O êxito da colecção Vampiro, da editora Livros do Brasil, que fez vingar em Portugal o conceito do “policial de bolso”, inspirou outras editoras a seguir-lhe o exemplo. Em 1950, três anos após a Vampiro ter inaugurado a sua colecção com Poirot Desvenda o Passado, de Agatha Christie, surgiam a colecção O Escaravelho de Ouro, da então recém-criada Édipo, e a Xis, da Minerva. Esta última, interrompida no início da década de 70, ainda teve um efémero segundo fôlego nos anos 80 e, quando se extinguiu definitivamente, em 1993, tinha já publicado 210 títulos. A Escaravelho de Ouro durou apenas cinco anos e ficou-se por 40 livros, mas não é certo que seja a menos notável das duas.
A Vampiro não foi, de modo algum, a primeira colecção policial portuguesa. Desde a colecção Novelas Policiais lançada em 1931 por Reinaldo Ferreira, vulgo Repórter X, até 1947, quando a Livros do Brasil criou a sua colecção de bolso, publicaram-se dezenas de colecções. A mais importante talvez tenha sido a série Os Melhores Romances Policiais, da Livraria Clássica Editora, iniciada também em 1931, que publicou mais de uma centena de títulos, muitos deles várias vezes reeditados. Basta olhar para os dois primeiros números, respectivamente preenchidos pelos autores belgas Stanislas-André Steeman e Georges Simenon, para se verificar o cuidado posto na selecção das obras, bem como a prioridade concedida ao policial francófono. Mas quando a colecção acabou, em meados dos anos 50, já se voltara, também, para os autores ingleses e para o roman noir americano, publicando, por exemplo, o notável Cornell Woolrich (também conhecido pelo pseudónimo William Irish), de quem a Xis começou pela mesma altura a editar as obras mais relevantes.
Mas a Vampiro tornou-se um inegável caso à parte, alcançando uma popularidade de que nenhuma das suas antecessoras (ou sucessoras) se pode gabar. Dos múltiplos motivos que podem ter concorrido para esse êxito, talvez se possam destacar quatro ou cinco factores principais. Desde logo, a introdução do policial de bolso, um conceito provavelmente importado do mundo editorial anglo-saxónico, já que a principal referência francesa, a colecção Le Masque, criada em 1927, tinha um formato ligeiramente superior. Decerto não menos relevante foi a sua aposta em autores de língua inglesa, sem grandes precedentes num Portugal ainda largamente dominado pela cultura francesa. O terceiro trunfo foram as suas notáveis capas, boa parte delas desenhadas, no início da colecção, por Cândido Costa Pinto (1911-1976). Companheiro de Mário Cesariny no Grupo Surrealista de Lisboa, as capas que produziu para a Vampiro foram uma verdadeira pedrada no charco das artes gráficas nacionais. Hoje olhamos para elas distraidamente nos escaparates dos alfarrabistas, mas, no cinzento Portugal dos anos 40 e 50, seguramente deslumbraram muitos leitores. Até mudar de grafismo, optando por capas pretas ilustradas com fotografias pouco apelativas, a colecção contou sempre com a colaboração de grandes artistas, entre os quais se destaca, além de Costa Pinto, o pintor Lima de Freitas.
É ainda plausível que o modo como a Vampiro rapidamente fidelizou leitores possa ter ficado a dever-se ao facto de ter começado por se concentrar num número reduzido de escritores, todos eles da tradição do policial dedutivo, e todos eles criadores de séries, isto é, de um conjunto de livros com o mesmo detective, o que foi uma opção inteligente, já que boa parte dos leitores de policiais se viciam mais facilmente nas criações do que nos criadores. A Vampiro apostou, sobretudo, em Agatha Christie, com o seu Poirot, em Ellery Queen, com o seu detective amador homónimo, em Erle Stanley Gardner, criador do advogado Perry Mason, e, para referir apenas os autores mais recorrentes no início da colecção, em S. S. Van Dine, cujos livros são protagonizados pelo sofisticado investigador diletante Philo Vance.
