Querido diário, conto-te tudo sobre o Blitz
Quando o Reino Unido começou a ser bombardeado, há 70 anos, centenas de diaristas escreveram as suas experiências. Faziam parte do projecto Mass-Observation,hoje um arquivo, guardando a memória da guerra na frente doméstica. "Continuo a sonhar com um mundo melhor e ainda a não odiar os alemães", escreveu uma mulher no meio dos ataques. Por Susana Moreira Marques, em Sussex, Inglaterra
3 de Setembro de 1939
3 p.m. Ontem à noite acordámos com a trovoada e andámos pela casa a ver se todos estavam bem. Inevitavelmente, pensámos que eram raides (...)
Eu e outra rapariga fomos tentar comprar leite. Voltámos mesmo a tempo de ouvir o fim do discurso do PM. GUERRA. Silêncio e um ar de "pronto, já está". E imediatamente as sirenes. Alguma confusão, mas não houve pânico. Fomos para a cave, mas senti-me pateta ali à espera. Voltei para cima e trabalhei. Gritei o "All Clear" aos que ficaram. (...)
Muitas pessoas em fatos de domingo a passear no parque, muitas com caixas com máscaras de gás. Eu agora levo sempre comigo a minha máscara do serviço. Mas ainda não me parece real, esta guerra. (Diário de Olivia Cockett, arquivo do Mass-Observation, publicado em Love and War in London)
7 de Setembro de 2010
Um ano depois de o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain ter anunciado o início da guerra e preparado os britânicos para o pior, a 7 de Setembro de 1940 364 bombardeiros e 515 caças da Luftwaffe alemã aproximaram-se dos céus de Londres. Só nessa primeira noite de bombardeamentos morreram mais de 400 pessoas, e os ataques continuariam por mais 75 noites consecutivas.
Começava o período do Blitz - diminutivo de "Blitzkrieg" ou "guerra-relâmpago", que designava a estratégia militar alemã - e a guerra passava então a ser "real".
Foi há 70 anos e o aniversário serve de pretexto para voltar a ouvir as histórias dos sobreviventes: aventuras de conduzir ambulâncias por uma cidade desfigurada, desenterrar pessoas vivas, enterrar pessoas mortas, dormir mal no metro, comer somente o que se plantou no quintal. Foram eles que fizeram a imagem do britânico, como a conhecemos ainda hoje: pragmático, corajoso, sem melodrama - numa palavra, resiliente, como se a palavra resiliente tivesse nascido no Blitz, sido inventada só para eles. Os sobreviventes têm hoje 80, 90, 100 anos. Brevemente não estarão cá para contar as histórias. Passaremos então a contar o que nos contaram. Mas não é a mesma coisa.
8 de Setembro de 1940
... telhados e vidros partidos por toda a parte... fumo no céu vindo da direcção das docas. As pessoas empurram-se para sair do abrigo, e ouve-se gritar, chorar e chamar por familiares desaparecidos. (...) Mais tarde nesse dia, no quarto da frente de uma das casas atingidas, agora sem janelas, uma mulher senta-se rodeada dos restos dos seus pertences e chora. É o seu dia de anos. "Tenho vinte e seis anos!", grita. "Estou a caminho dos trinta! Quem me dera estar morta!" (Relatório de um anónimo para o projecto Mass-Observation)
Setembro de 1974
Tom Harrisson nunca acreditou na memória oral. E quando nos anos 70 começou a escrever Living Through the Blitz, ouvindo sobreviventes e comparando estas versões com o que tinham escrito durante a guerra para o projecto Mass-Observation, provou que tinha razão: a história tinha que ser contada no momento em que acontecia.
