em causa, com este novo e efervescente cristianismo africano, latino-americano e asiático.
E também no confronto com o islão...
Sim, também há comunidades chinesas em Portugal: uma parte das comunidades chinesas na Europa é cristã, mas evangélica e pentecostal. E há também as outras religiões, o islão - que também não é um só, é muito fragmentado.
Há outras religiões: avançará o budismo, porque o budismo atrai muito os europeus que tendem a olhar esta religião com interesse.
Este fenómeno levou também ao alargamento do pluralismo interno da Igreja Católica...
Sim, é um pluralismo que se exprime em muitos movimentos e grupos. Em países como os nossos - Portugal, Espanha, Itália -, a realidade que a Igreja Católica percebe é que não pode contar mais com uma posição vitalícia, mas deve conquistar os fiéis, porque há concorrência. E deve perguntar-se o que sucede se um católico que milita num movimento carismático pentecostal católico e vê que, ao lado da sua paróquia, há uma igreja africana que lhe parece ainda mais bela.
Isto é um desafio para a Igreja Católica. Como falar de Deus numa sociedade deste tipo? Como falar de verdade com a ideia fixa deste Papa contra o relativismo, que é vivido pelas pessoas? São grandes desafios...
Não há mais uma religião pura?
Não. Religião pura, no sentido técnico, é aquela que, a um certo ponto, influenciou a alma e o corpo de uma nação inteira. É o caso da Igreja Ortodoxa. E o problema, hoje, é que quando saem dos confins nacionais [os ortodoxos] têm que inventar outro modelo de igreja. É assim também para as igrejas evangélicas.
Obviamente, a cultura e o nosso modo de raciocinar pesam também, como a nossa história filosófica e cultural.
Disse que é possível fazer a ponte entre o cristianismo africano e o catolicismo popular. Mas não com a Igreja oficial?
Não. Com estes movimentos carismáticos, na base. Houve um padre católico que me disse que, se pudesse, gostaria de dar espaço a estes grupos, algumas vezes. Mas ele não o podia fazer por causa do lugar que ocupa.
No livro que co-coordena, fala do papel das mulheres na preservação da memória religiosa e cultural. Há um papel especial para as mulheres?
Há uma parte da religião que é transmitida por via materna e que resiste até um certo ponto. Após o que cada indivíduo cria o seu próprio perfil.
Neste processo, as mulheres, na Europa, podem romper as regras da sociedade patriarcal que as religiões transmitiram. Aí está um ponto-chave. Hoje há na Europa, no Irão, em países do Magrebe, na Indonésia, movimentos de mulheres que se doutoram em Teologia, lêem o Alcorão, interpretam-no e dizem que as regras criadas já não funcionam.
Há também um conflito entre o individual e o comunitário. Cita o exemplo das mulheres e dos jovens que começam a falar da sua individualidade e da sua sexualidade...
Quando os filhos recusam os casamentos combinados pelos pais, é o ponto de ruptura. Chegam a perguntar se está escrito num texto religioso ou se faz parte de um costume no qual não se reconhecem mais. Começam a dizer não. É um processo dinâmico, de conflito, que mete em discussão virtudes, regras... É um mundo de desafios, mas interessante.