André Téchiné: o autor que queria fazer encomendas

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Catherine Deneuve diz dele que é "tímido, brusco, sensato, elegante e misterioso", e rodou sob a sua direcção seis vezes. Ele responde chamando-lhe a sua "irmã de cinema". Mas Deneuve não é a única "repetente" no cinema de André Téchiné, um dos raros cineastas franceses da geração revelada nos anos 1970 a ter honras de estreia continuada entre nós ao longo dos anos. Emmanuelle Béart, Juliette Binoche, Isabelle Adjani, Daniel Auteuil ou Michel Blanc são outros dos nomes que trabalharam por mais de uma vez com Téchiné, em filmes cujos títulos dirão algo aos espectadores mais atentos: "Encontro" (1985, melhor realizador em Cannes), "O Local do Crime" (1986), "A Minha Estação Preferida" (1987), "Os Juncos Silvestres" (1994, César de melhor filme e melhor realizador), "Os Ladrões" (1996), "Os Tempos que Mudam" (2004)...

Esses, e os outros todos (num total de 18 longas-metragens, rodadas entre 1969 e 2009), vão ser alvo de uma retrospectiva integral da carreira de Téchiné que a Cinemateca Portuguesa recebe a partir de segunda-feira, integrada na edição 2010 da Festa do Cinema Francês. Em simultâneo, quatro clássicos do realizador saem em DVD ("O Segredo do Amor", 1981, "Não Dou Beijos", 1991, "A Minha Estação Preferida" e "Os Juncos Silvestres", que lhe valeu os Césares de melhor filme e melhor realização). Oportunidade para redescobrir um dos cineastas franceses mais vitais do último quarto de século, que, como muitos dos seus colegas e contemporâneos, começou pela crítica antes de passar para trás da câmara.

Téchiné soube construir um caminho singular - e difícil - pelo meio das constantes discussões que perseguem o cinema francês, eternamente dividido entre o filme de autor e o filme de grande público: recuperando a atenção às "pequenas histórias" que, por exemplo, Claude Sautet sabia dar, ao mesmo tempo que procurava uma liberdade de tom que as codificações quer do velho "cinéma à papa" quer do cinema de autor já não conseguia; gerindo habilmente a vocação coral de muitos dos seus filmes, ao mesmo tempo que se revelava um excepcional director de actores e, sobretudo, actrizes. Tudo isto recusando a identidade de "autor" que muitos teimam em lhe colar.

Esta retrospectiva será, também, a primeira oportunidade para vermos entre nós os seus dois mais recentes filmes, "Les Témoins" (2006) e "La Fille du RER" (2009), que ficaram por estrear em Portugal (sintoma de uma distribuição que parece funcionar de modo cada vez mais aleatório). Em ambos os casos, partindo de factos reais (a devastadora epidemia de sida em meados da década de 1980 em "Les Témoins", o falso ataque anti-semita inventado por uma adolescente em "La Fille du RER"), Téchiné prefere, como é seu hábito, mergulhar no interior das suas personagens, revelando as motivações e os segredos que as levam a agirem como agem. Foi por aí que começou a conversa.

Os seus filmes são muitas vezes investigações, retratos que procuram revelar aquilo que as personagens escondem ou guardam para si próprias...

Sim, sim, é isso que mais me apaixona! Mas, sinceramente, tenho dificuldade em encontrar traços comuns entre todos os filmes que fiz, porque a minha única preocupação foi sempre renovar-me. Sempre quis que cada filme fosse uma experiência diferente, e quase os fiz uns contra os outros. Depois de ter feito "A Minha Estação Preferida", com Catherine Deneuve e Daniel Auteuil, rodei "Os Juncos Silvestres", sem actores conhecidos, em 16mm, para a televisão, depois fiz outro filme com estrelas que era quase policial, "Os Ladrões"... Sempre me esforcei por não me repetir. É isso que me seduz, partir à aventura sem saber qual a paisagem que vou descobrir. Em qualquer caso recuso-me a explorar qualquer tipo de filão. Depois do êxito dos "Juncos Silvestres", propuseram-me fazer inúmeros filmes sobre adolescentes, e recusei sempre porque queria fazer outra coisa diferente.

Tem algum filme preferido, ou algum de que se arrependa?

Ah, não, não renego nenhum dos filmes que fiz. Todos eles foram experiências necessárias, e como nunca os revi não tenho um ponto de vista crítico sobre eles. Mas é verdade que tenho uma ternura particular por "Longe", talvez porque o rodámos um pouco como se estivéssemos a fazer gazeta. Rodei-o em Tânger, em video digital com uma equipa muito reduzida, de um modo muito livre, pelas ruas. É um filme de uma grande liberdade.

Se nunca reviu os seus filmes, que efeito lhe cria uma retrospectiva da sua obra?

Uma retrospectiva permite aos espectadores descobrir os meus filmes. Agora, eles pertencem ao olhar dos outros, à liberdade de cada um. Quando me acontece ter de rever um filme - por exemplo, quando tenho de fazer uma verificação técnica - ou sinto que é um momento de graça que perdi com o tempo, ou é um falhanço, que poderia ter feito melhor ou de outra maneira. Portanto, em qualquer caso, quer seja a decepção de não poder fazer melhor no presente, ou a decepção de me ter enganado no passado, não é nada encorajante e é por isso que não revejo os meus filmes. Talvez um dia, quando chegar o momento de concluir a minha carreira, quando já não tiver desejo de fazer um outro filme, talvez aí considere que o meu trabalho está terminado. E teria de ser num momento em que não tenho um novo projecto na cabeça.

É-lhe necessário esse lado de recomeçar tudo imediatamente após terminar um filme?

Até aqui, sim. Estou a terminar um filme, estou já a pensar num novo projecto para o qual vou começar em breve a escrever um argumento, portanto vivo muito desta necessidade de andar em frente, e não tenho o desejo de olhar para trás. O importante é o que está à minha frente.

O que é que o atrai num projecto?

São sempre as circunstâncias, as oportunidades que se apresentam. Na realidade, o meu sonho - e de algum modo tornou-se realidade - era rodar por encomenda. O filme que estou agora a terminar é uma adaptação de um romance que me foi proposta por um produtor ["Terminus des Anges", baseado em Philippe Djian]. Depois, evidentemente, aproprio-me do livro, puxo-o em direcção àquilo que me interessa, mas à partida é um estímulo exterior. É a melhor maneira de me sentir livre, poder fazer um filme que corresponda a um desejo do produtor, e ver esse desejo do produtor tornar-se num desejo de cineasta.
Mas temos esta ideia do cinema francês como um cinema de autor...

Eu sei, e ainda por cima dizem de mim que sou um autor! Mas não gosto da etiqueta. Não corresponde à realidade e implica sempre algo de narcisista... Mas ao mesmo tempo isso deu grandíssimos filmes, se pensarmos num Philippe Garrel ou num Jean Eustache.

A retrospectiva integral de André Téchiné no âmbito da Festa do Cinema Francês inaugura segunda-feira, 11, às 21h30, na Cinemateca Portuguesa, com a projecção de "La Fille du RER", o seu último filme, inédito entre nós, em presença do realizador. Téchiné estará presente nas projecções de "A Minha Estação Preferida" (terça, 12, às 19h00), "O Local do Crime" (quarta, 13, às 19h00) e "O Segredo do Amor" (quinta, 14, às 19h00), bem como na projecção de um dos quatro filmes que escolheu, "Antes da Revolução", de Bernardo Bertolucci (terça 12 às 21h30). A retrospectiva prolongar-se-á para lá da Festa, até dia 19 de Novembro.

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