O segredo da voz do século

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Joan Sutherland no seu camarim na Ópera de São Francisco, em 1981, preparando-se para o papel de Hanna Glawari, da ópera ira nowinski/corbis

Voz ágil, brilhante e poderosa. Ícone do canto lírico do século XX, La Stupenda não cedia às emoções e achava que a técnica de um cantor era comparável à de um desportista

Luciano Pavarotti disse um dia que Joan Sutherland era "a voz do século" e a frase passou a ser repetida até à exaustão. Mais do que uma afirmação bombástica, expressava o espanto que muitos sentiam quando ouviam a extraordinária soprano australiana, um dos maiores ícones da história da ópera. Parece um lugar-comum, mas, na sua simplicidade, a expressão diz mais do que parece.

Joan Sutherland, que morreu no domingo, aos 83 anos, na sua casa perto de Montreux, na Suíça, era sobretudo "a Voz". Possuía um instrumento portentoso, que operava maravilhas e compensava, através do carisma vocal e da inteligência musical, os seus discretos dotes de actriz. "A perfeição da emissão, a naturalidade com que lhe saem da boca os mais estonteantes vocalizos, a doçura aveludada do timbre, jamais perturbada por qualquer aparência de esforço, a nobreza do portamento [deslizar de uma nota para a outra passando por todas as intermédias]... Todos estes elementos contribuem para fornecer à personagem uma subjugante presença cénica", escreveu o crítico e musicólogo Massimo Mila no início dos anos 60.

Trata-se de uma postura de certa forma oposta à de Maria Callas, que compensava imperfeições vocais através de uma entrega emocional sem limites e de dotes dramáticos e teatrais fora do comum. Mas é a própria Sutherland que nos dá a chave da sua abordagem dos papéis operáticos. Quando, em 1985, Bruce Duffie entrevistou a cantora e o seu marido (o maestro e pianista Richard Bonynge), na estação de rádio WNIB Classical 97, de Chicago, perguntou-lhe se, quando estava em palco, retratava uma personagem ou se se convertia nessa personagem. Sutherland respondeu: "É muito perigoso convertermo-nos na personagem, [pois facilmente] perdemos o controlo e nos deixamos arrastar pelas emoções." Para estar "consciente do que está a acontecer", Sutherland tentava apenas retratá-la.

Em 1952, pouco tempo depois de ter chegado a Londres, Sutherland contracenou com Maria Callas na Norma, de Bellini, fazendo o pequeno papel de Clotilde. Desde aí desejou ardentemente cantar o papel titular, mas teve de esperar dez anos. "Durante esse tempo estudei-o, cantei pedaços, e trabalhei com Richard [Bonynge]", contou em 1998 numa entrevista ao diário norte-americano The New York Times. "Tinha de encontrar a minha própria maneira de o cantar e teria desfeito a minha voz em pedaços se tivesse tentado cantar como a Callas."

Este é certamente um dos segredos da longevidade vocal de Joan Sutherland. Ao contrário de Maria Callas, que teve uma curta carreira, a soprano australiana pisou os palcos durante 40 anos e soube contornar o desgaste natural da voz, quando este começou a dar sinais. Até às suas derradeiras apresentações, em 1990, desenvolveu um repertório imenso, contando com cerca de 54 papéis titulares que se estendem de Handel a Puccini.

Para Rudolfo Celletti, autor de uma História do bel canto, com Maria Callas, Joan Sutherland e Marilyn Horne tiveram um papel fundamental "no regresso à ópera barroca e a Rossini, e portanto aos fundamentos da ópera belcantista". No entanto, o musicólogo italiano sublinha que a acção de Marilyn Horne e de Joan Sutherland se diferencia por "uma especialização mais marcada". "Maria Callas promoveu um irresistível, mas muito geral, regresso ao antigo. Marilyn Horne e Joan Sutherland restringiram o seu campo de acção a uma época que se estende do século XVIII barroco ao romantismo pré-verdiano, e chegaram mais longe do que Maria Callas no domínio do virtuosismo puro, da elegância da execução, do respeito das características do repertório pré-verdiano, como a improvisação de cadências e de variações nas secções da capo."

