George A. Romero: "Não percebo como é que os mortos-vivos se tornaram tão populares"

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George A. Romero Mario Anzuoni/Reuters

George A. Romero ri-se com gosto. Mas, por trás do bom humor patente ao longo de 25 minutos de conversa, o realizador nova-iorquino, uma das figuras maiores do cinema independente americano, em Portugal a convite do festival MOTELx, confessa uma surpresa genuína pela popularidade de um género que criou quase sem dar por isso.

Em 1968, a sua primeira longa-metragem, “A Noite dos Mortos-Vivos”, feita com pouco dinheiro, material emprestado e uma equipa de amigos, cristalizava na sua história (um grupo de sobreviventes enfrenta uma inexplicável ressurreição dos mortos, regressados à vida para se alimentarem dos vivos) muito do mal-estar de uma América entalada entre a contra-cultura, a guerra do Vietname e o conflito de gerações.

“A Noite dos Mortos-Vivos” (que nunca teve estreia comercial oficial em Portugal) faz hoje parte da Biblioteca do Congresso norte-americana. E tornou-se num dos “pontapés de saída” de uma nova geração de estilistas do género, da qual faziam igualmente parte Tobe Hooper, Wes Craven ou John Carpenter, que construíram as suas carreiras em independência financeira e criativa à margem do sistema dos estúdios.

Mas apesar desse impacto, Romero não se consegue ver como um cineasta influente, sobretudo porque muitos dos seus filmes foram pouco ou nada distribuídos e nunca ultrapassaram o circuito de culto. “De vez em quando, quando penso nisso, fico um bocado triste por saber que as pessoas conhecem mais os meus filmes de zombies do que os outros. Mas os meus filmes têm uma longevidade invulgar, existem todos num clube de vídeo qualquer, e não me posso queixar. Continuo a encontrar gente que me diz que acabou de descobrir “Experiência Alucinante” ou “Bruiser”...”

“Prefiro filmar mortos-vivos a ter que batalhar por algo diferente”

Quatro desses filmes menos conhecidos fazem parte da retrospectiva do MOTELx que Romero veio acompanhar: “The Crazies” (1971, recentemente refeito por Breck Eisner), “Experiência Alucinante” (1985, o único dos quatro estreado comercialmente entre nós), “Creepshow” (1982, escrito por Stephen King) e “Martin” (1977) - “o meu filme preferido, que praticamente não foi distribuido e que as pessoas estão agora a começar a descobrir”.


O cineasta, actualmente com 70 anos, admite que o impacto de “A Noite dos Mortos-Vivos” se tornou numa espada de dois gumes - “criou uma fasquia que me vi obrigado a igualar, mas ao mesmo tempo permitiu-me continuar a trabalhar. Gostaria de tentar fazer outras coisas, mas prefiro fazer mais filmes de mortos-vivos a ter que batalhar por algo diferente. Estou numa idade em que prefiro trabalhar; provavelmente só tenho mais dois ou três filmes para fazer e prefiro fazer aqueles que posso, em vez de esperar por oportunidades que talvez nunca cheguem.”

O que não significa que não goste de filmar zombies, aos quais voltou por cinco vezes. “A Noite dos Mortos-Vivos” iniciou uma série continuada com “Zombie – A Maldição dos Mortos-Vivos” (1978), “Day of the Dead” (1985, inédito em Portugal) e “Terra dos Mortos” (2005), que pertencem a uma mesma cronologia, “Diário dos Mortos” (2007) e “Survival of the Dead” (2009).

“Divirto-me imenso a fazer estes filmes e, finalmente, como sou proprietário dos direitos, posso reutilizar as personagens. “Survival of the Dead” pega numa personagem secundária de “Diário dos Mortos” e tenho mais duas histórias com personagens secundárias desse filme que posso desenvolver, adoraria poder fazer quatro filmes interligados.”

Isso é facilitado pelas condições de trabalho que encontrou.
“Hoje em dia é muito difícil conseguir financiamento para o que quer que seja, e tenho um nome suficientemente conhecido para conseguir contratos pequenos que me deixam encantado. Nunca se tem o dinheiro de que se precisa para fazer qualquer filme, mas prefiro ter quatro ou cinco milhões de dólares e ter controle criativo absoluto a ter vinte milhões e não me deixarem ter mais um dia de rodagens. Isso é que é a frustração completa. Não vejo um orçamento baixo como um problema, mas sim como uma libertação. Permite-me decidir não onde vamos gastar o dinheiro mas onde não o vamos gastar.”

“É uma tradição dos filmes fantásticos abordar assuntos sérios”

Os filmes de Romero – e, sobretudo, os seus filmes de zombies – têm um lado muito forte de sátira e comentário social e política, com a sociedade de consumo, a omnipresença dos meios de comunicação ou o militarismo nas entrelinhas.


“Não creio que fosse capaz de fazer uma crítica séria à administração Bush, por exemplo. É-me muito mais fácil introduzi-la neste contexto, de um modo mais ligeiro. E é uma tradição dos filmes fantásticos abordar assuntos sérios, mas parece-me que hoje em dia cada vez menos pessoas usam o género para falar dos problemas dos nossos dias. Não percebo porque é que deixaram de olhar para ele como algo político. Por exemplo, em “The Crazies” [sobre uma cidadezinha afectada por uma experiência militar], a nossa ideia era não conseguirmos distinguir quem estava louco e quem não estava. E a remake tornou-se numa espécie de filme de zombies, com pústulas e feridas visíveis...”

Aliás, Romero mantém-se diplomaticamente silencioso sobre o cinema de terror que se faz hoje em dia. “Vi alguns dos filmes de zombies que se fizeram, houve amigos que me recomendaram um ou outro...” E? “Devo dizer que não vi nenhum que se aproximasse das minhas ideias”, responde entre risos. Mas não cita títulos nem nomes.

Amanhã, Romero encontra o seu público no palco do São Jorge. É uma das coisas que mais gosta no seu estatuto de cineasta consagrado – não tem, por exemplo, problemas em colocar os óculos de massa que são a sua “marca registada” para a fotógrafa do PÚBLICO. “Divirto-me imenso a visitar festivais e convenções de horror, porque me permite conhecer os fãs. Os ferrenhos, os fãs verdadeiros, são muito honestos e dizem o que têm a dizer sem problemas. Mas não embarco nada nessa adoração do mestre. Para isso prefiro ficar em casa com o gato e a namorada!”

George A. Romero estará num encontro com o público na sala 1 do cinema São Jorge, Domingo, dia 3, às 16h30. A entrada é livre no limite dos lugares disponíveis. A retrospectiva que o MOTELx lhe dedica termina com "Monkey Shines"/"Experiência Alucinante" (São Jorge, sala 3, Sexta, dia 1, às 17h00), “Creepshow” (São Jorge, sala 3, Sábado, dia 2, às 17h00) e “Martin” (São Jorge, sala 3, Domingo, dia 3, às 19h30). Os bilhetes custam entre 3 e 3,50 euros.

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