Traduções desiguais
A estas inovações, a Vampiro somava o paradoxal mérito de apresentar traduções desiguais – as primeiras eram ainda importadas do Brasil e revistas para português de Portugal –, mas que, apesar de todas as suas fragilidades, eram melhores, e escritas num português mais escorreito, do que a generalidade das traduções de colecções anteriores, em muitos casos “versões livres”, mesmo quando não eram assumidas como tal.
Dos muitos tradutores que passaram pela colecção, é de inteira justiça realçar, pela qualidade do seu trabalho, o nome de Fernanda Pinto Rodrigues, que os leitores menos familiarizados com o policial conhecerão de edições portuguesas de autores como Jane Austen, Steinbeck, Saul Bellow, Malcolm Lowry, Vladimir Nabokov, Ian McEwan ou Philip Roth, para citar apenas uma ínfima parte dos escritores que traduziu.
Não se pode dizer, no entanto, que a maioria das traduções da Vampiro fosse recomendável. Hoje parecer-nos-ia algo chocante que se publicassem livros de Agatha Christie traduzidos do francês, como se chegou a fazer, e dificilmente acharíamos perdoável que um tradutor resumisse parágrafos mais longos e complexos, ou os saltasse mesmo despreocupadamente à frente, como também por vezes acontecia. Mas há que ter em conta várias atenuantes: os tradutores não dispunham dos múltiplos recursos hoje postos à sua disposição, trabalhavam a contra-relógio para satisfazer os prazos das editoras e, no caso dos autores americanos, dispunham de pouquíssima informação sobre a sociedade e cultura dos Estados Unidos. Na sua tese de doutoramento, História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970) – Transfusões e Transferências, ainda sem edição comercial, Maria de Lurdes Sampaio diz que, “dada a quase inexistência de relações interculturais entre Portugal e os EUA, é sobretudo na tradução de romances da tradição americana que se verificam as alterações mais drásticas”. Entre os muitos exemplos que aponta, destacam-se os relativos a Raymond Chandler, que sofreu tratos de polé às mãos de sucessivos tradutores.
Sampaio nota ainda que os desvios face aos originais eram muitas vezes deliberados, quer visando facilitar a leitura por parte de um público heteróclito e parcialmente pouco instruído, quer procurando aproximar as obras do modelo de policial então dominante, que era o romance de tipo dedutivo, para o qual os ingleses inventaram o neologismo “whodunit”.
O sucesso da Vampiro mostra, no entanto, que as deficiências das traduções eram bem toleradas, em parte por ignorância dos leitores, mas também porque, ao mesmo tempo que a edição policial vivia entre nós um período áureo, o género continuava a ser visto como um parente pobre da “verdadeira” literatura, que, essa sim, exigia tradução cuidada.
O autor e editor António Andrade de Albuquerque, que se celebrizou com o pseudónimo Dick Haskins, chama a atenção para um pormenor que ilustra bem esse estigma de menoridade que pesava sobre o policial. Em 1958, criou e dirigiu a colecção Enigma, inicialmente publicada na Ática. Mas esta editora, que publicava livros “sérios” e receava comprometer a sua imagem, optava por se apresentar, na ficha técnica dos volumes da Enigma, como mera “depositária” .
Em Portugal, de resto, só muito recentemente é que os próprios meios académicos começaram a ver no policial um género “aceitável”. Daí que, ao contrário do que acontece noutros países, tenhamos uma flagrante falta de obras de referência sobre a edição portuguesa de policiais. E também não é por acaso que a Biblioteca Nacional não possui séries completas de muitas destas colecções, incluindo a Escaravelho de Ouro e a Xis.
No entanto, estas colecções de bolso, que a censura tendia a ignorar, deram provavelmente a ler alguma da mais subversiva literatura que então se editava no país. E, a par do cinema, ofereceram decerto um contributo relevante para abrir a sociedade portuguesa da época à cultura americana.
