Queer como nós

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Para onde quer que olhemos ela já lá está. É uma mulher? É um monstro? É um pedaço de carne? Que coisa é esta que, em menos de dois anos, se tornou num fenómeno de popularidade num mundo que já não acreditava em fenómenos à escala mundial? A internet anulou o poder de massificação da televisão quando esta deixou de passar vídeos musicais e, no entanto, uma pessoa chega (literalmente) a um restaurante de esquina e pede um bife grelhado e na resposta ouve o "raw", "raw" que faz a entrada de "Bad Romance". A carne de Lady Gaga não está mal passada.

Vamos vê-la, ou as imagens que para si quis construir, através dos seus vídeos, num programa integrado no 14º QueerLisboa, o festival de cinema gay e lésbico que, de 17 a 25 de Setembro, decorre no cinema S. Jorge.
Ela é apenas uma entre as várias referências que compõem uma programação de 118 filmes, divididos em onze secções, e que chegam de todos os continentes para mostrar de que modo o cinema anda a contar histórias que já não dizem apenas respeito aos gays, às lésbicas, aos bissexuais e aos transgéneros (e que compõem a sigla LGBT).

É isso que Lady Gaga traz: uma transversalidade que não olha a género sexual nem cabe nas categorias usadas para engavetar as pessoas. Nuno Galopim, jornalista e responsável pela selecção de vídeos de uma secção que, chamando-se Queer Pop, já apresentou Pet Shop Boys, Mylène Farmer e a inevitável Madonna, acha que Lady Gaga "é uma figura de projecção mainstream tão grande que começa a diluir-se as fronteiras desse espaço de potencial público".
"Ela sempre tomou partido de uma série de iniciativas, inclusive políticas, fazendo uma defesa dos direitos da comunidade LGBT. Ela assume-se, cultural e politicamente, com grandes afinidades com a comunidade onde nasce artisticamente", explica. "Toda a sua linguagem visual tem muito a ver com uma série de manifestações relacionadas com a cultura queer onde há uma integração da diversidade por oposição a qualquer lógica mais normativa que ainda domina grande parte da linguagem da pop mundial".

Um exercício em relação ao outro

Essa normatividade referida por Galopim pode ser encontrada em diferentes aspectos da criação cultural, inclusivamente num cinema que, nos últimos anos, tem chegado às salas e com os quais a comunidade gay tem tido uma relação difícil.
Para Thomas Abeltshauser, jornalista cultural e um dos membros do júri do QueerLisboa, filmes como "Eu amo-te Philip Morris" e "O Segredo de Brokeback Moutain" não se dirigem a um público queer mas mainstream, "focando-se em imagens e esterótipos deterministas", ao contrário do trabalho de cineastas como Pedro Almodovar ou filmes como "Um homem singular", de Tom Ford.

Para António Fernando Cascais, professor na Universidade Nova e especialista em teoria gay e queer, "ser queer não é uma preferência identitária mas sobretudo uma atitude perante as definições identitárias". O queer é, por isso, um programa de enunciação, ao invés de um projecto de afirmação, visando "não a construção de identidades fixas, mas a sua desconstrução, dando valor ao próprio processo de construção". Criado nos anos 80 por um grupo de teóricas feministas que seguiam a filosofia de Michel Foucault, e onde se inseriam, entre outras, Judith Butler, preconizou uma ideia de alargamento das fronteiras classificativas, sugerindo que havia uma distância entre aquilo que berram as classificações LGBT e aquilo que era a realidade que os indivíduos tomavam para si. A base da argumentação possibilita que o queer possa produzir um discurso sobre as diferentes classificações existentes, impedindo a manutenção de binómios branco/preto, homem/mulher, masculino/feminino, homossexual/heterossexual.

É isso que caracteriza o discurso de Lady Gaga, que se comporta como porta-voz mediaticamente influente de um conjunto de reivindicações que não se extinguem no interior das fronteiras das identidades de género e que, sem necessidade de ampliação, podem ser entendidas e servir de modelo identificativo para uma série de grupos sociais. É, resume António Fernando Cascais, um exercício em relação ao outro e não em comparação com o outro.
"A cultura queer é a consequência de um conjunto de movimentos ocidentais e contemporâneos, e a criação cultural absorve-os e devolve-os como uma espécie de 'feedback', às vezes positivo e outras vezes negativo", diz Nuno Galopim. Muitas vezes os ícones referenciais queer não o são por decisão individual mas por apreciação à posteriori.

