Com um disco, "Esfíngico - Suite for a Jazz Combo", acabado de editar pela Clean Feed, outro a caminho e uma participação no grupo Afterfall (ao lado de Luís Lopes, Joe Giardullo, Benjamim Duboc e Harvey Sorgen), Sei Miguel vive um período particularmente criativo. Convidado pela Galeria Zé dos Bois (ZDB), em Lisboa, para desenvolver uma residência artística em moldes nunca antes propostos a outro músico, o trompetista e compositor prepara agora a segunda das apresentações públicas do seu trabalho - em quinteto, com Fala Mariam, Pedro Gomes, Rafael Toral e César Burago, na próxima quinta-feira, dia 23.
Como refere Natxo Checa, curador artístico e responsável pelas actividades da ZDB, "é porventura a primeira residência a cruzar a programação musical com os interesses das artes visuais". "Durante um ano, com regularidade mensal, o público poderá assistir ao vivo a diversas propostas inéditas de Sei Miguel, algumas delas encomendas. Procuramos acompanhar os seus processos e metodologias, decifrar as suas composições, fixar ligações conceptuais e estabelecer a sua genealogia na música contemporânea. Em suma, iremos balizar sob a forma de um livro escrito o trabalho extraordinário e singular de Sei Miguel."
A música de Sei Miguel é esculpida no detalhe. Nela será possível reconhecer fragmentos da história do jazz, sendo que este assume aqui uma forma viva, mutável, não convencional, mas também da música concreta ou da música erudita contemporânea de carácter mais experimental. Com uma discografia de dez títulos que se espalha pelas últimas três décadas, a sua música raramente é consensual. Exceptuando uma imensa minoria de fiéis apoiantes e algumas, raras, excepções - no final dos anos 80 é nomeado para os Setes de Ouro e convidado para diversas actuações no Hot Clube de Portugal -, a sua música é encarada em Portugal com desconfiança e perplexidade, sendo-lhe negado qualquer tipo de estabilidade ou reconhecimento.
No entanto, após 25 anos de trabalho contínuo e uma total dedicação à sua própria linguagem musical, as coisas começam agora a mudar, sobretudo a nível internacional. O crítico da revista "Wire", Dan Warburton, chama-lhe "o segredo mais bem guardado da nova música portuguesa", e Joe Morris, conceituado guitarrista norte-americano, escreve no seu blogue: "Sei Miguel é um dos mais interessantes improvisadores na cena actual. De alguma forma, encontrou aquele espaço onde melodia, ritmo, e um delicado equilíbrio entre som e silêncio, fazem a ponte entre música 'high art' e música 'folk' pura. É um dos artistas mais profundos que já conheci. Uma vez mais, como tantas vezes antes, um novo jazz surge de um lugar inesperado. Desta vez foi de Lisboa."
Ao planear a recolha de material para este texto, marcámos encontro com Sei Miguel numa esplanada no Príncipe Real, em Lisboa. O músico começa por mostrar-nos os "scores" em que tem estado a trabalhar - sistemas de notação gráfica, uma partitura geral para cada tema e uma partitura específica para cada músico, com instruções detalhadas - e pede para responder por escrito ao conjunto de perguntas que lhe preparámos.
Passados alguns dias, entrega-nos as respostas num conjunto de folhas manuscritas, elaboradas com uma minúcia que adivinhamos reveladora do cuidado que aplica a cada passo do seu trabalho musical. Tal como a sua música, que não encontra paralelo em lado algum, esta é uma personalidade única.
Miguel nasceu em Paris, passou a infância no Brasil, voltou a Paris, e instalou-se em Portugal. Todas estas mudanças geográficas terão contribuído para a formação de um carácter particular. O músico confessa: "Eu completamente 'nasci' no Brasil. Mas Paris acabou por ser benéfica, eram os gloriosos anos 70 e isso abriu-me ao mundo. A vida cultural brasileira sempre me pareceu auto-suficiente, para o bem e para o mal. Portugal/Lisboa foi, logo, soturno saturno, uma verdadeira armadilha chinesa. Tenho uma relação de ódio-ódio com isto. Penso hoje que lá fora as coisas não devem estar muito melhor. Tenho aqui passado mal e pior, obrigado, tornaram-me português à força. Rafael Toral ajudou-me incontáveis vezes a não ir abaixo. O que quer que lhe diga? Que existem bons e grandes portugueses? Que Manuel Mota toca o que toca e é de cá? Que a esperança é a última a morrer? Pois é."
