Bill Gates vai dar metade da sua fortuna à sociedade. E os milionários portugueses?
Ele teria gostado disto. Teria gostado da ideia, dos objectivos, do edifício, da localização e até do nome - Centro Champalimaud para o Desconhecido. Ele, António Champalimaud, era assim. Este era o seu estilo. Se fosse ele a fazer, teria feito algo parecido com isto.
Quando António de Sommer Champalimaud decidiu deixar 500 milhões euros da sua fortuna pessoal a uma fundação que promovesse a investigação na área da medicina, não fez um plano pormenorizado de todo o projecto. Não teve tempo, nem saúde, para isso (morreu de cancro aos 86 anos, em 2004). Mas deixou indicações gerais. O objectivo seria a investigação e ao mesmo tempo o tratamento de doentes, aplicando os resultados dessa investigação. Pelo menos foi assim que a presidente da fundação, Leonor Beleza, interpretou o desejo do fundador. E depois tratou de o cumprir. Como se Champalimaud estivesse vivo e a orientar os trabalhos. Quando, depois de amanhã, o centro de investigação do cancro e doenças neurológicas for inaugurado, num edifício de arquitectura grandiosa, leve e revolucionária perto da Torre de Belém, terá de ser algo de que o seu visionário se pudesse orgulhar.
"Ele não deixou muitas orientações", disse Leonor Beleza à Pública. "E o nosso principal trabalho tem sido traduzir, interpretar a vontade do fundador." As indicações originais eram vagas. Referiam-se a investigação na área da medicina, mas também ao tratamento de doenças concretas de que as pessoas padecem. A presidente, escolhida por Champalimaud, interpretou isso como sendo um centro misto de investigação e prática médica. Um centro translacional.
"Fizemos buscas, tentámos concatenar informação de várias fontes, para fazermos o que ele teria gostado que fizéssemos. Baseámo-nos em dados de pessoas que foram próximas dele, mas também daquilo que conhecemos da actividade dele. Como ele actuava, o estilo."
A opção pelo sistema translacional derivou dessa interpretação do estilo. Champalimaud era um homem que punha as ideias em prática. Por isso, se ele falou em investigação e em medicina, era porque queria que a investigação fosse aplicada rapidamente no tratamento de doentes.
Outra característica copiada: "António Champalimaud era um homem exuberante, criativo. Gostava de coisas novas, coisas quase impossíveis. Pois nós optámos pela ambição. Estar no topo do mundo. A ideia dele seria criar algo diferente. Foi o que fizemos. E montámos uma estrutura leve, com poucas pessoas, ágil e eficaz. Tal como ele faria."
É essencial cumprir a vontade do fundador, ainda que ela não seja, como é o caso, muito clara nem impositiva. "Se a fundação foi criada em testamento, com dinheiro dele, é natural que se guie pela presunção do que ele faria. A própria lei refere isto em relação às fundações - "a vontade real e presumível do fundador"."
Correr riscosDeve ser assim porque esta é a natureza da própria filantropia, explica Leonor Beleza, e também porque, se não fosse seguida a vontade do fundador, não se estaria a encorajar potenciais filantropos. E essa é uma função relevante, dos cidadãos e do Estado: encorajar a filantropia.
"Neste sector, o tipo de entidades que contribuem para a investigação são, sobretudo, as empresas da indústria farmacêutica", explica Leonor Beleza. "A seguir vêm os estados. As instituições filantrópicas surgem muito abaixo, em termos de volume de investimentos. Mas têm características únicas. São mais flexíveis e ágeis e estão mais dispostas a correr riscos", porque não vivem com a pressão do lucro, como as empresas privadas, nem da burocracia e falta de recursos, como os estados. São as únicas instituições que podem orientar o sentido da investigação para áreas potencialmente pouco lucrativas, embora cruciais em termos de necessidades de saúde.
Sem um donativo como o de Champalimaud, seria pouco provável a existência de um centro de investigação como este em alguma parte do mundo. Muito menos em Portugal. E essa foi uma das vontades expressas de Champalimaud: que a fundação se baseasse e agisse em Portugal, apesar da hostilidade que existiu para com ele no período revolucionário. Com os governos de Vasco Gonçalves, em 1975, as suas empresas foram nacionalizadas e ele teve de fugir do país. Mais tarde recuperou o património, a partir do Brasil e outros países, mas nunca deixou de sentir gratidão pelo país pobre e atrasado que o deixou ser um homem rico, sob a ditadura de Salazar.
