"E se um morcego passar ao nosso lado e nos cortar a cabeça?"

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Esqueçam os vampiros e os dráculas. Esqueçam o sangue a jorrar, as séries e os filmes de terror! Há morcegos no Castelo de São Jorge, em Lisboa, atestam Bárbara Wong (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos), que passaram por lá uma destas noites e perderam todos os preconceitos em relação a este animal que está em vias de extinção

As noites já não são as de Verão, já não se prolongam até às nove horas e, por isso, a subida ao Castelo de São Jorge faz-se depois de o sol se pôr. Ainda não são oito e meia e já está escuro como bréu. O ambiente é propício para entrar naquele que é o monumento mais emblemático de Lisboa, ou, pelo menos, é o que fica situado na mais alta colina da capital. O escuro e os primeiros dias frios, em que é preciso vestir uma camisola mais quente, rimam com mistério e aventura.

Os que chegaram mais cedo ao castelo confirmam: "Eu já vi um morcego! Estava mesmo ali em baixo", grita uma das meninas mais velhas, de cabelo louro apanhado num rabo de cavalo. "Ali em baixo" é junto à muralha, perto de um dos holofotes que ilumina as muralhas conquistadas aos mouros por D. Afonso Henriques, em 1147. Não é de estranhar, os morcegos comem insectos e, não, não bebem sangue, atestam Maria João Pereira e Sofia Lourenço, as biólogas da Natuga, que vão acompanhar a visita "Morcegos no Castelo".

A desmistificação sobre este mamífero começa logo ali: em 1232 espécies - poderá haver mais, continuam a ser catalogadas -, apenas três é que se alimentam de sangue dos outros animais. "Não há nada de draculiano, fazem um corte e ficam a lamber o sangue...", explica Maria João. "Todo?!?", perguntam várias vozes assustadas e ansiosas por uma resposta positiva. "Uma colher de chá", responde a bióloga. "Só?", voltam a ouvir-se as vozinhas, desta vez com algumas dúvidas e, também, desilusão. Sim, são esses que são os chamados vampiros e que vivem na América Central e do Sul.

A dieta dos vampiros

Os vampiros estão na moda, na literatura infanto-juvenil, no cinema e na televisão e já não aterrorizam como antigamente. Nas séries convivem com os humanos e os mais novos simpatizam com eles. Por isso, o início do passeio soa a desilusão: não há morcegos que chupem sangue. "Afinal, o que é que comem?", perguntam com um ar conformado.

"Fruta, sementes, insectos, néctar e pólen" é a resposta que ninguém queria ouvir. "Este gosta de manga", mostram as biólogas. Os meninos, a maior parte com lanternas frontais presas na cabeça, direccionam a luz para as folhas plastificadas que foram distribuídas no início da actividade. É noite escura, do lado de fora da muralha as luzes revelam uma cidade de cartão postal, com o rio, a ponte sobre o Tejo e, do outro lado, o Cristo-Rei.

Do lado de dentro, a conversa flui. "Os que gostam de néctar e pólen são um bocadinho como as abelhas. Também há uns que comem peixe". A próxima desilusão sai da boca de Sofia: "Não vamos ver, mas ouvir". "Ouvir?! Mas eu já vi", afiança a rapariga loura do rabo-de-cavalo. As biólogas mostram um aparelho que serve para ouvir os morcegos. A explicação que começa a ser feita sobre ultra-sons, frequências e megahertz é interrompida pelos pais, que explicam de maneira mais simples: é como sintonizar um rádio e os barulhos que se ouvem são dos morcegos que passam. µ

A próxima explicação é sobre o sentido, o sexto, que é o que os morcegos têm mais apurado: a ecolocalização - estes mamíferos orientam-se por ecos e é assim que procuram o alimento e comunicam. O grupo divide-se e a FUGAS acompanha Maria João, que liga o aparelho e procura sintonizá-lo na frequência de uma das espécies - cada uma usa uma frequência. Ao todo já foram identificadas seis no castelo, mas a mais comum é o morcego anão, nome em latim Pipistrellus pipistrellus.

A bióloga sintoniza a frequência e mal liga o aparelho ouve-se um "tac-tac-tac-tac" e silêncio. "Era um! Estava a caçar!". Os mais pequenos olham para cima e para baixo, as cabeças mexem-se rapidamente à procura do Pipistrellus. Nada. Os adultos entreolham-se de sorriso amarelo nos lábios, as palavras "não vamos ver, mas ouvir" ecoam nos seus cérebros.

"Comem-se a si próprios?". Nova tentativa. Desta vez, o grupo começa a deslocar-se em direcção ao interior do castelo. Junto a um candeeiro da rua, Maria João volta a erguer o aparelho no ar e o som rápido e contínuo volta a ouvir-se, a seguir uma pausa, e de novo o barulho que começa a ser familiar.

O movimento das cabeças é para o ar, à procura dos morcegos. "Ali! Ali!", exclamam os mais pequenos. Os adultos fazem um esforço até que começam a vê-los, pequeninos e velozes. Voam e desaparecem. "São aquelas coisinhas? Pensava que eram passarinhos", diz um dos crescidos. "Alguém já viu pardais de noite?", pergunta Maria João, divertida. Não... De repente, apercebemo-nos de que o que vemos de noite não são pardais, nem andorinhas - são morcegos.

