Podia chamar-se utopia
A aldeia de São José de Alcalar é onde uma centena de portugueses vive a reforma, em espírito comunitário. Fica no Algarve e resulta da teimosia de um padre que, dizem, teria jeito para empreiteiro, administrador ou político. Por Idálio Revez (texto) e Virgílio Rodrigues (fotografia)
Domingos Costa,
padrea São José de Alcalar fica nos arredores de Portimão, no Algarve. Por ali, as portas das casas estão abertas dia e noite, o que não é certamente um hábito português, mas esta aldeia, na freguesia de Mexilhoeira Grande, não é uma terra portuguesa normal. As 52 casas de Alcalar (26 de tipologia T1 e 26 T3) foram construídas em dois blocos circulares, em volta de uma eira. Foram pensadas para gente que está na idade da reforma e não pode viver sozinha. Não é um lar e também não é um resort, para reformados endinheirados. É uma utopia de portas abertas que nasceu da teimosia do padre jesuíta Domingos Costa. Um homem obstinado, sem papas na língua nem paciência para leis que não servem as pessoas.
Sara Duarte é a responsável de Alcalar, onde a vida, explica Sara, é necessariamente diferente da de um lar em que os utentes têm um quarto individual e salas colectivas. Aqui, toda a gente tem direito a uma vivenda, sem cozinha. Há uma área de apoio parecida com kitchnette, com coisas básicas, mas as refeições são servidas no refeitório, onde se confecciona alimentos cultivados e criados aqui mesmo. "Procuramos que todos os que podem venham pelo seu próprio pé, nem que seja a coxear - o movimento é indispensável", diz Sara Duarte. Este foi o seu primeiro emprego, desde que saiu da universidade, há cinco anos. Sente-se realizada a ajudar o padre Domingos, para quem Alcalar deve proporcionar um ambiente em que as pessoas possam ter a sua "intimidade, sentirem-se autónomas mas ao mesmo tempo acompanhadas".
A aldeia nasceu em 1989, numa altura em que os "cidadãos se podiam organizar e ter iniciativas próprias", diz o padre. Mais tarde, chegaram leis, "burocracia", e "regras para a certificação". "A qualidade de vida passou a ser medida a régua e esquadro".
No início eram 15 mil contos
O projecto foi oferecido pelo arquitecto Martim Garcias, quando este era presidente da Câmara de Portimão. O terreno também foi doado e o resto da obra fez-se com boas-vontades, trabalho voluntário e "luta, muita luta" contra a corrente. O ex-autarca, hoje com mais de 80 anos, "facilitou as coisas", em termos administrativos, para que a construção pudesse avançar, aos poucos, conforme o dinheiro disponível e as ajudas que iam chegando. E a vontade popular fez esquecer algumas formalidades municipais. As pequenas moradias têm porta aberta ou a chave disponível para quem quiser entrar a qualquer hora. Lá dentro, um quarto, uma casa de banho e uma sala. As visitas são sempre bem-vindas, de dia ou de noite. Os utentes saem e entram à vontade, ajudam-se mutuamente em espírito de boa vizinhança.Os projectos das casas ainda hoje não estão aprovados pelos serviços autárquicos. O processo de legalização está agora a ser iniciado "como se estivesse no zero". E se à luz da actual legislação as casas vierem a ser consideradas clandestinas? "Já disseram que tinha de fazer alterações - construir uma rampa, mas enquanto eu estiver vivo não se faz." O pároco, que vive de uma reforma de 411 euros, manifesta-se intransigente. "É meu princípio gastar bem o dinheiro dos pobres. Se o Estado está habituado a deitar fora o dinheiro de todos nós, eu não." Socorrendo-se das sagradas escrituras, cita São Paulo: "A lei mata, o espírito é que vivifica - e esta é uma obra do espírito."
Quando abraçou esta causa, em 1988, o arquitecto pergunto-lhe: "Sabe onde vai meter-se? Sabe quanto vai custar?" A resposta, recorda, desarmou o autarca: "Não sei, nem me interessa." Martim Garcias avançou com um número: "Pelo menos 2,5 milhões de euros." O padre respondeu que tinha 15 mil contos (75 mil euros), deixando a promessa de que não iria desistir. Aos poucos, com donativos e trabalho voluntário, a obra fez-se. "Isto é bonito, o Evangelho funciona mesmo."