Gratidão e responsabilidade social. Para a obra que fica, o que importa é esta última. Leonor Beleza sente-o. "Temos de gerir com cuidado os recursos que temos. Gerir como se gere uma empresa, embora os lucros obtidos sejam para reinvestir nos objectivos da fundação. Se o fundador entregou isto à sociedade, aos portugueses, agora nós temos responsabilidade perante eles. A sociedade está aí para julgar."
De certa forma, é intuitiva esta atitude de responsabilidade face a uma fundação com estas características.
Por alguma razão, ela está acima de qualquer suspeita, não obstante todas as críticas e oposições aos métodos de enriquecimento de um homem como Champalimaud. De facto, uma fundação desafia as noções de propriedade, questiona a natureza do poder e do dinheiro.
Por baixo de uma notícia sobre o Centro Champalimaud para o Desconhecido publicada pelo jornal onlineCiência Hoje, um leitor, Fernando J., publicou este comentário:
"Depois de trabalhar tantos anos numa empresa do então Grupo Champalimaud, é gratificante saber que o trabalho de tantos milhares de trabalhadores que por lá passaram está também a ser investido num domínio onde há tanto sofrimento e perdas de valiosas vidas. Só posso desejar os maiores êxitos e resultados nessa tarefa."
O trabalho de milhares de pessoas. São então elas as responsáveis por tudo isto? A quem pertence realmente o Centro do Desconhecido?
Estar na vanguardaA plateia do Centro de Congressos do Estoril está repleta, e no palco sentam-se cinco empresários e gestores de algumas das maiores empresas portuguesas. Aceitaram o convite da organização do Greenfest para falar de sustentabilidade e responsabilidade social, mas não parecem muito à vontade. Não é a sua especialidade, admitem. "Pediram-me para vir falar daquilo que eu não sei", diz Pedro Queiroz Pereira, presidente do conselho de administração da Semapa, da Portucel/Soporcel e da Secil. Explica que a Portucel, empresa do sector do papel e pasta de papel, cumpre as boas práticas no capítulo da sustentabilidade. "A Portucel fez uma opção muito séria no sentido de estar na vanguarda das empresas que respeitam o desenvolvimento sustentável. Ou não fosse a floresta a nossa matéria-prima. É fundamental que a tratemos muito bem. Já investimos mais de 10 milhões de euros em sustentabilidade." Mas logo a seguir ridiculariza as campanhas dos ambientalistas contra o consumo de papel. "Dizem: não use papel, está a fazer desaparecer as árvores. Pois se não fosse por causa do papel, quem é que plantaria árvores. Aí sim, elas iriam desaparecer." Aplausos. "Os bancos também não enviam emails aos clientes a dizer: não ponha o seu dinheiro no banco, porque o banco pode ir à falência." Mais aplausos.
O Greenfest é organizado pelo Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BSCD), a associada portuguesa do WBCSD - World Business Council for Sustainable Development, que integra 200 empresas líderes nas suas áreas de negócio, a nível mundial.
A criação do BSCD, em 2001, foi uma iniciativa precisamente da Soporcel, em conjunto com a Sonae e a Cimpor. Hoje, a associação integra 33 empresas. Muitos dos elementos da plateia destas conferências do Greenfest pertencem a essas empresas. O painel que está no palco também. No entanto, as ovações parecem ir todas para as tiradas mais ferozmente capitalistas.
Fazer, fazendo bem"Estes termos não são a minha especialidade", começa logo por dizer António Pires de Lima, presidente da comissão executiva da Unicer. Ele que é também o vice-presidente da direcção do próprio BSCD. "Para mim, sustentabilidade é assegurar o crescimento da empresa da forma mais rentável, e fazer o que há a fazer, fazendo bem." Aplausos.
Sérgio Figueiredo, que está na conferência/debate em representação da EDP e respectiva fundação, interpela-o: "É ultrapassada a visão de que a responsabilidade de uma empresa é só criar emprego e pagar impostos." E pergunta a Pires de Lima por que razão a Unicer patrocina a selecção nacional de râguebi. "Não é certamente porque os jogadores gostem assim tanto de cerveja."