O seu corpo é do tamanho de um polegar, mas quando abrem as asas parecem muito maiores. "Eles estão habituados a viver com os seres humanos", revela a bióloga. Nas cidades vivem nas caixas dos estores. No campo, nas chaminés ou nos telhados, em sítios escuros, à espera que a noite chegue para saírem para caçar. Por vezes, há um morcego que entra pela janela. Nada de pânicos, eles têm medo dos humanos. Daí que a recomendação é para que se respire fundo, se desligue as luzes e se abra uma janela, para que eles voem para a rua.

Dentro de um candeeiro está uma osga. "Eu tenho uma dúvida... E se um morcego passar ao nosso lado e nos cortar a cabeça?", a pergunta é do mais pequeno e irrequieto. O grupo dá uma gargalhada forte que ecoa. "Os morcegos comem osgas? E caracóis? E lesmas? Há morcegos que se comem a si próprios? Era giro e depois regeneravam-se!", diz o rapazinho de sete anos. Maria João volta a confirmar que os que se podem ver no castelo só comem traças, mosquitos e outros insectos. Por isso se aproximam dos candeeiros para onde esses animaizinhos são atraídos pela luz.

De noite, o castelo tem um ar misterioso e podem ver-se outros animais, como gatos gordos, pachorrentos e que, também eles, andam à caça, e os grandes pavões. De dia, fazem as delícias dos visitantes com os enormes leques coloridos abertos, à noite também - "Chiu! Falem baixinho, que eles estão a dormir", recomenda a bióloga. Estão a dormir pousados em cima dos ramos de um pinheiro e as lanternas nas cabeças dos miúdos, que apontam para as suas penas, não parecem incomodá-los.

Chegados ao corpo principal do castelo, os miúdos sentam-se num banco de pedra para ouvirem mais uma explicação sobre a alimentação dos morcegos, o seu ciclo de vida, acasalamento, períodos de hibernação. O aparelho permanece ligado, agora na mão de uma das crianças, e o som de caça é permanente. Aqui sim, vêem-se muitos morcegos. E todos se maravilham com os seus voos, mesmo por cima das cabeças, alguns parece que vão embater, mas desviam-se como corredores profissionais a fazer curvas a enorme velocidade, e sem capotar.

Os rapazes e as raparigas, dos sete aos 13 anos, gritam entusiasmados. "Viste aquele? Olha outro!". Agora é tempo de passar a ponte por cima do que antigamente seria um fosso, mas agora é um tapete de relva inclinado - "O D. Afonso Henriques tinha aqui crocodilos? E dinossauros?", pergunta o mais novo -, e entrar no castelo.

"Rato com asas"

Desta vez, as lanternas frontais são necessárias para continuar a visita. O castelo está às escuras, a porta gigante de madeira é empurrada com esforço e faz aquele barulho característico das portas a ranger. O silêncio toma conta do grupo que no escuro procura pôr os pés em zonas seguras. Ali podem existir corujas que comem morcegos, avisa a bióloga.

"Vamos tentar ouvir o rabudo?", Maria João muda a frequência do aparelho. Há morcegos com nomes engraçados e os mais novos já os sabem de cor: o rabudo, o orelhudo, o hortelão, o arborícola, o anão, o abelhão (o mais pequeno do mundo com apenas duas gramas de peso) e as raposas voadoras (estas pertencem ao grupo dos mega-morcegos e comem ratos ou pássaros).

Às escuras, o grupo sobe à muralha onde o vento corre com maior intensidade. Lá em cima, vê-se a cidade inteira, a baixa pombalina cheia de luz, os prédios altos e novos com as publicidades aos bancos e aos hotéis, os monumentos antigos iluminados. Há quem procure a rua onde mora, no meio do emaranhado da cidade, enquanto espera por ouvir o morcego rabudo, um mamífero que pode fazer meia centena de quilómetros por noite para caçar. Sai da Arrábida, em direcção ao estuário do Tejo, e regressa, revela a bióloga.

Não é possível ouvir o rabudo, e Maria João fala agora da importância dos morcegos para o equilíbrio dos ecossistemas, porque a sua alimentação é feita à base de insectos. Eles podem ser muitíssimo úteis aos agricultores e, nos EUA, já há quem construa abrigos próprios, de maneira a que os morcegos se mudem para lá e comam os insectos. Deste modo, os agricultores evitam o uso de pesticidas, chegando às mesas dos consumidores produtos mais saudáveis.

Os morcegos também são polinizadores, como as abelhas, e dispersores de sementes, comem e deitam a semente para a terra, por exemplo. Contudo, são uma espécie em vias de extinção. A maioria das espécies de morcego só tem uma cria por ano, no máximo duas.

À porta do castelo, duas horas depois, as perguntas continuam. Os morcegos não têm boa fama. A culpa é do escritor irlandês Bram Stoker (1847-1912), o autor de Drácula? Não. Só o nome por que são conhecidos revela a pouca simpatia que os seres humanos sentem por estes mamíferos. Morcego significa "rato com asas" ou "rato careca", logo, um nome com uma conotação negativa. Depois, o modo como foram representados, na pintura e mais tarde através da fotografia, também não é a mais abonatória.

Os morcegos não são fotogénicos, reconhece Maria João, que enverga uma camisola preta com um morcego de ar simpático e gorducho desenhado. "Têm uns olhos expressivos e bonitos", assegura. "Quando os vemos na nossa mão, a imagem que temos muda rapidamente". Foi pena não termos tido essa experiência. Não é possível.

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