Se a dicotomia clássica entre literatura popular e erudita, bem como a divisão tradicional da criação literária em géneros mais ou menos estanques, são hoje cada vez mais questionadas, talvez o policial, género entre todos impossível de definir e circunscrever com precisão, seja um local privilegiado para se pensar essas contradições. E traçar a história do género policial, como nota Jacques Breton numa obra sobre as colecções policiais em França, mais do que a tentativa de lhe descobrir antepassados ilustres – Charles Dickens, Wilkie Collins, Edgar Allan Poe ou Conan Doyle, e ainda os franceses Eugène François Vidocq ou Emile Gaborieau, são alguns dos habitualmente citados –, “deveria ser, antes de mais, [fazer] a história da sua edição e, portanto, dos seus editores”. Ora, no policial, mais do que em qualquer outro género literário, a edição traduziu-se em colecções.
Uma revolução gráfica
Outro tema que urgiria estudar a fundo é o que diz respeito ao grafismo: as capas dos policiais de bolso foram um fascinante campo de experimentação e constituem uma espécie de capítulo secreto da história recente das artes plásticas portuguesas. Se a parte desse capítulo que foi escrita pela Vampiro é razoavelmente conhecida, dado que a colecção ainda hoje se edita e conta com numerosos coleccionadores – algumas das suas capas têm mesmo vindo a ser mostradas no estrangeiro, em exposições como a que a Bibliothèque des Littératures Policières, em Paris, dedicou em 2000 ao romance policial em Portugal –, a não menos notável contribuição de colecções como a Escaravelho de Ouro ou a Xis, ambas há muito desaparecidas, é menos frequentemente lembrada.
Ambas as colecções tentaram repetir alguns dos factores que tinham contribuído para o êxito da Vampiro, adoptando o formato de bolso, investindo nas capas e, especialmente no caso da Xis, apostando no filão dos autores anglo-saxónicos. Mas, ao mesmo tempo, também procuraram marcar a diferença.
A Escaravelho de Ouro foi concebida por um grande editor português, recentemente falecido, Joaquim Figueiredo de Magalhães (1916-2008), que a generalidade dos leitores relaciona sobretudo com a prestigiada editora Ulisseia, que fundou e dirigiu. Mas, ainda antes de lançar a Ulisseia, tinha criado a Édipo, que lhe serviu quase exclusivamente para publicar a Escaravelho de Ouro.
O primeiro número da colecção recuperava um autor que fora divulgado em Portugal nos anos 30 pela Livraria Clássica Editora, Stanislas-André Steeman. A obra escolhida, Três Igual a Um, uma bem contada história de suspense em torno de um serial-killer, fora já então adaptada ao cinema por Henri-Georges Clouzot. Para traduzir o livro, o editor convidou Adolfo Casais Monteiro, que, em 1950, era já um escritor consagrado. Amigo de Fernando Pessoa – que, como se sabe, escreveu vários fragmentos de novelas policiais e criou um detective, o Dr. Quaresma –, foi justamente a Casais Monteiro que o poeta, ainda antes de ser editada a Mensagem, escreveu a célebre carta em que se afirmava hesitante entre inaugurar a publicação da sua obra com um livro de poemas ou com uma novela policial.
A capa de Três Igual a Um, cujas páginas incluem algumas ilustrações do próprio Steeman, ficou a cargo do pintor e ilustrador Roberto Araújo Pereira (1908-1969), contemporâneo e amigo de Almada Negreiros e homem de múltiplos talentos, a quem se devem, entre outras obras, cenários para filmes portugueses, painéis de azulejos e vitrais para igrejas. Menos recordado do que outros ilustradores da época, Roberto Araújo criou, para a Escaravelho de Ouro, 18 capas que podem bem considerar-se, quase sem excepção, pequenas obras-primas do género. As restantes capas da colecção, algumas delas também notáveis, são todas de Rosa Duarte, à excepção da do último número, assinada pelo pintor Marcelino Vespeira, que fora, em 1949, um dos artistas representados na primeira exposição do Grupo Surrealista de Lisboa.