"Por acaso gostam", admite o ex-vice-presidente do CDS-PP. "Mas é ridículo pensar que patrocinamos a equipa de râguebi por caridade. Não. Fazêmo-lo para vender mais. E o nosso concorrente (Centralcer) não patrocina a selecção de futebol para ajudar os jogadores. Como se eles precisassem!" Aplausos.
Ou seja, tudo o que as empresas fazem em prol da sociedade fazem-no com o estrito objectivo de ganhar dinheiro, de aumentar os lucros dos accionistas. E isto é declarado pelos mais altos responsáveis de algumas das maiores empresas portuguesas, precisamente no palco do Greenfest, a cuja direcção pertencem (no painel estão também Luís Filipe Castro Reis, chief corporate centre officer da Sonae, e Vasco de Mello, presidente do conselho de administração da José de Mello, SGPS e da Brisa).
As linhas de fractura parecem surgir em toda a sua nitidez, precisamente no seio da organização cujo objectivo é apagá-las. Mas Sérgio Figueiredo vem repor a coerência ideológica: a responsabilidade social é hoje inevitável e, por isso, já faz parte do negócio. "Acabou o tempo em que uma empresa como a EDP chegava a uma aldeia, de megafone, a dizer: "Vamos pôr aqui um estaleiro durante cinco anos, e vocês têm de sair daqui." Hoje, não basta ter o apoio do Estado, a legalidade, para construir uma barragem. É também preciso ter o direito social a operar. Por isso, a responsabilidade social não é caridade. O que é ela senão negócio?"
Caridade é outra coisa. Também diferente, por sua vez, de filantropia. Ou não? O que distingue as várias formas de intervenção social de empresas e empresários ou dos milionários, a título pessoal? Trata-se de generosidade ou de responsabilidade? São actos voluntários ou obrigatórios?
É verdade que, hoje, em muitas empresas, existe um director de responsabilidade social. Mas também é verdade que ele, na maior parte dos casos, acumula essas funções com as de director de comunicação. Que significa isso? Que a responsabilidade social só existe para fins de propaganda?
Nos Estados Unidos, na sequência da crise dos últimos anos, os multimilionários Bill Gates e Warren Buffet criaram a Giving Pledge, em que desafiam todos os multimilionários do país a doarem pelo menos metade das suas fortunas para causas sociais. Bill Gates e a mulher, Melinda, e Buffet comprometem-se a dar o exemplo. Mas mais de 40 multimilionários já juraram fazer o mesmo. Alguns vão mesmo dar 90 por cento de tudo o que possuem. O compromisso, que é moral e não legal, obriga-os a dar parte substancial das fortunas a instituições de solidariedade social, a organizações culturais ou directamente a quem precise. A forma do donativo é variável e facultativa. E ele poder ser concretizado em vida ou após a morte do doador. No total, se eles cumprirem o que prometem, estão garantidos 230 mil milhões de dólares para filantropia.
A mão direita e a esquerdaE os milionários portugueses, que pensam disto? Pedro Queiroz Pereira, cuja família detém interesses avultados nas indústrias do cimento, do papel e da celulose, não acredita muito na atitude de Bill Gates. "Isso veio muito nos jornais, mas nem sei o que é", disse à Pública. "Diz-se, fala-se, vendem-se jornais com essas coisas, mas nem sei se é verdade. Ele disse que dava 50 por cento? Podia até dar 90 por cento, que ainda continuava rico. Eles que dêem. Cada um sabe de si e Deus sabe de todos."
Para o administrador da Portucel, que acabara de discursar sobre sustentabilidade e responsabilidade social, filantropia é "uma coisa completamente diferente. A responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável são necessidades de hoje em dia. As empresas que estiverem fora disso não são empresas modernas e não estão a encarar o futuro com a segurança que deviam. Uma coisa completamente diferente é quando as pessoas decidem fazer filantropia com os seus dinheiros. Eu não lhe vou perguntar a si se dá metade do seu salário. Sabe uma coisa que lhe vou dizer? O que a mão direita dá a esquerda não vê. Quando a esquerda vê, quando se chega a saber, já não se está a fazer caridade, mas propaganda."
É a filosofia da caridade cristã. É anónima. Significa ajudar os outros sem pedir nada em troca. Nem sequer o reconhecimento público. A responsabilidade de cada um é apenas perante a sua consciência e perante Deus.
