Assumidamente narrativo, e até político, o cinema do artista Gabriel Abrantes deve ser visto também como um feroz convite aos sentidos. José Marmeleira E depois dos festivais e de um prémio (Leopardo de Ouro para melhor curta-metragem em Locarno), eis a estreia de Gabriel Abrantes (com Daniel Schmidt) no circuito comercial do cinema. O feito à partida não tem nada de especial, é um caminho trivial na carreira de muitos realizadores.
Mas o autor de "History of Mutual Respect", filme que antecede "Lola" de Brillante Mendoza, guarda no seu currículo um importante detalhe: tem formação de artista. Nota espúria face à propalada multidisciplinaridade da arte, ao cinema expandido? Às fronteiras que nas duas direcções se vão atravessando? Nem por isso. Sobra muito do artista plástico neste filme de 20 minutos. Dito de outro modo: descobre-se outro olhar que chega ao cinema.
Uma sinopse possível de "History of Mutual Respect": dois rapazes entram numa floresta tropical à procura de uma nativa para sentirem a pureza dos corpos. E só um sai vencedor, recorrendo ao sexo e ao poder. Sobre esta pequena "história" já muito se escreveu: fábula pós-colonialista, crítica ao colonialismo, Walden versus Sade, vestígios de Rocha, Herzog, Fassbinder, Warhol.
Ora vale a pena deixar de lado as metáforas, as alusões e os sinais para reparar nas formas que se vêem à superfície. As vozes dobradas e "artificiais", os corpos inertes à espera dos diálogos, a colagem veloz e perversamente generosa de situações e tópicos que identificamos em géneros cinematográficos (a selva dos filme de aventuras, a relações sentimental do drama).
Abrantes extrema as convenções do Hollywood até as virar do avesso e pelo caminho reitera um compromisso com o seu tempo e condição de artista: estão lá - também - a cultura pop (no discurso e na voz de Nina Simone), a comunicação mediada pela tecnologia (no inútil e cruel telemóvel), o piscar de olho à história de arte (o plano da arquitectura em Brasília).
Embora realizado em cenários naturais, e por isso mais ambicioso que outros filmes do artista ("Visionary Iraq" ou "Too Many Daddies, Mommies and Babies", ambos co-realizados com Benjamin Crotty), "History of Mutual Respect" não perde a aura de filme experimental. Os actores (incluindo o próprio Abrantes) não são profissionais e há um trabalho descomplexado (quase "juvenil") e generoso com os materiais e os meios disponíveis. Gabriel Abrantes não é ainda um cineasta, mas o prazer com que se entrega ao cinema respira nas imagens. Do primeiro ao último plano.