O Moscatel de Setúbal ainda procura o seu lugar à mesa

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O clã Costa Lima: Joana Vida é enóloga e responsável pela qualidade do produto

Feita a vindima, logo se festejou e fomos conferir a inigualável cor âmbar do vinho e tentar perceber qual a preferência dos portugueses pelos generosos. A pretexto de nova distinção internacional, a quase secular Venâncio Costa Lima abriu-nos as portas da adega na Quinta do Anjo. Por Carlos Filipe (texto) e Miguel Manso (fotografias)

Há hábitos de consumo da sociedade portuguesa que estão profundamente enraizados, e tanto assim é que nas compras para as mesas de Natal e da Páscoa haverá sempre uma garrafa de vinho generoso no rol. E, dos quatro géneros, pelo menos um: do Porto, da Madeira, de Carcavelos e Moscatel de Setúbal, desde 1908 garantidos por D. Manuel II com a garantia de tipificação como generosos. Ora, se o do Porto ganha a todos, e de longe, e como a produção das vinhas de Oeiras e Cascais é ínfima, ainda haveria vencedor seguro em caso de despique de notoriedade entre os néctares madeirense e de Setúbal. É certo que os produtores do Moscatel daquela península estão a encurtar distâncias para os demais generosos. E mais medalhas de ouro nos concursos internacionais poderão ajudar. Mas ainda assim facilmente se sabe quem ia à mesa do rei e quem tem garantido acesso às festas dos portugueses. O Moscatel de Setúbal, da cor do âmbar, inigualável, ainda anda lento nessa disputa.

Diz-se um pouco em surdina que a produção de qualidade do Moscatel é demasiado curta, carecendo de promoção e valorização, acima de tudo dentro de portas. Todavia, da generosidade desse outro "património nacional que se bebe", assim lhe chamou David Lopes Ramos, no PÚBLICO, enraizado nas encostas da serra da Arrábida e em Palmela, ou em solos menos acidentados, até ao Montijo, refrescado pela brisa atlântica ou ainda banhado pelo Sado, é comum também dizer-se estar esquecido (ou ignorado?), mas há sinais inequívocos de que tem batalhado pela conquista definitiva da sua carta de alforria.

Como o consegue? Vai ajudando dar-se a conhecer lá fora, que é meio caminho andado. Foi também essa a estratégia de uma quase secular, mas pequena casa vinícola, que entre outros produz vinho Moscatel, a Venâncio Costa Lima, desde 1914 sediada na Quinta do Anjo. O seu fundador, a quem a autarquia de Palmela - à qual também haveria de presidir, em 1937 - descerrou busto e topónimo na principal rua da aldeia, não deixou descendência directa, mas à data do seu falecimento, a meio do último século, legou a empresa aos sobrinhos, empresa que não era mais que um armazém comercial de produtos agrícolas, vinho, mas também cereais e azeite. De então para cá, o vinho passou a ser mesmo o assunto principal na sociedade, familiar, que vai brindando com Moscatel da casa, a nata da produção, pequena, é verdade, tal como a dimensão da casa. Esta é parcimoniosa, quando comparada com a dos vizinhos, nas redondezas de Azeitão, casos de José Maria da Fonseca e da Bacalhôa Vinhos de Portugal, mas de ano para ano vai-a fazendo mais orgulhosa.

Pontos nos i

Faz calor e não há visitas pela manhã, a não ser a do P2, recebido por Joana Vida, que também pertence ao clã Costa Lima, formada em Engenharia Alimentar por Agronomia e que integra o quadro de enólogos. Ela é a responsável pela qualidade do produto.

Apazigua o asfixiante efeito do estio a entrada no espaço da adega, a original, não impressionável pelas dimensões, mas que ali mantém parte do acervo e história da casa Venâncio. Acede-se às instalações quase de forma despercebida, por um portão verde, e os trabalhos em curso indiciam transformações: a casa está a mudar, a engordar, a modernizar-se, no sector da vinificação. Mas agora convém mesmo o acolhimento naquela meia obscuridade da adega, que ameniza o estágio do vinho, para que a sua doçura e acidez encontrem o melhor equilíbrio. Há pipos novos, com a cor do carvalho ainda não marcada pela idade, os cobres para a aguardente - para quem não sabia, e muita gente não o sabe, ela entra no processo do Moscatel - foram limpos e brilham como se fossem originais. Há uma mesa com uma paleta de vinhos da casa, oito garrafas, talvez. Joana Vida não dá tempo para as contar.

Joana só ali está há quatro anos. É neta de um dos sobrinhos do fundador Venâncio. Tem vários primos que fazem parte da sociedade, e ali ingressou após período iniciático de pós-licenciatura no Ribatejo, na casa Cadaval. Trabalhava então a 200 quilómetros de casa, que é na própria Quinta do Anjo.

