Vamos colocar a coisa assim, de modo bruto e peremptório, para não deixar dúvidas: é um dos grandes filmes do ano. O júri de Tim Burton em Cannes 2010 também achou que sim - deu-lhe o Prémio Especial do Júri - e França, onde se tornou num dos mais improváveis êxitos comerciais do ano, elegeu-o como o seu candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2011.
Tudo isto sem que "Dos Homens e dos Deuses", sexta longa-metragem do actor e realizador Xavier Beauvois, que trabalhou como assistente de Téchiné e Oliveira, deixe de ser um dos filmes mais extraordinariamente poliformes que temos visto - simultaneamente cristão (no sentido primordial da palavra) e agnóstico, humanista e político, metafórico e directo.
E, sobretudo, sem que deixe de ser um dos mais extraordinários momentos de cinema puro que temos visto.
Sumptuosamente fotografado por Caroline Champetier e extraordinariamente encenado por Beauvois, é um filme que desacelera brutalmente e, à imagem do mosteiro na Argélia remota onde tudo se passa, cria um momento de silêncio e contemplação para nos permitir olhar para o mundo e para o ser humano tal como ele é.
O que o torna tão contemporâneo, nestes dias em que o fundamentalismo religioso parece estar constantemente nas notícias, das controvérsias do Ground Zero nova-iorquino aos debates sobre a burqa, é que se trata de um filme de resistência: de resistência ao medo, de resistência ao terrorismo, de resistência a tudo aquilo que nos rouba a humanidade (e, por consequência, o divino que há em nós).
Beauvois fala aos nossos dias através da história verdadeira dos monges de Tibhirine, sete monges trapistas franceses raptados e assassinados por um grupo islâmico durante a guerra civil argelina, em 1996, retraçando o percurso que viu a comunidade monástica que fazia há décadas parte do próprio tecido da aldeia local ficar na linha de mira dos rebeldes.
O mérito maior do realizador é o de não erguer estas mortes anunciadas a mortes heróicas - apenas de nos fazer compreender o porquê do martírio improvável destes homens de um modo que nunca separa os homens da sua fé nem deste sítio, que os torna em gente tão argelina como aqueles que ali viviam e partilhavam com eles uma existência e um apego à terra que transcende divisões de classe, religião ou nacionalidade.
Voltaremos forçosamente a "Dos Homens e dos Deuses" quando ele estrear entre nós, mas se há casos em que uma ante-estreia pode ajudar a olhar como deve ser para um dos grandes filmes do ano, este é um deles.
"Dos Homens e dos Deuses" é exibido hoje às 22h00 no cinema São Jorge, com a presença do realizador Xavier Beauvois.