Amoreiras: a polémica passou de moda, o shopping subiu de estatuto

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Amoreiras: a polémica passou de moda, o shopping subiu de estatuto Enric Vives-Rubio

Naquele final de tarde do Outono de 1985, Nuno Krus Abecasis andava em campanha para renovar mandato à frente da Câmara de Lisboa. Uma mulher abordou-o quando distribuía propaganda no interior do recém-inaugurado centro comercial. Nunca mais votaria nele depois das Amoreiras, disse ela em tom acusador. Farto da polémica em torno do projecto de Tomás Taveira, que havia defendido com unhas e dentes contra tudo e todos, e que servia agora de arma de arremesso eleitoral, o presidente da Câmara de Lisboa soltou um impropério: "Meta o voto no..."

Contado por quem acompanhava na altura o carismático autarca do CDS, o episódio ilustra bem a virulência com que se travaram de razões os que acompanharam, há um quarto de século, o aparecimento em Lisboa do primeiro centro comercial digno desse nome. Que, apesar de fazer hoje 25 anos de existência, não dá sinais de falta de vitalidade - como seria de esperar de um qualquer jovem dessa idade. Adaptou-se aos novos tempos, apostando em lojas de maior dimensão, e nas classes sociais com mais poder de compra. De monstro megalómano passou a local onde vai às compras quem não quer andar aos encontrões. A polémica ligada às opções estéticas, essa passou de moda. Morreu? Nem tanto. "Aquilo é horroroso. Com o tempo ficou com ar de brinquedo velho que já ninguém quer. Era uma boa altura para ser demolido", opina o cronista Miguel Esteves Cardoso, concedendo, no entanto, que o centro comercial tem bom ambiente.

Portugal ainda não tinha entrado na CEE (Comunidade Económica Europeia) naqueles longínquos anos 80. Fá-lo-ia três meses depois da abertura das Amoreiras, num cenário de crise pouco propício a investimentos duvidosos como este. Presente na inauguração, o Presidente da República Ramalho Eanes não regateou elogios ao empreendimento, precisamente por causa da "ousadia" do investimento em tempos de crise. Ao todo, foram gastos 64 milhões de euros, suportados, entre outros, pela construtora Alves Ribeiro e pelas seguradoras Império e Mundial Confiança, que eram empresas públicas. Todos integravam a empresa proprietária das Amoreiras, a Mundicenter.

Só mais tarde veio o tempo das "vacas gordas", lembra o arquitecto José Manuel Fernandes, que considera os promotores uns "visionários", porque "sabiam que o sucesso viria pouco depois". E veio - como diz o historiador Paulo Varela Gomes, como "um sinal antecipado da prosperidade do cavaquismo". O país estava a mudar.

Um "par de bandarilhas"

O culto das marcas pelos consumidores era um fenómeno incipiente, até porque muitas delas não tinham sequer entrado em Portugal. Foi neste cenário que surgiram as grandes torres espelhadas de topos e base coloridas, simbolizando, segundo o seu autor, dois guerreiros defendendo a sua dama, numa alusão à Lisboa medieval.

Houve logo quem preferisse metáforas tauromáquicas: pareciam "um par de bandarilhas cravadas no dorso da cidade", observou o arquitecto Nuno Portas. O assunto "pôs os portugueses a falar de arquitectura como nunca tinha acontecido", lembra Varela Gomes quando fala desta "importação directa da típica arquitectura americana". Quer pela dimensão do empreendimento, considerada excessiva, quer pelo seu aspecto pouco convencional.

Entre as vozes críticas estava ainda a de Marcelo Rebelo de Sousa, que não era tanto contra o aspecto da obra, mas sim contra a "falta de planeamento urbanístico" durante os mandatos de Abecasis. E hoje? "O problema principal continua lá. Mantêm-se o congestionamento de trânsito e a entrada caótica em Lisboa", responde. Do lado oposto da barricada, dos que defendiam a liberdade criativa que inspirou as Amoreiras, estava o arquitecto Manuel Graça Dias, que ainda hoje continua a achar saudável que as cidades construam marcas de época como esta, neste caso "a marca de um movimento pop (popular) filiado no pós-modernismo".

Por outras palavras, é o que recorda também outro crítico de arquitectura, Jorge Figueira: "Os anos 80 não se podem pensar sem a movida do Bairro Alto, o Tal Canal do Herman, as músicas do Variações e o Amoreiras."

Data desta época o termo "taveirada", sinónimo não só dos trabalhos característicos deste autor como também de mamarracho. Graça Dias analisa o termo: "Surge num período em que ficam prontas não só esta como também outras obras de Taveira que o homem da rua considerava excessivas: o edifício do Banco Nacional Ultramarino, na Av. 5 de Outubro (Lisboa), o do Totobola, na Av. D. Carlos..."

Contestadas, as Amoreiras acabaram por fazer escola. "Hoje não há cidade de província que não tenha um pequeno edifício manhoso que não tente copiar alguns destes detalhes", observa. Um frontão aqui, uma coluna acolá... Para Graça Dias, ao serem amadas por uns e odiadas por outros, as Amoreiras "abriram uma brecha" que, mesmo muitos anos depois, permitiu maior tolerância para com edifícios considerados estranhos, como a Casa da Música, no Porto. Excessiva a meio dos anos 80 - o próprio Tomás Taveira sempre sublinhou não ser seu o plano que permitiu tamanha volumetria naquele local -, a escala veio, afinal, a revelar-se adequada, no entender deste arquitecto: "Não há a sensação de andarmos perdidos, existe um equilíbrio entre a escala e a decoração."

Uma teimosia

"As Amoreiras marcam uma ruptura na vida de Lisboa", diz Teresa Barata Salgueiro, investigadora do Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras de Lisboa. "E do país." O complexo beneficia da adesão à União Europeia, quer por via do dinheiro que ela traz, aumentando o nível de vida dos portugueses, quer por via da entrada de empresas estrangeiras em Portugal, várias das quais se instalam nas torres de escritórios. "À qualidade do espaço, maior do que nas galerias comerciais até aí existentes, junta-se a oferta de serviços e de lazer", nota Teresa Barata Salgueiro. "O centro comercial tem uma gestão profissional, já preocupada com o mix", a localização e a mistura de lojas. "Por outro lado, o complexo inclui, além do comércio, escritórios e habitação", algo também inovador para a época. Apesar das excursões ao shopping de gente vinda de todo o país, o sucesso do modelo não foi imediato, nota a investigadora. É então, três anos depois da abertura das Amoreiras, que as chamas devoram o Chiado. "As pessoas deixaram de ir à Baixa e precisavam de uma alternativa", recorda.

Antigo adjunto de Abecasis, Luís Duque lembra-se bem da teimosia do homem que ficava na câmara a despachar processos até às quatro ou cinco da matina. "Sem ele as Amoreiras não tinham sido feitas", garante, recordando a sua teimosia nas causas em que se empenhava. "Se fosse hoje, surgiriam contra o projecto 40 petições e 30 abaixo-assinados..." E há cinco anos, o próprio Taveira admitiu que é "um pouco surpreendente" que o tenham deixado construir "semelhante objecto".

Nem a Mundicenter nem o arquitecto Tomás Taveira quiseram prestar declarações sobre as Amoreiras.

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