Lembram-se do choque que foi quando descobriram, pela primeira vez, os filmes de Jacques Tati? Aquele humor observacional, minuciosamente planificado e encenado, a um tempo herdeiro dos mestres da comédia muda e inventor de qualquer coisa que parecia vinda de um planeta distante?
Apostamos que o choque de descobrir Pierre Étaix será qualquer coisa de muito parecido.
Contemporâneo de Tati, com quem chegou a trabalhar no final dos anos 1950, Étaix realizou apenas cinco longas-metragens, entre 1962 e 1970. O desastre comercial da última, "Pays de Cocagne", verdadeiro filme maldito e mal-amado, fechou-lhe desde então as portas da realização.
Enquanto o criador do sr. Hulot era redescoberto por novas gerações graças aos esforços dos herdeiros e a um cuidado programa de restauro, problemas contratuais e jurídicos atiraram os filmes de Étaix para um cofre-forte fechado a sete chaves durante vinte anos, tornando-o numa das lendas perdidas da cinefilia moderna. Um mestre ignorado que só os investigadores mais aguerridos conseguiam localizar, um igual de Tati a quem a sorte não tivesse sorrido (e, contudo, todos sabemos como também ele havia sido perseguido pela incompreensão).
A comparação a Tati, percebemo-lo hoje, era excessiva. É verdade que, em comum, Étaix e Tati tinham uma admiração desmedida pelo burlesco clássico de Chaplin, Keaton ou Lloyd, experiência de circo e music-hall, atracção pelo humor físico do slapstick.
Mas as semelhanças páram aí. E Pierre Étaix confirma-o ao telefone de Paris, com o entusiasmo transbordante de quem continua vital, activo e atento aos 81 anos.
"Devo tudo a Tati. Foi ele que me abriu a porta, ao convidar-me para trabalhar em 'O Meu Tio'. Originalmente, apenas queria pedir-lhe alguns conselhos sobre um número de circo em que estava a trabalhar, mas ele desencorajou-me, disse que dificilmente eu conseguiria ter sucesso. Enganou-se redondamente! Mas olhou para os desenhos que eu tinha levado, disse-me que tinha um bom sentido de observação, que as minhas ideias eram divertidas, e convidou-me para trabalhar num argumento que estava a escrever. Disse-lhe que não percebia nada de cinema, e respondeu-me que isso não era problema, que eu ia aprender num instante. De facto, ensinou-me tudo, devo-lhe tudo, mas ao fim de quatro anos, independentemente de continuar a ser um grande admirador do seu trabalho, queria fazer outras coisas. Fui trabalhar para o circo, para o music-hall, sem vontade de fazer cinema. Até que a certa altura tive uma ideia particularmente cinematográfica e decidi escrever uma curta-metragem..."
O lado artesanal
Essa curta, "Rupture" (1960), marcou a primeira incursão de Étaix no cinema, e o primeiro passo de uma aprendizagem cinematográfica que adquiriria formas novas em cada novo filme. Nas quatro primeiras longas - "O Apaixonado" (1962), "Yoyo" (1964), "Entretanto Haja Saúde" (1966) e "O Grande Amor" (1968) - o humor de Étaix mantinha as heranças do burlesco que partilhava com Tati, mas expressava uma vontade de experimentação e uma liberdade formal muito diferente.
Se para o autor de "Playtime" a câmara estava ao serviço do gague, em Étaix a câmara é muitas vezes parte integrante dele, numa concepção cinematográfica que se enquadra na sua definição do "espectáculo vivo", uma combinação de elementos provenientes de múltiplas disciplinas.
"Sempre me senti maravilhado pelo lado mágico das coisas. O cinema é não só mágico como me permite fazer algo de diferente do music-hall ou do circo - dá-nos a possibilidade de rodar um plano de trás para a frente, de fazer trucagens no interior do plano..."
Esse lado artesanal, "feito à mão", é aliás explicado pelo cineasta como resultado de uma educação ecléctica, que envolveu estudos de desenho, pintura e música para lá das suas experiências em primeira mão no circo. "Um palhaço, por exemplo, não compra os seus acessórios, ou as suas roupas. Fabrica-os ele próprio. Isso sublinha a sua personalidade específica - dois palhaços não entram da mesma maneira em pista. Não têm encenador nem autor, são apenas eles."