Na lavandaria, os gestos de Cesarina Barroso são mecânicos. Cumpre um ritual: lava, torce, estende, dobra e passa a ferro. Trabalha no Centro Paroquial há 28 anos, é a mais antiga na instituição. "Casei com isto", diz, a sorrir. À sua frente estão 25 camisas de homem à espera que o ferro quente lhes apague os vincos.
Há prateleiras com nome e número de utente: "Não se pode trocar a roupa", avisa Cesarina. Naquele espaço, gerido por esta mulher de 49 anos, "tudo tem de estar no seu lugar". Como num hotel. Por vezes, acontecem coisas estranhas. Há roupa que aparece rasgada ou sem botões.
Maria Augusta, de 77 anos, não gosta de estar parada, apesar de ter algumas dificuldades de locomoção. Há dez anos morava num 2.º andar de uma urbanização de habitação social em Portimão. Isabel Cabrita, de 88 anos, habita numa casa recheada de saudades, em frente à de Maria Augusta. A mesa da sala e as paredes estão cobertas de fotografias. "São os meus meninos", conta, acrescentando que foi catequista, e ajuda o padre Domingos na missa.
No terraço, Gil Luís, antigo pastor, joga o dominó com mais três amigos. A partida é interrompida. Sem familiares por perto, desde há 12 anos que encontrou nesta aldeia o espaço para se sentir como se fosse a sua própria casa. Quando a saúde ainda o permitia, ajudava no refeitório, a descascar batatas.
Preço igual para todos
A média das pensões de reforma dos idosos anda na ordem dos 300 euros mensais. A administração desta aldeia fica com 85 por cento desse valor. A percentagem, diz o pároco, "é igual para todos, independentemente do valor".
As inspecções da segurança social, diz, falam da necessidade de existir certificação de qualidade, "mas não olham para as pessoas, nem falam com elas". O que os preocupa, acrescenta, "é a altura das portas, se existe ou não extintor e a pintura das paredes, a isso é que chamam qualidade".
Quando uma Misericórdia gasta 100 mil euros para obter um certificado de qualidade isso é dinheiro mal gasto, comenta. "Tanta gente à procura de uma cama, e o que lhes interessa são os papéis e um carimbo."
Não é por falta de procura ou de dinheiro que ainda há casas vazias. "Tenho dificuldade em conseguir pessoas, empregadas com vocação para trabalhar com idosos", refere o padre Domingos. "É muito diferente trabalhar para ganhar dinheiro de trabalhar para fazer felizes os outros", acrescenta.
O lote de terreno onde se desenvolve a aldeia tem 1,8 hectares - equivalente a dois campos e meio de futebol. Mas o total são cinco hectares, que incluem uma capela e um centro juvenil, frequentado por 170 crianças. Cinco hectares seriam a área considerada necessária para desenvolver todo o projecto, incluindo a criação de animais, coelhos e galinhas para alimentar a aldeia. "Os terrenos estão abandonados, mas as pessoas não dão, nem vendem", lamenta-se o padre, afirmando que não vai desistir. Aliás, com a mesma filosofia de aldeia, adianta, tem em projecto algo semelhante para os mais novos. "É preciso que as crianças tenham contacto com a vida no campo." E o dinheiro para a obra? "Desde que sou padre, o dinheiro apareceu sempre."
Manuela Rocha chega com dois sacos de fraldas. A jornada de trabalho começou às 7h, com o transporte, numa carrinha, dos colegas que estiveram de serviço no turno da noite. "Temos de fazer de tudo um pouco", diz esta colaboradora do Centro Paroquial há 16 anos, cuja tarefa principal é tratar da higiene e limpeza dos idosos. "O trabalho é duro, mas é feito com gosto." A média dos salários anda "um pouco acima da tabela do ordenado mínimo nacional". Mas encara profissão como uma missão: "Gostaria de um dia ser acolhida como eu procuro tratar os outros."
Às primeiras horas da manhã, ocorre a fase da higiene e limpeza, a mais delicada. "Sabemos que estamos a entrar num espaço íntimo, e nem todos encaram a nossa presença da mesma forma." Por outro lado, acrescenta: "Tenho conhecido aqui pessoas encantadoras, dizem versos, contam estórias e são divertidas." Quando as coisas correm bem aos filhos e netos, "gostam de falar, falar. Mas nem sempre há tempo para ouvir. Somos poucas, e há muito por fazer", justifica.