"Amor pela humanidade"O termo "filantropia" surgiu com alternativa a este conceito. O imperador Flávio Cláudio Juliano, que no século IV se encarregou de restaurar o paganismo como religião de Roma, propôs a filantropia para concorrer com a caridade dos cristãos. Ao contrário desta, a filantropia pode ser discreta, mas também pode ser pública, para favorecer a imagem de quem a pratica. A palavra, que significa "amor pela humanidade", terá sido inventada há 2500 anos pelo dramaturgo grego Ésquilo, no seu Prometeu Acorrentado. Segundo o mito, Prometeu salvou os homens primitivos da destruição que Zeus lhes tinha vaticinado, dando-lhes a conhecer o fogo e o optimismo. Prometeu fez isto porque amava a humanidade. Era filantropo. Segundo a cultura grega, é este amor pela humanidade que está na origem de toda a civilização.
Num caso da filantropia grega ou da caridade cristã, os conceitos estão desde a origem ligados a estes dois pólos de motivação: voluntarismo e responsabilidade. Se o primeiro é antes de mais uma manifestação de poder, o segundo reflecte as limitações desse poder, impostas pelo sentido de justiça.
É claro que a História foi moldando a interpretação deste princípio de justiça social. Na Idade Média, a riqueza e o poder eram vistos como um direito imanente, de origem divina. A caridade era uma espécie de imposto dos privilegiados: o preço a pagar para se entrar no céu, depois da morte. O Renascimento recuperou o homem como medida de todas as coisas, e valorizou a filantropia e o mecenato, como emblemas de grandeza dos poderosos.
No período das Luzes, o conceito foi definido na sua acepção moderna: são filantrópicas todas as iniciativas privadas para o bem público, por oposição às iniciativas estritamente empresariais, que são privadas para o bem privado, e governamentais, que são públicas para o bem público.
De uma forma ou de outra, a filantropia sempre existiu. A questão que se põe hoje é esta: ela é uma obrigação? Em princípio não é. Afirmar o contrário configura aliás uma contradição nos termos: não se pode amar (a humanidade) por obrigação. Mas há dados novos na discussão. Primeiro, a contestação teórica e militarmente sólida ao sistema capitalista extinguiu-se depois da implosão do bloco comunista. A seguir, a economia de mercado deu provas de não garantir os equilíbrios sociais mínimos. Depois foi o Estado a falhar na sua função redistributiva. Por fim, sobreveio a actual crise, que elevou as dificuldades a dramas.
Há portanto razões para reequacionar o problema da responsabilidade. Por um lado, as desigualdades sociais tornaram-se demasiado agudas e injustas. Por outro, tudo indica que foi a demasiada avidez de grandes empresas que provocou a crise.
A verdade é que, de súbito, alguns dos homens mais ricos do mundo sentiram, se não um peso na consciência, pelo menos uma interpelação ao seu sentido de responsabilidade. Bill Gates e Warren Buffet, os dois empresários mais ricos da América, cujas fortunas juntas somam mais de 90 mil milhões de dólares, acharam que chegou a hora de devolver à sociedade o que ela lhes deu. Buffet prometeu mesmo que vai dar mais de 99 por cento do que tem. É certo que a responsabilidade social dos empresários tem nos EUA e no mundo anglo-saxónico um significado diferente do que tem na Europa continental. Aqui, pela quantidade de impostos que cobra, o Estado tende a assumir o exclusivo da responsabilidade. E também é verdade que um por cento da fortuna de Gates ou Buffet equivale sensivelmente à totalidade do património dos maiores milionários portugueses. Por outro lado, a filantropia faz parte da base teórica que enformou a Revolução Americana. E poder-se-ia ainda especular que na América se enriquece mais facilmente. Um empresário talentoso pode, numa dúzia de anos, recuperar uma fortuna perdida. Em Portugal, "o dinheiro custa a ganhar", diz a sabedoria comum. Tudo é imponderável e o Estado não ajuda quem tem iniciativa, dizem os empresários. Posto isto, que responsabilidade sentem eles perante a sociedade num período de crise?