Ao contrário da Xis, que teve uma mais visível lógica de competição com a Vampiro, divulgando alguns autores ingleses e americanos que a sua rival não contemplara, a Escaravelho de Ouro limitou-se provavelmente a espelhar o gosto do seu proprietário e, a partir de dada altura, também o de Afonso Baptista de Carvalho, que traduziu mais de uma dúzia de títulos da colecção e que, no número 15, aparece referido como seu director. Serralheiro civil de formação, tendo estudado francês e inglês em cursos nocturnos e obtido a licenciatura em Direito na condição de trabalhador-estudante, Baptista de Carvalho viria a ter alguma notoriedade logo após o 25 de Abril enquanto promotor do Movimento Nacional Pró-Divórcio. O seu caso ilustra bem essa espécie de “fraternidade” do policial que existia na época, e que se sobrepunha à rivalidade comercial entre editoras: não só dirigiu, a dada altura, quer a Escaravelho de Ouro, quer a Xis, como traduziu simultaneamente livros para ambas as colecções e também para a Vampiro. Andrade Albuquerque não hesita em confirmar que, por esses anos, “havia mesmo uma comunidade do policial” em que todos se conheciam e acamaradavam. “Tínhamos paixão em descobrir e traduzir autores, e queríamos sempre fazer as coisas o melhor possível”, diz o escritor.
Do ponto de vista da selecção de autores, a Escaravelho de Ouro, cujo título evoca o conto homónimo de Egar Allan Poe, é uma colecção ecléctica, mas na qual é difícil encontrar um livro medíocre. Publicou pioneiros do género, como Conan Doyle ou Gaston Leroux, e também autores de referência do policial de dedução, como Dorothy L. Sayers, Agatha Christie, John Dickson Carr, S. S. Van Dine, Ellery Queen ou Freemans Wills Croft. Este último, hoje muito esquecido, é um caso singular entre os autores da chamada “Golden Age” do policial inglês, já que o seu realismo na descrição da actividade policial o aproxima de autores americanos posteriores. A colecção incluiu também escritores franceses como Simenon, Steeman e o pouco conhecido Lucien Prioly, ou ainda o prolífico autor inglês E. Philips Oppenheim, autor de centena e meia de romances, pioneiro das histórias de espionagem e figura omnipresente em quase todas as colecções policiais portuguesas dos anos 40 e 50. Mas também editou os “pais” do policial genuinamente americano, Dashiell Hammett e Raymond Chandler, criadores de um veio da ficção policial que ficou conhecido como private eye, dado que os protagonistas dos livros são detectives privados profissionais, e não, como na tradição inglesa, amadores excêntricos. No seu ensaio The Simple Art of Murder, Chandler resume com humor lapidar a revolução que Hammett provocou na ficção policial: “Devolveu o crime às pessoas que o praticam com um motivo, e não apenas para fornecer um cadáver, e que usam meios disponíveis, e não pistolas de duelo forjadas à mão, curare ou peixes tropicais”.
Quando a Escaravelho de Ouro publicou, em 1952, O Homem Sombra, de Hammett, a Vampiro já tinha editado O Falcão de Malta, do mesmo autor. Significativamente, ambos os livros são traduzidos por Baptista de Carvalho. Mas cabe à colecção da Édipo a não pequena honra de ter sido a primeira publicar Raymond Chandler, editando, em 1951, o seu romance inaugural, The Big Sleep (1939). A tradução é, mais uma vez, de Baptista de Carvalho, que usou o título À Beira do Abismo, já consagrado no país desde 1948, quando se estreou em Lisboa o filme de Howard Hawks baseado no livro. Uma nota editorial inserta no volume da Escaravelho de Ouro recorda que este foi “um êxito de bilheteira” em Portugal e elogia as prestações de Humphrey Bogart e Lauren Bacall. A editora faz ainda saber aos seus leitores que “está já em negociações com vista à tradução das obras de Chandler, de que foram extraídos filmes de êxito retumbante, e não se poupará a esforços para conseguir os respectivos direitos”. Infelizmente, não os terá conseguido, já que não publicou mais nenhum título e Chandler acabou por ser divulgado na Vampiro a partir de 1955, ano em que saiu O Imenso Adeus, traduzido pelo escritor Mário Henrique Leiria.