Tom Harrisson - antropólogo, ornitólogo, jornalista, aventureiro, descrito na imprensa inglesa dos anos 70 como o "último dos polímatos britânicos" - tinha fundado o projecto Mass-Observation ainda antes da guerra, em 37, com o poeta Charles Madge e o cineasta Humphrey Jennings. Era um projecto de sociologia, antropologia, etnografia, jornalismo, documentário, estatística. Era, como escreveu Madge num manifesto, "(i) científico, (ii) humano, e portanto, consequentemente, (iii) poético". Queriam fazer uma "antropologia de nós". Dariam voz ao homem comum. Fariam um retrato fiel da sociedade britânica.
O primeiro grande trabalho - algo inspirado na nova sociologia americana e nos movimentos documentaristas que queriam mostrar a miséria da grande depressão dos anos 30 - foi Worktown. Como antes tinha feito para estudar uma tribo de canibais, Harrisson - da classe média alta e efectivamente distante de um homem da classe trabalhadora tanto como um homem civilizado de um canibal - mudou-se para Bolton e disfarçou-se de condutor de camiões. Chamou Humphrey Spender para fotografar. Outros mass-observers iam para a rua com cadernos tirar notas.
Mas a ideia da história a ser vivida e a ser escrita simultaneamente talvez só tenha surgido depois, quando a guerra começou e os voluntários na lista de contactos do Mass-Observation aderiram entusiasticamente aos pedidos para que mantivessem diários durante o período de guerra. Os diários eram escritos com o discernimento de quem sabia que um dia seria lido, mas sem perder a espontaneidade nem o sentido de urgência de quem sabe que pode não estar vivo para escrever a entrada do diário do dia seguinte.
Durante duas décadas, esse material esteve num canto de uma empresa, que mantinha o nome Mass-Observation mas fazia estudos de mercado.
O arquivo foi resgatado pela universidade de Sussex e Tom Harrisson, regressado à Europa depois de 20 anos no Bornéu, ocupou um espaço da biblioteca da universidade.
Foi mais ou menos nessa altura que Dorothy Sheridan foi a uma entrevista para trabalhar em part-time como arquivista na biblioteca da universidade de Sussex. Era 1974, as mulheres jovens costumavam ser inseguras e ela não era excepção. Foi recebida por um figurão de homem, no início dos seus 60, mas vigoroso, exibindo umas patilhas de outro tempo, o cabelo ainda forte penteado para trás.
Era um homem inspirador, energético, mas também inconstante, feroz. Podia, por exemplo, começar aos gritos porque um pacote com material do arquivo tinha chegado danificado ao seu correio. O coração de Sheridan tremia, como as suas mãos, cada vez que levantava o auscultador e pedia à telefonista para fazer uma chamada internacional. Harrisson vivia então em Bruxelas com a mais recente mulher, uma baronesa belga.
Harrisson teve tempo de ensinar a Sheridan a importância de nomear cada papel, cada caixa, porque era pelos detalhes que se via o todo, e um arquivo era a melhor maneira de percebermos o nosso lugar na história. Depois, em 1976, Tom Harrisson morreu.
Em breve, Dorothy Sheridan estava ela mesma a publicar os diários. Tinha percebido que a maior parte era escrita por mulheres. Elas tinham sido a face mais visível da frente doméstica e, com a paz, voltado à condição de invisíveis. Até aos anos 70.
Em breve, Dorothy Sheridan não era já uma garota insegura, mas a directora do arquivo. Iria lembrar-se de Harrisson muitas vezes, principalmente quando andasse de mota. Pouco antes de morrer, Tom Harrisson tinha-lhe dado 100 libras: para comprar um carro e o conduzir nas temporadas que passava em Sussex. Com o dinheiro, Dorothy Sheridan tinha comprado uma mota. "Obrigada, Tom", pensava, montada na mota, a sentir a velocidade e cada vez mais convicta de que os primeiros mass-observers tinham razão: o que cada um de nós pensa é importante.