Maior vocação americanaOs empresários portugueses "sentem uma enorme responsabilidade, mas contam já com um esquema de distribuição pelo Estado, a quem não se tencionam substituir", disse à Pública Vasco de Mello, cuja família, segundo a revista Exame, detém a terceira maior fortuna do país. "As funções do Estado são muito diferentes na Europa e nos EUA, onde a responsabilidade individual é muito maior. A realidade anglo-saxónica valoriza mais a ideia de devolver à sociedade uma parte significativa daquilo que a sociedade deu a algumas pessoas através do sucesso empresarial. Há uma maior vocação americana para esse tipo de actuação, embora haja também na Europa muitos casos em que isso acontece. Em, Portugal há muitos casos de fundações que têm um papel muito importante na sociedade."
O grupo José de Mello tem uma tradição antiga de filantropia em Portugal, quer no apoio social aos seus trabalhadores, quer às povoações e regiões onde exerceu as suas actividades. Actualmente, desenvolve vários projectos de solidariedade social transversais às empresas onde tem participações - Brisa, Efacec, CUF, José de Mello Saúde. O principal é o projecto Ser Solidário, para o qual todos os trabalhadores descontam um por cento do salário. O total recolhido, que em 2009 ascendeu a 56 mil euros, reverte para Instituições de Solidariedade Social votadas pelos trabalhadores.
Além disso, o grupo atribui donativos à Comunidade Vida e Paz (10 mil euros) para pagar a festa de Natal dos sem-abrigo de Lisboa, à Aldeia de Crianças SOS (12 mil euros) e a outras organizações. A título individual, sabe-se que os vários irmãos Mello fazem donativos, embora não o publicitem.
"Responsabilidade social e filantropia são duas áreas completamente distintas", explica Vasco de Mello. "A filantropia é aquilo que é dado sem esperar qualquer retorno, excepto um melhor relacionamento com as partes interessadas. É uma função social mais individual. As empresas também a praticam, mas não faz parte da sua base de negócio." A responsabilidade social, é assumido, implica um retorno para o accionista.
A terceira maior fortuna do país (estimada em 1015 milhões de euros) atribui portanto todos os anos algumas dezenas de milhares de euros à filantropia (considerada num sentido lato). E o que se passa com os dois homens mais ricos do país, Américo Amorim e Belmiro de Azevedo?
A Sonae, uma holding de várias empresas nos sectores da distribuição, gestão de centros comerciais, media e software, assume uma política de responsabilidade social integrada na sua cadeia de negócio. Ou seja, integra nas suas práticas princípios de sustentabilidade e equidade social, promove a formação e educação dos seus funcionários e respectivos filhos, ao mesmo tempo que distribui donativos por várias IPSS (instituições particulares de solidariedade social). Tudo isto nos é explicado pelo seu director de comunicação, Miguel Rangel.
Todos os dias, por exemplo, uma grande quantidade de produtos à venda nos hipermercados é distribuída por cerca de 500 organizações sociais. São produtos que não têm valor comercial, por terem algum defeito ou estarem demasiado próximos do fim do prazo de validade. Iriam para o lixo, de outra forma, e a sua entrega é feita a expensas das organizações beneficiárias. Ou seja, a Sonae não gasta um tostão com este gesto, embora esteja em causa, anualmente, um valor de 9 milhões de euros em produtos.
Estas acções são geridas pela Fundação Belmiro de Azevedo, que tem também a incumbência de atribuir bolsas de estudo aos filhos dos funcionários com melhores classificações.
O mecenato é outra área de intervenção da Sonae. Contribui com fundos para o Ipatimup (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto), o Museu de Serralves e a Casa da Música, em cuja administração participa, por essa razão. Ao todo, são gastos entre 10 milhões e 11 milhões de euros por ano em rubricas de responsabilidade social. Nada comparável à dimensão dos donativos de Bill Gates e Warren Buffet, mesmo em termos relativos.
Belmiro de Azevedo, no entanto, mostra compreensão pelo gesto dos milionários americanos. "A atitude desses empresários é assinalável", disse à Pública, num depoimento escrito. "Na minha opinião, vários empresários portugueses já têm tido, ao longo de anos e anos, este espírito e esta sensibilidade de benefício comum nas suas actividades pessoais e empresariais. Provavelmente, já doaram à sociedade uma boa parte das suas fortunas, embora em escalas diferentes, porque Bill Gates e Warren Buffet possuem fortunas muito superiores ao somatório das 10/20 grandes fortunas na Europa."