Não "é", "faz-se"

O festival não é alheio a esse processo de aculturação e reúne nomes que podem ajudar a pensar se há um património referencial queer ou se este é herdeiro de um património dos diferentes sectores que agora o compõem. Nele entram, pelo menos este ano, Federico Garcia Lorca, Mário Cesariny, Christopher Isherwood - e por consequência o filme que se inspira nos seus textos, "Cabaret", de Bob Fosse -, Marlene Dietrich, Rock Hudson, Bruce LaBruce, Gil de Biedma, Rufus Wainwrigth e uma selecção de músicos portugueses que foram à Eurovisão (António Calvário, Eduardo Nascimento, Simone de Oliveira, Doce, Adelaide Ferreira e Lúcia Moniz). Compõem um quadro vasto, nem todos eles se identificando com uma estética queer - e muitos tendo desenvolvido o seu percurso num quadro mainstream, fruto dos contextos sociais, políticas e culturais onde nasceram.

Eduardo Pitta, poeta e romancista homossexual que falará dia 22 às 19h00 sobre "Cabaret", acredita que a utilização da expressão queer se tornou "um saco sem fundo onde cabe tudo e mais alguma coisa", e lembra que quando o filme de Fosse estreou, em 1972, o termo não existia. "O filme era, como se dizia no meu tempo de rapaz, o mundo das bichas. E foi uma obra fundadora daquilo que a que nós hoje chamamos de cultura gay". O também crítico literário considera que, como exercício de integração, o termo queer é estranho porque "tenta nivelar coisas que no fundo podem ser diferentes. Naquele filme, se há um elemento queer é a Liza Minelli. Aos outros podemos chamar-lhes muitas coisas, mas queer acho que não".

"Queer é aquilo que se faz", continua António Fernando Cascais, distanciando-se da ideia de camp, termo defendido em 1964 por Susan Sontag no seu ensaio "Notes on Camp". O camp é "uma exteriorização e uma estética reflexiva que, como estética que é, pressupõe fronteiras". O queer não sendo uma identidade, admite que "existam algumas pessoas que se possam definir como queer mas é um programa que comporta uma parte teórica, e a sua descrição, bem como atitude", explica.  "O queer não faz a descrição de uma identidade, mas de um programa. Não há ninguém queer. O queer não é, faz-se", defende, no que é uma variação da famosa frase de Simone de Beauvoir "ninguém nasce mulher, torna-se mulher".

Nesta libertação das classificações, Lady Gaga vai mais longe do que Madonna e David Bowie, acredita Nuno Galopim, que reconhece na artista uma evidente pertença a um tempo, e a uma geração, onde as revoluções parecem não ser relevantes. Gaga trabalhará, assim, a partir de uma plataforma que não acredita na impossibilidade de diálogo. O facto de trabalhar uma dimensão visual fortíssima, amplificando o simbolismo das suas canções, de construção fácil e num pop electrónico evidente, permite que os elementos referenciais sejam facilmente compreensíveis e já não sectários.

Integração

Considerando o que a definição queer pressupõe, também o cinema queer não se fixa em binómios contrastantes, procurando uma abordagem fílmica de apropriação ao invés de uma exposição sectária. Para João Ferreira, director artístico do festival, há questões de narrativa, estética e condições de produção que constituem os princípios de identificação queer. Tal como para a definição genérica, a cunhagem do termo "surge da necessidade de encontrar uma definição que se aproximasse do que os filmes abordam, e onde a categoria gay ou lésbico não seria suficientemente identificativa", sintetiza.
Para Michèle Philibert, que há 22 anos programa o festival Reflects, em Marselha, e membro do júri de longas-metragens desta edição do QueerLisboa, quando falamos de cinema queer estamos a identificar um cinema que "releva as questões de identidade sexual e de relacionamento amoroso que cobrem diferentes realidades. São filmes que colocam a questão do género, partindo de desejo e necessidade de reconhecimento absoluto. São filmes onde a sexualidade dos realizadores não é determinante", afirma, sublinhando ainda que "colocam questões muito precisas do indivíduo face ao colectivo".

Os filmes activam um processo de integração de elementos que tendo sido entendidos como marginais se inserem agora numa corrente representativa mais vasta. Explica João Ferreira que "é um cinema cuja abordagem está desprovida do trauma e da denúncia da homofobia generalizada, como acontecia no cinema gay. A sua presença não é impositiva, no sentido de afirmação, e não tem tanto uma preocupação política. Em oposição a um cinema gay, o queer voltou-se para preocupações que são as do cinema em geral, nomeadamente preocupações estéticas e formais na abordagem às obras."
O conjunto dos filmes apresentados no QueerLisboa é consciente (ou pode ler-se uma consciência) da necessidade de apelo a um olhar menos fragmentado e pouco preocupado com uma intencionalidade sustentada pela descrição determinista das personagens. Num tempo em que uma rapariga com um vestido feito de pedaços de carne pode ser entendida como uma piada, um sério comentário à industrialização da sociedade ou simplesmente ignorada, o queer não procura fazer a apologia da diferença. É um conceito que compreende as diferenças e se constitui a partir delas.

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