Mas Raymond Chandler, sendo o mais relevante, não foi o único autor que a colecção de Figueiredo de Magalhães revelou em Portugal. Outros exemplos são o recomendável James Hadley Chase, um autor inglês que escrevia histórias de gansgters passadas nos Estados Unidos, embora só conhecesse o país de algumas breves visitas, ou a americana Craig Rice, hoje pouco lida, mas que, nos anos 50, chegou a ser capa da revista Time. Considerada o expoente do policial surrealista, Rice teve dois livros publicados na colecção, incluindo essa obra-prima que é Cilada Triangular, cujo título é bastante mais sugestivo no original: Home Sweet Homicide. Outra obra fundamental publicada pela Édipo foi Suspeita, de Francis Iles, pseudónimo de Anthony Berkeley, que neste livro, originalmente publicado em 1932, antecipa os policiais contados na perspectiva do criminoso, mais tarde popularizados por autoras como Patricia Highsmith.
A Escaravelho de Ouro procurou ainda distinguir-se da concorrência através de pequenos detalhes, como o de publicar notas biográficas (ou supostamente autobiográficas) dos autores. E tinha ainda o hábito de fazer preceder os romances de uma lista das respectivas personagens, que muitos leitores desprevenidos terão pensado que eram traduzidas do original. Redigidas num registo bem-humorado e de sabor surrealista, até quadravam bem com livros como os de Craig Rice, mas entravam obviamente em choque com o estilo de outros autores. Não seria implausível que Rice apresentasse uma personagem como sendo “Frankie Riley, chantagista de má nota e traficante de insignificante categoria, cujo corpo é um crivo de balas”, ou que elevasse à condição de protagonista um retrato de família pendurado na casa onde se dá o crime, descrevendo-o como “Tio Herbert, um quadro a óleo com um buraco num olho”. Mas já seria bastante menos provável que Chandler apresentasse assim uma personagem: “Vivian Regan, esposa de Rusty, filha mais velha do General. Lindas pernas e nenhuma moral”.
Figueiredo de Magalhães, dotado de bom faro comercial, lembrou-se também de promover a colecção oferecendo viagens. Desde o primeiro número, todos os exemplares traziam cupões que habilitavam os compradores dos livros a concorrer a uma viagem de oito dias, sorteada mensalmente – o primeiro destino escolhido foi o Rio de Janeiro –, e a uma viagem de 30 dias “à volta do mundo”, atribuída uma vez por ano. Se o prémio mensal, no Portugal dos anos 50, não era de desdenhar, o anual era uma coisa nunca vista.
Não é muito claro o que ditou o final abrupto da Escaravelho de Ouro, já que, aparentemente, a colecção dava lucro. Catarina Portas, num texto de homenagem a Figueiredo de Magalhães publicado por ocasião da sua morte, diz mesmo que este fundou a Ulisseia, em 1952, com o dinheiro que ganhara com os policiais. Os dois últimos números da colecção foram já publicados, aliás, com a chancela da nova editora.
Tal como a Escaravelho de Ouro, a Xis dava prémios, mas um pouco mais parcimoniosos: limitava-se a oferecer um livro a quem comprasse dez. Em termos editoriais, a colecção da Minerva apostava também, como a da Édipo, em oferecer ao leitor algo mais do que o livro propriamente dito, dedicando um conjunto variável de páginas, às vezes bastante extenso, a torneios de resolução de problemas policiais, curiosidades, anedotas, palavras cruzadas e até artigos sobre xadrez.