11 de Setembro de 1940
Registo material. No domingo à noite apaguei uma [bomba] incendiária ao pé do anexo do carvão. Segunda à noite uma explosão ao fundo do jardim deitou abaixo os muros e fez uma cratera com dez pés de profundidade e trinta de diâmetro. Claro que partiu muitas janelas. Não tivemos baixas. Consertei com cartão as nossas janelas e as da senhora que vive sozinha do outro lado da rua. Fui declarar os estragos. Ninguém veio tomar nota oficialmente. (...)
Desde sábado passado que não me afastei mais do que meia milha de casa. Vi duas igrejas, seis casas, destruídas; janelas partidas, para aí 200; vestígios de 15 bombas incendiárias. Os incêndios terríveis que vejo da minha janela vão assombrar-me para sempre. (...)
Continuo a filosofar para mim mesma. A sonhar com o mundo melhor que virá (de onde?) e ainda a não odiar os alemães. Ainda não consigo ficar quieta quando ouço pessimismo ou optimismo supérfluo. Ainda feliz por estar viva, ainda esperando estar morta. (Diário de Olivia Cockett)
12 de Setembro de 2010
No website do Mass-Observation faz-se um apelo aos cerca de 500 colaboradores para que registem o seu dia de 12 de Setembro. Daqui a 70 anos, eventualmente alguém se interessará pela forma como se passava um dia de fim de Verão em 2010.
No início dos anos 80, o Mass-Observation recomeçou o seu projecto de recolher testemunhos da vida quotidiana. Mas a vida quotidiana mudou. O homem comum tem voz. As pessoas escrevem as suas experiências em blogues, intervêm como cidadãos-repórteres, colocam diários visuais no YouTube que são vistos por milhares de pessoas. Vivemos numa época de permanente mass-observation.
12 de Setembro de 1940
Quando cheguei a casa tinha uma encomenda do Cliff, e quando a abri ri-me até chorar. Era a minha prenda de anos, disse que tinha mandado já caso eu precisasse. É um "fato-sirene"!! (...) "Largo o suficiente e fácil de vestir para pôr por cima de qualquer roupa." É a coisa mais louca e divertida que uma matrona de 51 anos pode ter! (Diário de Nella Last, arquivo do Mass-Observation, publicado em Nella Last"s War)
16 de Setembro de 2010
Corredores e corredores de prateleiras com caixas de cartão, fantasmagóricas, mas onde Harrisson imaginava que os estudantes fariam amor nos intervalos das suas investigações.
Lá fora, o campus de Sussex enche-se de jovens excitados que chegam para o início do ano lectivo. É um grande espaço verde, como outros campus. Os edifícios, como tantos outros edifícios, são de tijolo, o heróico material da reconstrução do pós-guerra.
De uma dessas prateleiras, Jessica Scantlebury, arquivista, tira uma caixa identificada como "Setembro de 1940"; "Diários de Guerra"; "Mulheres".
Dentro da caixa, os diários de guerra são conjuntos de folhas frágeis que resistiram ao tempo. Alguns são dactilografados, mas a maior parte está escrita à mão, a caneta, em letras perfeitas e linhas direitas de quem tomava o seu tempo, mesmo sendo bombardeado, para escrever.
Os diários estão separados uns dos outros apenas por uma identificação de apelido e número de diarista. As entradas, umas atrás das outras, são fascinantes: cómicas, comoventes, chocantes.
Uma professora de Música no Yorkshire confessa o que não confessaria em mais nenhum lugar: "Quando ouvimos as notícias do terrível raide em Londres, ficámos preocupados com os nossos amigos e família. Perguntamo-nos se devemos escrever à mãe de John e às irmãs a perguntar se querem vir para cá, se bem que sabe Deus onde é que as podia instalar - e tremo só de pensar em ter que viver com a minha sogra. Isso podia ser pior do que bombas. Mas c"est la guerre."
Aqui perto da universidade de Sussex, uma enfermeira reformada conta com humor que, no dia 4 de Setembro de 1940, os homens da sua vila apanharam alemães - em vez de couves - depois de um caça se despenhar num campo.