Apesar da difícil relação com o país, foi em Portugal que nasceu para a música, que deu os primeiros passos. Primeiro em colaborações diversas, atravessando até diferentes áreas musicais, depois como líder. O assumir da condição de líder aconteceu através dos Moeda Noise, experiência que, apesar de breve e de não ter produzido registos gravados, terá deixado marcas em quem acompanhava a cena experimental na Lisboa dos anos 80: "Os Moeda Noise tocavam uma música rudimentar. Com plena consciência do facto. Optei na altura por uma aproximação expressionista, em pequenas estruturas temáticas, onde ensaiei os rudimentos daquilo que faço hoje."
Característica da música de Sei Miguel é a utilização do trompete de bolso ("pocket trumpet"), um instrumento pouco habitual. Irónico, o trompetista explica a sua escolha: "Há-de reparar que o mundo se divide em duas categorias de pessoas: as que gostam de coisas grandes e as que gostam de coisas pequenas. Eu gosto de coisas pequenas. E como não sou muito grande... o trompete tinha mesmo de ser pequeno. Agora a sério: um anjo de fogo ofereceu-me o instrumento assim pequeno, com intenções."
A certa altura, a sua música evolui para uma forma jazz mais assumida, uma transição que não terá sido evidente: "O jazz, definitivamente, não vive das qualidades espontâneas da juventude. São precisos conhecimentos: técnicos, conceptuais e alguma maturidade. Leva tempo e escolas não adiantam. O que há mais é músicos a tocar umas aparências de jazz, descurando aquilo que é realmente necessário, vivências e aprendizagens reais. É necessário limpar o acesso ao conhecimento. Para isso, não é de todo necessário torná-lo uma balela."
O mundo do jazz nacional tem mantido uma certa distância da sua música e Miguel está bem consciente desse afastamento: "O jazz cada vez mais instituído, o jazz pseudoglobal e da União Europeia Caga Regras (UECR), não me quer. E eu, assim como ele se tornou, também não o quero. Importa-me o jazz verdadeiro. O resto (e é muito) que se lixe." No entanto, apesar de não se identificar com a maior parte do jazz nacional, o trompetista parece procurar ocasionalmente eventuais pontos de contacto, tendo participado recentemente na Festa do Jazz do São Luiz, altura pela qual o saxofonista Carlos Martins integrou um grupo seu, em concerto na loja Trem Azul. Duas novas excepções num percurso feito à margem.
Não tenho discografia
Olhando em retrospectiva, a sua discografia está recheada de momentos importantes, espalhada por diversas editoras. Um conceito que o músico rejeita de imediato: "Julgo não ter 'discografia'. Tenho alguns discos, mais ou menos produzidos. Se algum deles lhe parece bom, óptimo, porque eu sou melhor. Até uma editora inteligente perceber que só ganha, a curto, médio e longo prazo, em trabalhar comigo constantemente, recuso-me a debater o assunto."
Elogiado por muitos daqueles que consigo têm colaborado, de Rafael Toral a Manuel Mota, o seu processo de criação tem como principais marcas a ênfase na composição e o trabalho de interacção com os músicos. Sei Miguel aceita, aqui, debater o assunto: "Acredito que a composição existe, forçosamente, nas músicas do jazz. Já acredito menos na existência de compositores dessa área. Eu próprio não me considero um compositor: estudo formas, estudo a forma. E dirijo a música em cada músico, em módulos de trabalho a que chamo peças. Existem as peças mais escritas e sublimadas, com uma lógica interna particular, lêem-se e tocam-se como poemas sinfónicos contemporâneos. E existem as peças genéricas, são sistemas, possuem um rigor informal e portanto enfatizam a personalidade de quem as toca."