De Odemira a Tóquio
A vida na aldeia é calma, tão calma que parece que nada acontece ou está para acontecer. As tarefas repetitivas transmitem uma sensação de monotonia. Monótono? "Sim, pode ser, mas às vezes parece que passou por aqui um furacão", diz Manuela Rocha, aludindo a momentos como quando adoece alguém. "Muda-se a rotina, para dar prioridade aos cuidados de saúde, tudo muda de repente."
Em Odemira, concelho de Beja, há outro sítio que persegue o mesmo ideal. São Martinho das Amoreiras é um projecto idêntico, só que de menor dimensão. Foi apontado pela Rede Europeia Antipobreza como um modelo a seguir.
No Japão, país que sofre mais que muitos outros com o problema do envelhecimento da população, não deixa este tipo de preocupações na mão de um punhado de voluntários. Nos arredores de Tóquio há mesmo uma cidade que está a ser paulatinamente transformada numa espécie de lar gigante.
Casas e prédios antigos serão restaurados e recuperados a pensar nos problemas que vêm com a idade. Nos próximos cinco anos, uma parte desta cidade de 400.000 habitantes irá transformar-se num espaço adaptado à sua população envelhecida.
Prédios antigos de cinco pisos sem elevador serão substituídos por edifícios livres de barreiras com 10 a 14 andares e elevadores. Cada condomínio terá serviço de saúde e apoio domiciliário 24 horas. Os telhados serão aproveitados para criar miniquintas urbanas, onde os moradores poderão ocupar o seu tempo.
Em Alcalar, no Algarve, não é preciso aproveitar telhados, mas a pequena agricultura é também uma forma de ocupação. "Se não me pusesse a pau, até desaparecia a relva do jardim, aproveitam todos os cantinhos para semear e plantar", diz o padre Domingos. O que ali se produz é para consumo interno, e o tempo que se gasta a tratar de tudo é uma ajuda para quem não sabe o que fazer ao tempo.
O gigantesco projecto japonês envolve a autarquia de Kashiwa, uma espécie de dormitório de Tóquio, a 30 minutos de comboio da capital japonesa, a Universidade de Tóquio e uma imobiliária. Por cá, também há universitários que se dedicam a estudar o tema, embora não se tenha chegado a projectos com a dimensão do de Kashiwa.
João Martins, professor universitário de Beja, dedicou a sua tese de doutoramento em Planificação Integral e Desenvolvimento Regional a este problema. Em 2007, Martins apontava o modelo das "aldeias-lar" como uma resposta ao envelhecimento da população que João Martins, professor universitário de Beja, propôs na sua tese. Na altura, explicou que o modelo consiste em "revitalizar" as aldeias e vilas do interior do país com população envelhecida e em risco de desertificação, transformando-as em "aldeias-lar". "Através de investimento público, privado ou misto, as casas devolutas ou abandonadas poderão ser adquiridas e reconvertidas para a habitação de idosos."
A Aldeia dos Querubins
Além das moradias, Alcalar também dispõe de um edifício central, bar, sala de actividades de tempos livres, lavandaria e posto de saúde, onde um médico e uma enfermeira prestam cuidados de saúde primários aos idosos.
A atenção do padre Domingos não se esgota nesta camada da população. Há mais de dois anos que o obreiro de Alcalar sonha com arrancar para a construção de uma aldeia semelhante para crianças, à qual quer chamar a Aldeia dos Querubins.
Em 2008, segundo dados divulgados na altura pelo Jornal de Notícias, Portugal tinha 13.000 pessoas em listas de espera para os lares apoiados pelo Estado. Num contexto em que a rede estatal não chega para as encomendas, o país poderia olhar para as aldeias-lar como uma alternativa que, além de satisfazer necessidades, poderia seguir este modelo que São José de Alcalar, no Algarve, ou São Martinho da Amoreira concretizam.
Thomas More, chanceler entre 1529 e 1932 de Henrique VIII de Inglaterra, imaginou uma ilha à qual chamou Utopia, num livro que ficou para a história do pensamento político. Era uma terra imaginária, inventada como contraponto à Inglaterra daquele tempo, a pensar no governo dos países e não na forma de tratar os velhos. Uma ilha onde não havia propriedade privada, nem fechaduras nas portas. Onde a partilha seria a regra e a felicidade pessoal estaria ligada à felicidade colectiva. Nisso, Alcalar podia ser Utopia feita real.Com Carlos Dias, Victor Ferreira e Lusa