Étaix não nega que esse artesanato e esse experimentalismo exigia por vezes muito do público: "As coisas não resultam sempre da mesma maneira com toda a gente todos os dias... Quando se tem uma ideia de que gostamos, que achamos divertida e interessante, a primeira vontade é partilhá-la com os outros. O meu produtor perguntava-me sempre, 'acha que as pessoas se vão rir?', e eu respondia-lhe que não tinha certeza. Mas sempre parti do princípio que devia haver mais gente que achava graça a estas ideias. Sempre parti para um projecto convencido de que haveria público que gostaria do que eu estava a fazer, e nunca me decepcionei."
Neste processo, Étaix define o seu lema: "Nunca quis fazer mais do que divertir o público. Uma das melhores coisas que podemos fazer é propor ao espectador o sonho e a evasão. Mas, dito isto, alguém que diz ter como única ambição divertir é muitas vezes considerado vazio, oco, não pode ser levado a sério..."
E o cineasta sentiu isso na pele com o desastre do seu último filme, "Pays de Cocagne" (1970), objecto radicalmente diferente dos anteriores - uma "comédia documental", inteiramente montada a partir de entrevistas de rua realizadas durante a Volta a França de 1969, filme aparentemente leve mas de uma gravidade devastadora. "Era algo em que nunca tinha pensado: pegar em material documental e criar a partir daí, na montagem, um filme burlesco sobre um período muito específico, a seguir ao Maio de 68, quando a sociedade de consumo que tinha sido denunciada e recusada tinha ressurgido em força. Descobri uma França que não conhecia, que me entristeceu, e decidi fazer um filme de comédia como se fosse um tratamento homeopático."
Mas essa "terapia de choque" que Étaix erguera aos seus conterrâneos em forma de espelho distorcido teve o efeito contrário. Arrasado pela crítica e ignorado pelo público, "Pays de Cocagne" foi retirado de cartaz ao fim de uma semana e "a partir daí, mais ninguém me quis produzir". Trabalhou longamente numa série de projectos que nunca se concretizaram, colaborou com Jerry Lewis no mítico e inacabado "The Day the Clown Cried", trabalhou como actor (sob a direcção de Nagisa Oshima ou Philip Kaufman, e mais recentemente Jean-Pierre Jeunet ou Otar Iosseliani) e dedicou-se essencialmente ao circo e ao teatro.
Agora, em 2010, depois dos tais vinte anos de ausência, as suas cinco longas ressurgem cuidadosamente restauradas sob a sua supervisão directa. Étaix confessa que se questionou sobre se o seu humor ainda fazia sentido hoje. Porque é que não havia de fazer?
"A sociedade evoluiu, os costumes mudaram... E sabe, não consigo ter uma opinião sobre os meus filmes. Não consigo ter um olhar lúcido e exterior sobre eles, estou demasiado imbricado nos pormenores. Cada vez que terminava um, apenas conseguia ver-lhe os defeitos. Mesmo hoje, o que vi pareceu-me muito imperfeito. E digo-o sem falsa modéstia. Seria o primeiro a ser honesto se os achasse conseguidos, não é porque conheço as falhas e as dificuldades que iria renegar o meu trabalho. Gostei muito de fazer estes filmes, tive muito prazer em trabalhar neles, mas não passam de uma aproximação."
E se isto é apenas uma aproximação, nem queiram saber o que o filme na cabeça de Pierre Étaix poderia ser.
A retrospectiva da obra integral de Pierre Étaix decorre na Cinemateca Portuguesa até dia 29, inaugurando hoje às 21h30 com a exibição de "O Apaixonado" em presença do realizador (repete segunda, 11, às 19h30). Seguir-se-ão "O Grande Amor" (sábado, 9, às 21h30), "Yoyo" (sexta, 15, às 19h00, e segunda, 18, às 22h00), "Entretanto Haja Saúde" (quinta, 21, às 21h30, e segunda, 25, às 19h30) e "Pays de Cocagne" (sexta, 29, às 19h00).