Numa música que poderá por vezes correr o risco de ser confundida com música improvisada, procuramos um esclarecimento que acaba por nos revelar uma relação particular do músico com a improvisação: "O pessoal anda a brincar... ou a ganhar a vida, o que, em termos musicais, vai dar ao mesmo. Mas vou tentar dizer algo de jeito. 'Improvisação' é um termo de relatividade e foi útil em certas disciplinas clássicas. Actualmente é uma palavra mediatizada com impropriedade e oportunismo, contribuindo internacionalmente para a mediocridade das divulgações estatais em matéria de jazz." Pára, porque afinal não está a dizer nada de jeito. Diz que vai tentar outra vez. "Não se improvisa sobre o nada; improvisa-se num âmbito; logo aí a natureza da chamada improvisação impõe-se: é a modulação, mais ou menos alargada, de uma escrita. Músicas 'improvisadas' serão muitas, umas com o cunho autoral de um tema ou de uma peça, outras com a relativa liberdade de um género de transmissão mais oral. É preciso ver que todas as músicas evoluem e nenhuma anotação abarca a inteireza do que a música foi ou será. Existe também uma transmissão oral mais rígida que certas escritas. E afinal, o que é a música, qualquer música, senão uma forma de escrita? Tudo está no lugar, no 'poder' dado ao músico-tocador em termos de decisão de forma ou na forma. Arrisco o exemplo de um actual e reconhecido 'improvisador': um saxofonista como Rodrigo Amado centra (ou des-centra) o seu instrumento para definir o mais que pode a música tocada. Na tradição que é a de Coltrane, de Shepp, e depois a de Evan Parker ou Brötzmann, o Rodrigo está a amadurecer uma escrita - o factor improvisado, modulatório, é inerente."
Nesta altura da sua carreira, é seguro afirmar que Sei Miguel conseguiu alcançar uma linguagem individualizada. Para o músico, esta será uma questão secundária, sendo mais importante o enfoque na música. Não nega, contudo, a sua relevância particular: "Eu adiei muitos anos, mais de vinte, a expressão plena, 'individual', da minha música no trompete. A orquestração absorveu-me. Inspirado pela obra de John Cage, atribuí à composição o máximo valor e a máxima leveza. Isto no assumido contexto jazzístico de todos os fetichismos do 'ser' e da 'frase'. Importantíssimo é aceitar a herança negra, oral e planetária da nova grande música; pois é isso que ela é, ou poderia ser se a deixassem. Bem vê, a expressão individual é para mim uma mera ferramenta. Uma ferramenta fascinante e absolutamente necessária. Mas uma ferramenta. Um indivíduo é uma singular expressão do cosmos. Nesta época de comunicações fúteis urge criar uma ética do 'voicing'/a obrigatória noção dos Tipos mas também do Arquétipo. Eis porventura uma estética renovada, capaz de enfrentar as novas ignorâncias..."
Projectos: "faz pouco sentido"
Com um grupo restrito de colaboradores ao longo dos anos, dos quais Fala Mariam e César Burago são os mais regulares, Sei Miguel alcança uma regularidade que favorece um assimilar de processos: "Fala Mariam e o senhor Burago sabem por vezes mais sobre a minha música do que eu próprio, às vezes perdido em arranjos duvidosos e cansaço. Trabalhar com as mesmas pessoas favorece tudo."
Mas não deixa de estar atento a novos instrumentistas, tendo recrutado recentemente o guitarrista Pedro Gomes - músico com experiência nos grupos CAVEIRA, Manta Rota e Braço, programador da promotora Filho Único e ex-ZDB. "O Pedro é um músico de talento invulgar e um guitarrista fortíssimo. O Pedro é daqueles, poucos, que merecem um mundo melhor. Peço-lhe às vezes para nunca se zangar comigo." A Miguel, Mariam, Burago e Gomes junta-se finalmente o também colaborador regular Rafael Toral, electrónica, no quinteto que se irá apresentar ao vivo na ZDB para tocar duas peças novas: "Os Céus" e "8 lançamentos para Pedro Caveira".
Quando lhe perguntamos em que projectos se encontra envolvido, responde-nos que, para si, a palavra "projectos" faz pouco sentido: "Feliz ou infelizmente não me posso dar ao luxo de ter - ou participar em - 'projectos'. Eu simplesmente faço e tento sobreviver. Mas o justo aqui é referir a importância desta minha residência na Galeria Zé dos Bois, entidade-farol na interminável (oxalá) noite criativa lisboeta. A ZDB, na pessoa de Natxo Checa, resolveu dar-me o seu apoio. Fiquei espantado e agradecido. No meu ofício, que não difere em inúmeros aspectos do de qualquer outro trompetista do jazz, existem técnicas essenciais, aplicadas em formas de execução e escuta de um silêncio prismático. Entre a oralidade e a escrita-escrita, trabalho e faço trabalhar bocados de música que são circunstâncias rigorosas de tempo e espaço. Ora bem, eu pretendo dar a ver o sucessivo tempo e dar a ouvir o profundo espaço. Para a ZDB interessam questões de ordem musical (a interpretação, o 'show' e outros teatros), gráficas ('scoring' e afins) e o patético esforço conceptual para encerrar Deus numa caixinha. Nesse sentido, o senhor Checa está-me obrigando a escrever um livro que eu preferia adiar, indefinidamente."