A colecção abriu com Um Crime Branco, de James Marcus, supostamente traduzido por J. P Fernandes e A. Fernandes. A dupla Fernandes era, na verdade, autora do livro, mas a Xis levou o requinte de encobrimento do pseudónimo ao ponto de inventar um título original para a obra: White Murder. Embora os autores portugueses não abundassem na colecção – além de três livros de James Marcus, publicou apenas um título de José da Natividade Gaspar, um outro escrito a meias por Francisco Branco e Mascarenhas Barreto, a ainda um livro de W. Strong-Ross (Francisco Valério Rajanto de Azevedo) –, este era um ponto em que se distinguia da Vampiro e da Escaravelho de Ouro e se aproximava quer de colecções anteriores, como a já referida Os Melhores Romances Policiais, entre várias outras que publicaram autores nacionais, muitas vezes ocultos sob pseudónimos anglo-saxónicos, quer de colecções posteriores, como a Enigma, de Dick Haskins/Andrade Albuquerque, ou a Rififi, onde saíram os três singularíssimos romances policiais de Dinis Machado, assinados com o transparente pseudónimo Dennis McShade, e ainda muitos títulos de Ross Pynn, pseudónimo de Roussado Pinto.
Os anos 50 e 60 foram também um período de intensa produção nacional de romances, novelas e contos policiais, mas que, paradoxalmente, não resultou na afirmação de uma ficção policial portuguesa, já que boa parte dos autores recorria a pseudónimos anglo-saxónicos e fazia decorrer a acção dos seus livros no estrangeiro. Esta será uma das razões pela qual nunca despertaram a atenção da Censura. Andrade de Albuquerque só recorda, na longa história da Enigma, um caso em que teve problemas com o regime. O nono volume da colecção, Heroína, de Ed McBain, um dos pseudónimos do italo-americano Salvatore Lombino, que também assinou livros como Evan Hunter, foi apreendido. E mesmo esta investida ter-se-á ficado a dever, segundo Andrade de Albuquerque, a um azar de “timing”, já que tinha havido um escândalo com consumo de drogas numa festa de alta sociedade e o momento era delicado para um livro com aquele título.
Uma selva de pseudónimos
A própria escolha de pseudónimos estrangeiros seria menos uma estratégia de fuga à censura do que uma opção comercial. “O público português não compraria policiais escritos por um António Andrade de Albuquerque, e foi por isso que arranjei o pseudónimo Dick Haskins”, diz o fundador da Enigma, explicando que a sua intenção era apropriar-se do apelido do actor Jack Hawkins, muito conhecido na época. “Enganei-me a escrever e saiu Haskins”. Mas, afirma, “toda a gente sabia que Dick Haskins era português”. Ou nem toda. O autor, cujas obras, significativamente revistas, foram recentemente reeditadas pela Asa – e que é o único caso de um autor policial português com verdadeira divulgação internacional, estando traduzido em dezenas de países –, conta, divertido, que recebeu um dia um telefonema do director da Polícia Judiciária, que tinha sido incumbido pelo então ministro da Justiça Antunes Varela de localizar o autor de Premeditação, livro em que Andrade de Albuquerque descrevia elogiosamente a actividade da Judiciária portuguesa. Julgando que se tratava de um autor estrangeiro, o ministro queria homenageá-lo.
Boa parte destes autores portugueses que escreviam sob um ou mais pseudónimos estrangeiros – só á sua conta, Gentil Marques usou para aí uma dúzia (James Strong, Marcel Damar, William Forst, G. D. Richardson, Herbert Gibbons, Charles Berry ou D. W. Ritcher, entre outros) – eram também tradutores de policiais e colaboravam nas muitas revistas, antologias e policiários que se publicavam na época. Alguns, como Andrade de Albuquerque e o fotógrafo e arquitecto Victor Palla, director das revistas Vampiro Magazine e Gato Preto, eram ainda autores de capas.
Na Xis, o principal ilustrador de serviço era Edmundo Muge, que assinou boa parte das capas, embora a série tenha durado o suficiente para ainda poder ter tido números ilustrados por Jorge Colombo, nascido uma dúzia de anos após o arranque da colecção. Com as suas capas e lombadas de fundo preto, os volumes da Xis distinguiam-se facilmente entre as várias colecções da época, o que terá sido, a par da qualidade dos desenhos de Muge e de outros artistas, um dos seus trunfos.