A mesma enfermeira, num dia de Setembro de 1940, pôs-se a caminho de Brighton, e quando soaram as sirenes decidiu "Para o diabo com Hitler"; e foi à mesma fazer as suas compras.
Quando, no dia 8 de Maio de 1945, Winston Churchill assomou a uma varanda de Whitehall - um mão com o charuto, a outra a acenar - e olhou para a multidão na rua a festejar a vitória, sabia que tinham sido todas aquelas donas de casa a mandar Hitler para o diabo que tinham ganho a guerra.
18 de Setembro de 1940
Fico contente de poder dizer que já não tenho tanto medo. A semana passada não consegui dormir de todo e achei muito difícil chegar ao fim de cada dia de trabalho, mas esta semana sinto-me muito mais forte. Acho que é o que está acontecer com toda a gente, trata-se de ultrapassar o primeiro choque. (Diário de Phyllis Warner, publicado em Love and War in London)
20 de Setembro de 2010
Leonor Cutileiro atende o telefone desde Lewes, Sussex. Acabou de mudar-se, com a família, vindos do Porto. Leonor Cutileiro está a começar um doutoramento para estudar as metodologias do Mass-Observation.
O que é que acontece quando vamos para a rua perguntar às pessoas o que pensam, sem pressão de vender jornais ou de criar uma estatística para uso imediato? O que é que acontece quando envolvemos as pessoas numa comunidade decididas a contar a sua própria versão da história?
O que Leonor Cutileiro gostaria era de aplicar esta ideia em Portugal. Vai começar na zona do pólo universitário da Asprela, no Porto, a fazer a "antropologia de nós".
30 de Setembro de 1940
Tinha uma carta à minha espera aqui. G. foi morta por uma bomba numa pensão de Londres terça-feira passada. Ela era uma rapariga de vinte anos, bonita, viva e alegre (...) Parece impossível acreditar que uma amiga possa desaparecer, simplesmente assim, especialmente alguém tão inocente e adorável - isto traz a guerra perto de casa como nunca tinha sentido. (Diário de Phyllis Warner)
30 de Setembro de 2010
James Hinton está a escrever a história do Mass-Observation. Historiador, começou por frequentar o arquivo - como tantos outros investigadores - para fazer pesquisa sobre a Segunda Guerra Mundial.
Começando a trabalhar nos diários de guerra do arquivo, percebeu que era semelhante a "trabalhar a partir de romances".
São os sentimentos, mais do que os factos - e um bom historiador sabe isto -, que tornam um evento ou um período atraente.
O primeiro projecto que Hinton fez depois de se reformar foi escrever as biografias de alguns dos diaristas do Mass-Observation durante a guerra, em Nine Wartime Lives, Mass-Observation and the Making of the Modern Self (lançado no início do ano no Reino Unido). No prefácio explica que nos últimos anos os historiadores têm tentado contrariar a ideia de que no tempo de guerra todos eram heróis, todos estavam unidos e os britânicos tinham outros valores entretanto irremediavelmente perdidos. Mas não adianta. A verdade é que o Blitz, escreve Hinton, "fornece um irresistível contraste com o individualismo egoísta que caracteriza o nosso tempo".
Um passado heróico dá mais esperança do que um futuro desconhecido. Mas no mês em que se assinala o início do Blitz - mito fundador do Reino Unido contemporâneo - talvez seja importante lembrar que toda aquela coragem, toda a resiliência, tinha os olhos postos num futuro desconhecido. Acreditando não na guerra, mas na paz; e a paz é da responsabilidade das gerações seguintes.
No final de 1940, uma mulher, depois de ter "vivido a história" do ano em que começou o Blitz, escreveu: "Nós vamos sobreviver e depois devemos tentar fazer do mundo um lugar muito mais agradável para que o sofrimento presente tenha valido a pena."