Mad Men, epopeia do herói comum

Foto

Mad Men chega à quarta temporada sob aclamação da crítica, da indústria e do público (2007-10). Apesar de audiências menos massivas do que as doutros êxitos da TV americana, reúne em média 1,5 milhões de espectadores e recupera no mercado mundial. É a primeira série de ficção de um canal de pacote básico de cabo a ganhar o principal prémio Emmy da indústria norte-americana. Tudo merecido. Mad Men é uma das melhores séries que a TV já produziu. Aproxima-se da excelência absoluta de Sopranos (1999-2007).

A série pertence ao subgénero dos seriados, como Lost ou Roma. Com arcos narrativos que se prolongam pelas temporadas, têm múltiplos subenredos. Herdada do folhetim, essa estrutura, similar à telenovela, difere da independência narrativa de cada episódio das séries como House.

Desde Raízes (1977) e Bridshead Revisited (1981), o seriado revela-se das criações mais originais da TV. A continuidade semanal e a arquitectura narrativa permitem uma densidade de enredo e uma profundidade psicológica das personagens que amiúde ultrapassam as de filmes e romances. Os nós e os ganchos narrativos, as mudanças subtis das personagens e o pano de fundo da realidade presente ou histórica assemelham o seriado ao género épico. Os protagonistas, como o Don Draper de Mad Men, ganham uma grandeza, na sua complexidade de seres humanos, que corre em paralelo à dos heróis. Draper, director criativo de publicidade na Nova Iorque dos anos 60 é, como os heróis antigos, um fundador, neste caso, não de cidade, mas de publicidade, sendo considerado um mito pelos seus pares. A inserção da série no passado e os frequentes flashbacks à memória do protagonista adensam o tom épico. O seriado tem sido o género de eleição para adaptações de romances históricos ou argumentos originais históricos, como Holocausto (1978), A Jóia da Coroa (1984) ou as "guerras" de Spielberg.

Ressalvadas as diferenças, os melhores seriados, como Sopranos e agora Mad Men, correspondem em TV a frescos de humanidade numa época, como as grandes sagas literárias. Se os Sopranos mostravam a América dos actuais subúrbios nova-iorquinos, Mad Men reconstitui os anos 60 em Nova Iorque. Muito diferente dos costume drama britânicos, é também uma série histórica, mas em que as personagens assistem aos grandes eventos (crise de Cuba, assassínio de Kennedy, luta pelos direitos civis) nas suas representações mediáticas, pela rádio e TV, sem efeitos aparentes nas suas vidas. Nos Sopranos, via-se o 11 de Setembro pelo retrovisor. Descentradas da História dos grandes eventos, estas são epopeias televisivas, epopeias do quotidiano, de famílias mafiosas italo-americanas ou de publicitários dos anos 60. Em Mad Men interessam menos esses eventos do que outra História também com maiúscula: a afirmação da mulher no mercado de trabalho e em luta surda pela igualdade; a afirmação da publicidade como actividade mítica da superestrutura cultural contemporânea; a mudança do carácter do americano após a II Guerra.

Este último aspecto acompanha o desenrolar da narrativa. A personalidade dirigida para si, vinda do modelo vitoriano e puritano, formatava indivíduos virados para os seus próprios valores, auto-suficientes e desdenhando coacções de fora. Os grandes actores americanos que se representavam a si mesmos, como John Wayne ou Gary Cooper, de algum modo exemplificam este carácter intradeterminado. Depois, foi-se impondo uma nova maneira de ser e estar, a do indivíduo extrodeterminado, cada vez mais dependente da opinião alheia e dos aplausos. As suas atitudes passam a orientar-se pelos outros, quer conhecidos, como os vizinhos no subúrbio dos Draper, quer os que só conhece pelos media de massas, a começar pela publicidade.

Don Draper está na charneira dessa mudança. Ele é o chefe que não se deixa influenciar, fala pouco, rege a família por valores tradicionais (incluindo o das suas infidelidades), chega sempre tarde ao escritório sem que isso seja importante senão para os outros. Mas é também o génio que altera a publicidade afastando-a dos produtos anunciados e orientando-a para as emoções e sonhos do consumidor, para os valores da conformidade dos extrodeterminados. Na terceira temporada (2009), Draper é o seu próprio terramoto. Não há certezas para lá da máscara. O seu nome é falso. Roubou a identidade dum militar morto na Coreia. O intradeterminado Draper, em fuga do seu passado, tem fragilidades e, como os extrodeterminados, apresenta-se como os outros supõem que ele deve ser.

A narrativa mantém o espectador na corda bamba do mistério das acções, contradições e interacções das personagens, numa constante instabilidade de significados, própria da criação artística. E tudo decorre num rigor formal extraordinário da produção e da realização. A reconstituição dos anos 60 é primorosa quanto a cenários e adereços como mobiliário, vestuário, etc. (só os espectadores mais jovens se surpreendem com a quantidade de tabaco e bebida que as personagens consomem); iluminação, genérico, ritmo de montagem e banda sonora também capturam o ar do tempo; a direcção de câmara acrescenta o tom misterioso e rejeita movimentos bruscos, próprios da actualidade.

Enquanto produto industrial - carácter que a TV nunca pode iludir (um episódio custa dois milhões de euros, 25 vezes mais do que um episódio comparável português) - Mad Men pratica o crime perfeito da colocação de produtos no seu conteúdo: as empresas anunciantes e as firmas publicitárias adoram a série e a possibilidade de aparecerem na narrativa, se bem que retroactivamente no tempo. Situando-se o argumento em agências de publicidade, essa inserção publicitária atinge o esplendor da "naturalidade" a que toda a televisão aspira.

Numa cena do final da primeira temporada (youtube.com/watch v=suRDUFpsHus), Draper apresenta à Kodak uma proposta de nome e o esboço de anúncio para um novo invento, uma roda que facilitava a visão de diapositivos. Draper aplica os novos princípios da publicidade ao nome e ao anúncio que propõe, mostrando com o invento imagens dos seus próprios filhos e mulher (de quem está nesse momento separado). Diz ser preciso criar "o laço sentimental com o produto" e, na escuridão da sala de reuniões, remete a "roda" da Kodak para a nostalgia, chama-lhe uma "máquina no tempo" e fala menos dela, sem que os clientes entendam, do que de si mesmo e do enredo de Mad Men quando lhes diz que a "roda" nos leva para trás e para diante, "para um lugar onde sofremos se lá voltarmos". Este aparelho, diz, "não se chamará roda, chamar-se-á carrossel. Viaja como as crianças, sempre à volta, e de volta a casa, onde sabemos que somos amados". O Carrossel da Kodak leva a um duplo passado: o da personagem e o dos espectadores. Numa só cena, os autores mesclaram a nostalgia dos anos 60, a prática profissional da publicidade e a vida do protagonista; um monólogo brilhantemente escrito e imagens vistas em dois contextos diversos, o da estória familiar do protagonista em mudança e o da sua vida profissional.

A perfeição da cena, própria da boa literatura e dos bons filmes, exemplifica o esplendor da melhor produção ficcional da actualidade. Costumava dizer-se, como a canção de Bruce Springsteen em 1992, que "havia 57 canais e nada para ver". Hoje, a televisão produz do melhor das indústrias culturais americana e britânica. Seriados como Mad Men superam a maior parte do cinema que chega às salas e aos televisores. Hoje, sai-se para os complexos de salas nos centros comerciais, há 12 salas em sessões contínuas, e não há nada para ver.

Sugerir correcção