O Moscatel de Setúbal é agora a sua menina-dos- olhos. E não resiste a pôr os pontos nos i, quando espicaçada a explicar a conquista de mais uma medalha. Primeiro ponto de ordem à mesa: há concursos mundiais como uvas em cacho. A este, porém - Muscats du Monde -, realizado nos primeiros dias de Julho, em Frontignan-la-Peyrade, na região do Languedoc-Roussillon, prefeitura de Montpellier, Sul de França, só acediam vinhos licorosos exclusivamente de casta Moscatel, e o da casa Venâncio que foi a concurso ficou entre os dez melhores. Maior honraria mesmo (ouro, de excelência) só para um sul-africano e um cipriota - Nederburg Private Bin Eminence 2007 e Mosxatos 2007, respectivamente. Segundo ponto de ordem: houve mais ouro para o Moscatel português, não nos dez primeiros, mas ainda assim de distinção, uma vez que concorreram 206 vinhos oriundos de 23 países. Foram eles os Moscatel Roxo 2007 e Setúbal 2007 (da Sivipa), e o Moscatel do Douro 10 anos (da Adega de Favaios).

Estratégia nova

Joana Vida explica que a casa Venâncio é neófita nestas andanças: "Não tínhamos muita visão para o exterior. Mas mudámos a estratégia e decidimos arriscar em três ou quatro concursos, os mais importantes. E temos obtido muito bons resultados, especialmente nos tintos e no Moscatel. Sempre que concorremos conquistamos ouro ou prata. E desta vez entrámos com dois Moscatel, um reserva, e um Moscatel novo, sem estágio, de casta nova, sem aroma a madeira, com sabor predominante a flor de laranjeira e mel. Foi este que nos valeu o ouro. Em 2009 foi o Reserva."

A casa não produz apenas Moscatel de Setúbal, mas também, com aquela casta e Fernão Pires, brancos de mesa. Os processos é que são diferentes. Lá chega nova explicação, fulcral para quem nunca ligou muito ao vinho Moscatel. De uma forma simples: "Ou se vinifica como vinho branco, ou como generoso. Para generoso, entra uva, esmaga-se, vai para o depósito e no dia a seguir abafa-se com aguardente vínica. Depois fica em maceração prolongada entre três a cinco meses, até acharmos que a aguardente já casou com o mosto. É um vinho doce, pois a doçura ficou do açúcar das uvas, que não se transformou em álcool, porque não fermentou. E é alcoólico, porque lhe foi adicionada aguardente vínica. O Moscatel quer-se doce, q.b., e o maior segredo é combinar a doçura com a acidez. Se demasiado doce, torna-se enjoativo; então, é preciso achar o ponto ideal em que as uvas ainda têm alguma acidez, embora não se note à prova. Sem essa acidez seria uma lástima. É por isso que se pode beber como digestivo, a acompanhar um doce. Ou como aperitivo, com um queijo. Mas é mais no Natal e Páscoa, ou aqui, na região, na festa das vindimas."

Na colheita há regras importantes, consoante o fim a que se destina a uva. Fala a enóloga: "Não há vinho bom que não provenha de uvas sãs e colhidas na altura certa." Parte da vindima é em meados de Agosto, para os vinhos brancos, quando a uva está a ganhar doçura, pois os bagos têm menor teor alcoólico e ainda alguma acidez. "Para o licoroso queremo-lo mais maduro, com mais aromas da casta, lá mais para os finais de Setembro."

Mas porquê a especialização no Moscatel de Setúbal? "Não é que nos especializemos tanto no Moscatel, este é que tem tido, e queremos que tenha, mais visibilidade junto dos portugueses. E estamos a fazer disso uma bandeira. É uma entrada para nos conhecerem. Se assim for, óptimo; queremos que agora conheçam o resto, até porque produzimos milhões de litros de branco e tinto e do Moscatel de Setúbal apenas 100 a 120 mil litros", explica Joana Vida, que reconhece o carácter familiar do negócio. "Somos pequenos, quando comparados com os grandes da região. Isto é familiar, mas temos o nosso lugar e estamos no bom caminho. Procuramos mais capacidade tecnológica e já melhorámos o que temos em casa."

Falta a máquina

Sobre a notoriedade do Moscatel de Setúbal e o lugar à mesa dos portugueses, quando comparado com os outros generosos, há uma não discussão: "O Porto primeiro. É o rei! Por tudo e mais alguma coisa." "Entre o Madeira e o Moscatel, o Moscatel é um ilustre desconhecido. Mas não entramos em guerras. Temos provas dadas e potencial. Agora desenvolver esse potencial é outra coisa. Por exemplo, o Moscatel do Douro tem uma máquina muito grande, de marketing, estratégia e produção. Mas prefiro o Moscatel de Setúbal ao do Douro, que é mais aromático. As uvas são irmãs, mas não são a mesma coisa", acrescenta Joana Vida.

Vão-se tornando notadas as tentativas de projecção para o exterior, mais para o Norte da Europa e o Brasil, por influência de portugueses. Mas os ingleses não estão muito interessados, optando mais pelo Porto, por todas as razões historicamente conhecidas, e pelo Madeira. "Mas têm andado aqui a namorar a região", ri-se Joana, concedendo que a sua casa ainda não ganhou nada com isso. Mesmo assim, a situação económica é estável, com volume de negócios a rondar os 2,5 milhões de euros e 40 funcionários.

"Há desconhecimento, mesmo em alguns dos mais velhos visitantes desta casa, sobre o que distingue o Moscatel do restante vinho", avalia Joana Vida, que frequentemente acolhe outro tipo de amantes da casta Moscatel. Surgem inesperada e isoladamente. Querem saber mais e provam.

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