Empréstimo à sociedadeNa opinião do segundo homem mais rico de Portugal, com bens avaliados em 1283 milhões de euros, alguns milionários poderão também estar a preparar-se para ceder grande parte dos bens à comunidade. "Há empresas e empresários portugueses vivos e activos a organizar veículos - fundações - para, na altura adequada e em vida, disporem conscientemente de parte da riqueza criada, devolvendo à sociedade aquilo que a sociedade lhes confiou."
Esta noção de que a riqueza de um homem não é totalmente sua, mas uma espécie de "empréstimo" da sociedade, é partilhada pelo mais milionário dos milionários portugueses, Américo Amorim.
"Exemplos destes, em qualquer momento da História, são sempre louváveis", disse à Pública, também por escrito, Américo Amorim, referindo-se ao Giving Pledge, de Gates e Buffet. "Historicamente, filosoficamente, o que fez Bill Gates e mais recentemente Warren Buffett são actos de cultura filantrópica, que faz parte da sociedade dos Estados Unidos. Tudo o que sejam actos de disponibilidade para produzir instrumentos de riqueza moral ou económica são positivos. Não é muito comum, culturalmente, este fenómeno existir em Portugal. No entanto, há casos muito positivos, entre outros, o da Fundação António Champalimaud."
Américo Amorim, cuja fortuna está avaliada em 2188 milhões de euros, lidera o Grupo Amorim, cuja principal área de actividade é a indústria da cortiça. Alargou os seus interesses para os sectores da energia, turismo e finança, nunca deixando porém de estar ligado a acções de carácter social na povoação de que é originário e onde ainda está baseado, Mozelos, no concelho de Santa Maria da Feira.
Para ele, responsabilidade social é isso: ajudar de forma directa os que lhe são próximos, quer sejam colaboradores, quer outro tipo de stakeholders (partes de alguma forma envolvidas ou afectadas pelas actividades das empresas).
"O pagamento de impostos não esgota as obrigações solidárias das empresas e dos empresários. A responsabilidade não deve, porque não o é, ser só exigida ao Estado. As empresas bem sucedidas, ou os empresários responsáveis, são verdadeiros centros de formação, de estabilidade social e cultural na área geográfica onde integrados. Não há empresários (que não proprietários de fábricas) que não tenham uma grande disponibilidade intelectual e prática de contribuir para a solução dos problemas sociais e culturais nas suas regiões."
Obrigação de distribuirE o homem mais rico do país dá exemplos: "A construção de casas sociais de qualidade saudável a preços simbólicos. O apoio à assistência médica e a manutenção de cantinas de qualidade a preços muito baixos. O apoio ao estudo nos tempos disponíveis dos que assim o desejarem. A facilidade de horários adaptados à irreverência daqueles que se quiserem valorizar, estudando. O apoio financeiro à compra dos livros. A capacidade de organização de áreas desportivas, e tantas outras responsabilidades praticadas no quotidiano. Não há empresas de sucesso sem o sucesso de todos aqueles que as integram."
Esta ideia, apesar de fazer parte de um certo espírito tradicional dos empresários portugueses (perfilhado por exemplo por, além de Amorim, Rui Nabeiro, da Delta Cafés, que não quis falar à Pública), traduz a mais moderna concepção de responsabilidade social, hoje adoptada por necessidade pelas maiores empresas do mundo.
João Pereira Coutinho, considerado o 12.º homem mais rico do país segundo a mesma lista da Exame, concentra as suas acções filantrópicas nas crianças e na recuperação de património arquitectónico. "Não se pode estar em todo o lado e estas parecem duas áreas prioritárias", disse à Pública. Está a financiar por conta própria o restauro de várias igrejas e monumentos. Considera isso uma responsabilidade. "Eu sou católico. E quando se tem a sorte de o "chefe lá de cima" nos ter dado mais do que aos outros, temos a obrigação de distribuir." Ou, como mais tarde reformulou: "Quando temos a sorte de ter mais capacidades de realização, de ser mais criativos do que os outros, temos obrigação de ajudar os outros."
Para além dos gestos filantrópicos, João Pereira Coutinho, líder do grupo SGC, considera no capítulo da responsabilidade social a sua opção por investir em combustíveis vegetais. Comprou milhares de hectares em Moçambique para cultivar jatrofa, um vegetal que pode ser transformado numa espécie de biodiesel. "Tenho a preocupação de trabalhar com a consciência de melhorar um pouco o mundo em que vivemos. Por isso quero estar nesse sector das energias limpas."
