Exotismo reinventado
The Secret Museum of Mankind foi uma exótica viagem fotográfica pelo mundo editada em 1935. Muitos anos depois, foi uma compilação de música das décadas de 20, 30 e 40, recolhida nos cinco continentes. Agora,inspirado num e noutra, é o nome de um concerto espectáculo que João Nicolau e Mariana Ricardo levam esta noite à ZDB, em Lisboa
Em 1935, surgiu um Nova Iorque um livro bizarro. Tinha como título The Secret Museum of Mankind, dividia-se em cinco volumes e definia-se como uma digressão pelas regiões mais recônditas e pelas sociedades mais exuberantes do planeta: "Aqui encontram fotos exóticas da Europa, fotos primitivas de África, fotos de tortura da Ásia, fotos femininas da Oceânia e da América." Um livro misterioso, sem índice, sem créditos. Essencialmente voyeurista: uma verdadeira exploitationantropológica, com textos de um racismo ingénuo até à comicidade, típico de uma época em que, visto do Ocidente, o mundo se dividia entre civilizados e selvagens. Décadas depois, nos anos 1990, a Yazoo Records pegou no título e, também em cinco volumes, compilou música nigeriana, argelina, búlgara ou javanesa, registada entre 1925 e 1948, e igualmente "exótica" a ouvidos pop ocidentais.
Os irmãos João Nicolau, realizador que também é músico (A Espada e a Rosa, a sua primeira longa, estreou-se no último Festival de Veneza), e Mariana Ricardo, música que também trabalha em cinema, ouviram os volumes da Yazoo e, guiados por aquele título evocativo, decidiram em 2010 criar a sua própria versão do museu secreto da Humanidade. Em Julho, levaram-no à Galeria Marz, em Alvalade, Lisboa. Hoje, após a projecção de Canção de Amor e Saúde, curta de Nicolau, recriam-no novamente na Galeria Zé dos Bois - com João Lobo a acompanhá-los na bateria, um gramofone preparado para nos dar música e imagens projectadas na parede para que a imersão naquele ambiente de fruição contemplativa, sonhadora, seja total.
Expedição sensorial
Aquilo a que assistiremos não será uma recriação das músicas dos álbuns, justapostas às imagens do livro mistério. João Nicolau e Mariana Ricardo já conheciam a música editada pela Yazoo quando foram convidados a apresentar-se na Galeria Marz e o título TheSecret Museum of Mankind pareceu-lhes nada menos que perfeito. Depois, como nos explica Nicolau, "demo-nos conta de uma história com muitas décadas que não conhecíamos".
Ou seja, descobriram a sua origem num livro peculiar e isso tornou tudo ainda mais interessante: "Não estávamos só a citar uma fonte ou a usurpar um título, mas a ir um pouco mais atrás e, de certa maneira, a incluir-nos nessa linhagem de viagem." Que será, de acordo com o espírito original, mais expedição sensorial que pedagogia melómana. "Tanto podemos tocar uma cantiga de embalar da comunidade judia do Uganda, que é um OVNI dentro daquilo que se ouve hoje em dia, como uma versão dos [americanos] Everly Brothers, do [nigeriano] King Sunny Ade ou do [brasileiro] Tom Zé." Cruzarão tempos e geografias, sem distinção entre a pop de sentido moderno e a arqueologia world music.
Não nos surpreende esta atitude pouco dada a acessos puristas. Basta ouvir os München, banda que integram e que acaba de editar Chaquiego, o seu segundo álbum. Na sua música convivem ukeleles e baixos fuzz, pedaços de bossa nova, canções de embalar e impulsos jazz; existem violinos dos Apalaches ou percussões africanas. Ouve-se o mundo como o local magnificamente desordenado e descentrado que é (ou deveria ser).
Em The Secret Museum of Mankind, como aponta Mariana Ricardo, "acabámos por organizar-nos para sistematizar um bocado as coisas, mas nada de rígido. Não há um programa por trás das músicas". Na apresentação da Galeria Marz, refere João Nicolau, "tocámos um bloco de música do Brasil, outro de África e um mais ligado aos Estados Unidos, incluindo aí o Havai, pela maciça exportação de músicos havaianos paras os Estados Unidos nos anos 20 e 30". Digamos que são fiéis às origens misteriosas e à ausência de autoria do livro The Secret Museum of Mankind: "Temos uma abordagem mais relacionada com o desfocar das músicas que com um intuito de pesquisa. Isso também existe, mas acaba por servir mais o nosso gozo de ouvir e recriar do que uma tentativa de passar informação científica." De forma muito resumida: "A nossa ideia original era tocar a música que nos apetecesse." Não só tocar, acrescentamos nós, mas também mostrar essa música que lhes apetece. Recordam-se da referência a um velho gramofone que partilhará palco com os músicos? Exagerando, diríamos que ele é o início de tudo.
Foi por tê-lo em casa, oferecido pelo pai, que João Nicolau começou a coleccionar na Feira da Ladra, na Net ou em lojas espalhadas pelo mundo velhas relíquias de 78 rpm. Pedaços de música que nos soam ainda mais distantes e exóticas por não fazerem parte de uma memória global preservada e difundida em larga escala - "não nos podemos esquecer que quase metade da história da música gravada não foi reeditada". Nesse processo, o que era música mainstream há oitenta anos ("artistas pop argelinos, orquestras de baile argentinas que tocavam valsas e foxtrots, coisas que bombavam na altura") é agora enquadrada na categoria de étnica.
Com João Nicolau, Mariana Ricardo e João Lobo no papel de músicos e anfitriões, com a música interpretada ao vivo ilustrada pelas imagens projectadas (vídeos de viagens anónimas das décadas de 30 e 40, por exemplo) e intercalada com a audição de velhos discos tocados no gramofone (contextualizados por João Nicolau), The Secret Museum of Mankind dilui esses preconceitos, criando um caleidoscópio musical de sons e imagens.
Exótico? Certamente, mas um exótico reinventado, recontextualizado. Um novo museu de delícias antigas.