Pouco convencional

"Quer se trate de um desportista ou de um cantor, é preciso desenvolver uma técnica básica", dizia Joan Sutherland, que nos últimos tempos de vida se mostrava bastante crítica em relação à preparação técnica dos jovens cantores líricos. Possuía uma técnica formidável, mas a sua formação nesse campo foi tudo menos convencional. Antes de se mudar para Londres no início da década de 1950, onde viria a frequentar, por pouco tempo, a Royal Academy of Music, nunca tinha andado num conservatório. Nascida em Sydney em 1926, era filha de William Sutherland, um emigrante escocês que morreu quando Joan tinha seis anos, e de Muriel Alston, uma cantora amadora que tinha sido aluna de um dos discípulos de Matilde Marquise, professora da lendária soprano Nellie Melba. Desde pequena Joan Sutherland imitava as escalas e vocalizos que a mãe praticava diariamente. Na sua autobiografia (The Autobiography of Joan Sutherland: A Prima Donna"s Progress, 1997) conta que cantava sempre à volta da casa e do jardim. Na escola era boa aluna, mas a sua voz era considerada demasiado forte para integrar o coro. Acabou por se formar como secretária e foi dactilógrafa num laboratório da Universidade de Sydney. Só aos 18 anos começou a estudar canto a sério, como aluna particular de John e Aida Dickens, ainda na Austrália.

Em 1947 fez a sua estreia na ópera Dido e Eneias, de Purcell, e em 1951 cantou o papel titular na estreia de Judith, de Eugene Goosen, director do Conservatório de Sydney. A mãe tinha orientado o seu treino para o repertório de meio-soprano, mas quando começou a ter lições fora do círculo familiar, os seus professores acreditavam que podia vir a converter-se num soprano dramático wagneriano, o que ia ao encontro dos sonhos da própria Sutherland, devotada admiradora de Kirsten Flagstad.

É ainda em 1951 que parte para Londres e realiza audições para o Covent Garden. À terceira tentativa, na temporada de 1952-53, consegue ser contratada por dez libras por semana. O seu primeiro papel no prestigiado teatro londrino foi o de Primeira Dama na Flauta Mágica, de Mozart. Como soprano da companhia viria a desempenhar numerosos papéis, desde a Condessa das Bodas de Fígaro até a Amélia do Baile de Máscaras, de Verdi, passando por Weber, Bizet, Wagner ou Tippett.

Em Londres Joan Sutherland reencontrou o pianista e maestro Richard Bonynge, que doravante passaria a ser o guia artístico da sua carreira. Casaram em 1954 e, dois anos mais tarde, tiveram um filho, Adam. Foi Bonynge quem convenceu Sutherland a explorar o repertório de soprano dramático de coloratura, aproveitando a sua agilidade e facilidade no registo agudo, aposta que se revelou plena de êxito quando a cantora personificou a Alcina, de Handel, em 1957 - foi com a apresentação desta ópera em Veneza, em 1960, que o público italiano passou a designá-la como La Stupenda - e fez uma estreia triunfal como Lucia di Lammermoor (na ópera homónima de Donizetti) no Covent Garden, em 1959, na produção encenada por Franco Zeffirelli. Ao longo da vida, seria Lucia 233 vezes.

Em 1960, o álbum duplo The Art of the Prima Donna foi um sucesso de vendas, marcando o início de uma parceria com a Decca que deu origem a mais de 40 gravações, muitas delas dirigidas por Richard Bonynge. Ao longo dos anos a cantora foi especializando o seu repertório num percurso que incluía obras famosas e títulos menos conhecidos. Entre muitas outras, salientam-se as suas actuações em Beatrice di Tenda, de Bellini (1961); Semiramide, de Rossini (1962); Giulio Cesare, de Handel (1963); Norma, de Bellini (1963); Orfeu e Eurídice, de Haydn (1967); Os Contos de Hoffmann, de Offenbach (1970); Maria Stuarda e Lucrezia Borgia, de Donizetti (1971 e 1972); Esclarmonde, de Massenet (1974); O Trovador, de Verdi (1975); A Viúva Alegre, de Franz Lehar (1976); Le Roi de Lahore, de Massenet (1977); Idomeneo, de Mozart (1979); e Adriana Lecouvreur, de Cilea (1983). Cantou pela última vez em público em Londres, a 31 de Dezembro de 1990, na opereta O Morcego, de Richard Strauss, ao lado de Luciano Pavarotti e Marilyn Horne.

Apesar do sucesso, Joan Sutherland nunca foi uma diva que impusesse a sua presença e os seus caprichos. Com grande sentido de humor, gostava da vida doméstica, de jardinagem, de bordar e tricotar, actividades a que se dedicava nos últimos tempos de vida, antes da queda que a fez partir as duas pernas e agravou o seu estado de saúde de forma irreversível. Nunca mais cantou em público, mas entoava melodias à boca fechada enquanto deambulava pela casa. Numa entrevista em 2005, Sutherland chegou a dizer que a sua voz nessa época já não era de soprano, mas sim "de barítono"! Foi júri de diversos concursos, incluindo o famoso BBC Cardiff Singer of the World, e inspirou numerosos cantores das gerações seguintes. Como disse recentemente a soprano Kiri te Kanawa: "Olhávamos para ela no alto da montanha e sonhávamos em chegar lá também."

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