O gesto de Bill Gates não o comove muito. "Ele pode dar tudo isso sem fazer qualquer diferença. A partir de X mil milhões nada muda. Ter 10 ou 30 ou 50 mil milhões é igual. Fica-se sentado à mesa um pouco mais à direita do chefe de Estado, e é tudo,"
A família Mota, da empresa do sector da construção Mota-Engil, tem também uma tradição de ajuda social. Para sistematizar as suas acções, e impedir que elas não tenham resultados proporcionais ao investimento, acaba de criar, também, uma fundação. Rui Pedroto, administrador da Fundação Manuel António da Mota, explica que as práticas de responsabilidade e solidariedade social se tornaram indipensáveis para uma empresa como a Mota-Engil. "O negócio da construção é muito impactante. É preciso auscultar as partes interessadas e ter uma política filantrópica."
Além de bolsas de estudo para os filhos dos trabalhadores mais pobres, a fundação vai também canalizar donativos para organizações de solidariedade social que se mostrem eficazes (instituiu um prémio de 50 mil euros para a que tiver acções mais válidas). "É tempo de as empresas que fazem donativos controlarem o percurso e os resultados desses donativos. É normal que quem dá exija saber o que foi feito com o dinheiro."
Agradar aos "stakeholders"Hoje, muito para além dos actos de filantropia, as empresas são obrigadas a adoptar práticas de sustentabilidade, na área ambiental, mas também de equilíbrio social, que lhes permitam estabelecer boas relações com os seus stakeholders.
Estas práticas, apesar de cada vez mais serem vistas como obrigatórias, vão muito para além do mero cumprimento das leis. Incluem actos e rotinas voluntários, mas que as empresas incluem nos seus objectivos e compromissos. Designadamente através da participação em associações como a BCSD, que estabelecem metas e monitorizam resultados.
Segundo um estudo feito a 45 empresas portuguesas pela BCSD em 2008, o seu conjunto investiu 65 milhões de euros na comunidade durante o ano, 30 por cento mais do que no ano anterior. Isso representou 1,3 por cento dos resultados das empresas antes dos impostos. Além disso, mais de metade das empresas investem em programas de voluntariado ou organizam recolhas de bens para distribuir. A maioria (78 por cento) não se limita a doar dinheiro, mas organiza projectos próprios de solidariedade. As áreas dominantes de intervenção são a pobreza, as crianças e a cultura.
Segundo Luís Rochartre, secretário-geral da BCSD Portugal, o objectivo da associação não é apenas convencer as empresas a adoptarem práticas de responsabilidade social, mas também a que o façam bem. "Nós dizemos às empresas que, se querem ajudar, o façam nas áreas em que têm competências. Não desbaratem recursos em acções dispersas. Sejam inclusivos. Incluam as preocupações sociais nas vossas rotinas, nas vossas actividades", disse Rochartre à Pública.
Nathalie Ballan, uma francesa que veio para Portugal para convencer as empresas a investirem bem na sociedade, vai mais longe. Fala de um conceito novo, que integra responsabilidade social e filantropia: inovação social. "Se as empresas querem dar alguma coisa à sociedade, dêem o que têm de mais valioso: o seu know-how, as suas capacidades de gestão. Se é nisso que são bons, se é isso que sabem fazer, porque hão-de dar dinheiro para causas que nada têm a ver com as suas áreas de negócio e das quais não percebem nada?"
É um novo conceito de filantropia (Nathalie não lhe chamaria isso): trata-se não da satisfação moral de quem dá, mas dos resultados efectivos para quem recebe. Há várias experiências no mundo no campo da inovação social. A mais conhecida é a acção lançada por Mohamed Yunus, o criador do microcrédito, com a Danone no Bangladesh. A empresa de iogurtes criou um produto que possui todas as vitaminas e proteínas necessárias às populações de crianças pobres a quem os iogurtes são depois distribuídos. E para essa distribuição são usadas pessoas que estão desempregadas, com os seus meios de transporte tradicionais.
Nathalie, que na adolescência militou em partidos de extrema-esquerda, dá muitos exemplos. Fundou em Portugal uma empresa chamada Sair da Casca, cuja actividade é dar ideias às empresas portuguesas no campo da inovação social. Ela acredita que este é um caminho para a justiça. Talvez o único possível. "As empresas também têm o direito de ser militantes", diz.
Reportagem publicada na Pública de 3.10.2010