Competindo directamente com a Vampiro na divulgação de obras de autores que ambas as colecções publicavam, como Agatha Christie, John Dickson Carr, Ellery Queen, Dorothy L. Sayers, Frank Gruber ou Rex Stout, a Xis também procurou explorar filões que esta descurara, apostando em escritores como o escocês W. Murdoch Duncan, criador do inspector D. Reamer (leia-se dreamer, ou seja, sonhador), ou americanos como Patrick Quentin (pseudónimo de Hugh Callingham Wheeler e Richard Wilson Webb), Harold Q. Masur ou Margaret Millar, uma notável autora de thrillers psicológicos, que foi casada com Ross Macdonald, considerado o principal herdeiro de Hammett e Chandler. A Xis publicou ainda oito livros de Cornell Woolrich, além de um volume que compila contos deste autor (assinados William Irish) e de Georges Simenon. Mestre da novela e do conto de suspense, e brilhante na criação de atmosferas sufocantes e negras, Woolrich foi um autor fundamental para vários cineastas, incluindo o francês François Truffaut, cujos filmes A Noiva Estava de Luto e A Sereia do Mississipi são inspirados em obras suas.
A divulgação de autores do policial negro americano, que, com raras excepções, como Mickey Spillane, a Vampiro não publicava, foi talvez o principal traço distintivo da Xis. Mas, ao contrário de colecções posteriores, como as já referidas Enigma e Rififi, muito centradas na pulp fiction americana, nunca abandonou o policial dedutivo de tradição inglesa. O autor mais publicado na colecção foi, de longe, Ellery Queen, com 22 títulos. No entanto, apesar de se tratar de um autor de referência do policial dedutivo – tinha o hábito de, antes de revelar o assassino, desafiar o leitor a identificá-lo com base nas pistas que lhe fora oferecendo ao longo do livro –, algumas das suas obras publicadas na Xis seriam mais facilmente catalogáveis do lado do policial negro, já que pertecem ao período em que Ellery Queen deixou de ser o pseudónimo exclusivo de Manfred Bennington Lee e Frederic Dannay para se tornar numa espécie de marca registada que ocultava autores muito diversos, como Richard Deming ou Flora Fletcher.
Este equilíbrio entre os dois géneros era claramente deliberado, como se confirma numa curiosa nota editorial inserida no 17.º volume da colecção, no qual a Xis publicava pela primeira vez um romance de Patrick Quentin. “Circulam entre os leitores dos livros de feição policial duas importantes correntes de opinião. Uns preferem as obras de dedução (...), outros apenas aceitam os romances de acção, em que os lances se sucedem rapidamente, de maneira imprevista e empolgante”, dizia a nota, que prosseguia com este esclarecimento: “A colecção Xis tem envidado os seus esforços no sentido de apresentar ao público livros dos dois géneros, alternando-os na medida do possível.” Para lá da confirmação desta política editorial, o que é sugestivo é que a Xis se tenha sentido obrigada a publicar esta justificação num livro de Quentin, Rosas de Sangue, que a mesma nota cataloga como livro de acção. No início dos anos 50, o modelo do policial era ainda, em Portugal, o whodunit de tradição inglesa, e a publicação de autores americanos mais “duros” podia ainda ser vista como uma cedência de gosto duvidoso. O próprio género policial, em geral, requeria ainda legitimação, e não é por acaso que, nas primeiras das oito antologias de contos policiais que a Xis publicou, surgiam escritores consagrados, como Somerset Maugham, John Steinbeck, Aldous Huxley ou Guillaume Apollinaire, que nenhum leitor identificaria como autor policial.
Foi justamente com uma destas antologias – o n.º 210 da colecção – que a Xis se despediu, em 1993, deixando a Vampiro como única sobrevivente dos gloriosos tempo das colecções de bolso. Mas também esta, embora continue a publicar-se, já pouco tem a ver com a colecção dos anos 50. Desde logo porque resolveu aumentar o formato, uma decisão francamente infeliz, e porque praticamente se limita agora a editar autores cujos direitos já estão no domínio público, sem fazer qualquer esforço para acompanhar a evolução do género.