Nobres e aristocratas numa nova história da homossexualidade

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Recorte a partir de retrato de D. Sebastião pintado por Cristóvão de Morais em 1565, Fotógrafo

Ricardo Coração de Leão, Luís II da Baviera, o espanhol Infante Luís de Orleães, o português D. Sebastião. Um livro que acaba de chegar às livrarias conta a história de 45 personalidades. E ajuda a perceber como foram sendo encaradas ao longo da história as relações entre pessoas do mesmo sexo

A Inquisição portuguesa, instituída por bula papal em 1536 e só oficialmente extinta com a revolução liberal, teve poderes especiais em relação à sua congénere espanhola e jurisdição especial na área da condenação e perseguição aos sodomitas. Esse carácter disciplinador de actos que a Igreja católica via como pecados, sobretudo depois do Concílio de Trento (1545), não acabou com os sodomitas. Mas deixou para a posteridade um manancial infindável de documentação sobre os hábitos e as práticas daqueles que, na nobreza e na alta e baixa aristocracia, mantinham relações sexuais com pessoas do mesmo sexo - ou seja, aquilo que na segunda metade do século XIX será chamado de homossexualidade (antes disso só se pode falar de sodomia).

A vasta documentação deixada pela Inquisição portuguesa é uma das origens da informação que permite a Fernando Burquetas de Castro construir a sua obra Reis Que Amaram como Rainhas, agora traduzida para português por Carlos Aboim de Brito e editada pela Esfera dos Livros. O livro acaba de chegar às livrarias.

Com base nessas fontes, nas crónicas coevas e na bibliografia historiográfica que foi entretanto produzida, este historiador e professor de História das Canárias e de História da Marginalização Social, na Universidade de las Palmas de Gran Canaria, faz uma panorâmica de mais de dois milénios de história da sexualidade no Ocidente, em particular das relações entre pessoas do mesmo sexo. E fá-lo com uma elegância expositiva, uma escrita acessível e fácil de ler, envolvente mesmo, sem vícios de academia, nem peso de alfarrábio. Mas sem perder rigor histórico e segurança de contextualização.

Ao longo de 360 páginas, o autor, com uma tese de doutoramento (1998/2000) premiada, apresenta o outro lado das biografias mostradas pela história oficial de 45 personagens históricos. São 41 figuras da antiguidade clássica e da realeza e da nobreza europeias até ao século XX. E mais quatro mitos fundadores da cultura ocidental que serviram de reguladores sociais também no que se refere à forma como podiam e deviam ser vividas as relações entre pessoas do mesmo sexo: os pares Gilgamés e Ganimedes, Hórus e Seth, Zeus e Ganimedes e Aquiles e Pátroclo.

Ricardo Coração de Leão

Abrindo a obra com um interessante resumo sobre o nascimento e o desenvolvimento do que é a homofobia, Fernando Burquetas de Castro recupera dos anais aquilo que ficou de fora da grande maioria das histórias feitas a partir do século XIX sobre alguns personagens históricos.

Ou seja, recupera o que foi censurado pela historiografia a partir do momento em que o desenvolvimento do capitalismo industrial introduziu o conceito de família nuclear, patriarcal, heterossexual, e passou a criminalizar como doença, com consequências anti-sociais - e não apenas a punir como pecado -, as relações entre pessoas do mesmo sexo, como analisou Michel Foucault.

Este livro apresenta, assim, em pequenos textos de leitura aprazível, a realidade histórica sobre figuras como os imperadores romanos biografados por Suetónio, até ao poeta do reino taifa de Silves, Ibn Ammar de Silves, passando ainda por vários reis como Ricardo Coração de Leão a Luís II da Baviera.

O casto D. Sebastião

Há referência a figuras mais recentes, como o espanhol Infante Luís de Orleães, que desafiou Hitler passeando em Berlim com a estrela amarela dos judeus cosida na lapela do casaco - e também, segundo alguns relatos da época, com o triângulo cor-de-rosa que era cosido à roupa dos homossexuais enviados para os campos de concentração nazis. E ainda o rei de Inglaterra Eduardo VIII, que depois de abdicar do trono ficou para a posteridade como o duque de Windsor e que, além de abandonar a coroa oficialmente pela divorciada norte-americana Wallis Simpson, não escondia a sua bissexualidade, de que é prova as relações que manteve, já nos anos 50, com o gigolô homossexual norte-americano Jimmy Donahue.

Já no que se refere a Portugal, além dos casos famosos do conde de Vila Franca e do marquês de Valada, é de referir a forma aturada e cuidadosa como Burquetas de Castro conta as histórias de monarcas que mantiveram relações com pessoas do mesmo sexo, como Pedro I ou Afonso VI, ou de figuras míticas dos Descobrimentos e do Império português, como o Infante D. Henrique e Afonso de Albuquerque. E, claro, o oficialmente misógino e casto D. Sebastião.

Usando estudos recentes, Fernando Burquetas de Castro mergulha também nas crónicas da época, como a Crónica d"el Rei D. Sebastião, do português Bernardo da Cruz, assim como nos textos de cronistas espanhóis e árabes.

Uma das cenas descritas - D. Sebastião em plena caçada no Alentejo - chega a ser hilariante. Conta-se como os nobres que o acompanhavam ouviram barulho e foram ver o que se passava com o rei - que desaparecera. Foi então que no meio do bosque viram D. Sebastião agarrado a um escravo negro, que tinha fugido de uma propriedade da zona na noite anterior. Calaram-se e nada disseram. Mas ainda ouviram da boca do monarca a justificação de que pensava ter agarrado um javali.

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