O 11 de Setembro de Alcafache foi há 25 anos

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Este foi um dos piores acidentes ferroviários do país DR

Esperar. Não havia nada a fazer. Apenas esperar e talvez rezar por um milagre que não aconteceu. Na pequena estação de província, em plena linha da Beira Alta, os quatro ferroviários "nem tinham voz para falar". Uma espera ansiosa, um silêncio terrível. E uns minutos depois uma coluna de fumo que se ergue para as bandas de Alcafache. Os comboios tinham batido.

Adão Oliveira Costa era carregador na estação de Nelas e recorda bem esse fim de tarde quente de Setembro de 1985. Estava na gare a arrumar volumes, num tempo em que os comboios transportavam mercadorias a retalho, que recolhiam e deixavam nas estações. A chegada do comboio 315 era pura rotina. O Internacional, que ligava o Porto a Paris, era uma espécie de desdobramento do Sud Expresso, que a CP realizava para responder à forte procura durante o Verão. Eram outros tempos, em que os emigrantes viajavam de comboio. E com eles muitos turistas, sobretudo jovens de Inter-Rail.

O comboio chegou a Nelas e partiu. Tudo normal para o carregador Adão, que não tinha quaisquer responsabilidades na circulação do tráfego. Isso era tarefa do chefe da estação, que acabara de dar a partida ao Internacional. A composição tinha muitas carruagens, ao ponto de a locomotiva ficar lá muito à frente, já quase fora da gare.

Só quando vê o chefe sair, "muito pálido", do seu gabinete, é que o carregador se dá conta que alguma coisa estava mal. "Vem aí o outro comboio", murmura o homem, quase sem fala. Apercebera-se disso quando ligara para a estação seguinte, Alcafache, a "dar horas", isto é, a comunicar que tinha expedido o comboio e o colega lhe respondera que também ele já lhe tinha enviado o regional.

"Nós sabíamos que se um comboio tinha saído de um lado e o outro do outro, alguma coisa tinha de acontecer", conta Adão Oliveira Costa.

Naquele tempo a exploração ferroviária dependia integralmente de meios humanos e não havia forma de comunicar com os maquinistas. O chefe de Nelas ainda telefonou para a única passagem de nível que havia entre a sua estação e Alcafache para que esta fizesse sinal ao comboio para parar, mas já era tarde. O acidente ocorreu em poucos minutos, às 18h37, sem estrondo que se ouvisse. Apenas uma densa coluna de fumo que se avistava ao longe.

O normal seria que o Internacional (311) fosse cruzar em Mangualde com o regional (10320) que vinha em sentido contrário. Mas como o 311 vinha atrasado, este deveria ter esperado em Nelas pelo 10320. Que acontecera, então?

Uma sucessão de erros grosseiros. Uma falha de Coimbra, onde estava instalado o posto de comando que geria a linha da Beira Alta, que se esquecera de avisar o chefe de Nelas da alteração do cruzamento de Mangualde para a sua estação. E uma falha dos dois ferroviários de Nelas e Alcafache, que, na sua rotina, não cumpriram a pesada regulamentação que os obriga a pedir avanço para os comboios.

"Os registos estavam bem feitos", contou ao P2 um dos elementos da comissão de inquérito ao acidente, que pediu para não ser identificado. Cada um pedira autorização ao outro para expedir o comboio e registara-o em conformidade. Só quando foram colocados frente a frente é que reconheceram: "Nós enganámo-nos um ao outro."

João Marques, bombeiro de Canas de Senhorim, tinha 36 anos e estava nesse fim de tarde a apagar um incêndio florestal a seis quilómetros de Alcafache. Também pura rotina, numa região em que nos dias de calor os fogos se multiplicam pelo mato. Por isso, o mais natural era que a coluna de fumo lá para os lados da via férrea fosse mais um incêndio igual aos outros.

O grupo de bombeiros acabou o que estava a fazer e só depois é que seguiu para o local. "Naquele tempo as comunicações rádio não tinham a mesma fiabilidade, havia muitas interferências e ouvia-se mal", conta João Marques, hoje comandante daquela corporação.

"Só o homem que estava na viatura junto ao rádio é que começou a perceber melhor o que estava a acontecer e gritou-nos: "Vamos despachar isto, que há um comboio a arder perto de Alcafache."" E partiram. "Eu não me passava pela cabeça o que iria encontrar. Só imaginava que era um comboio de mercadorias. Mas tivemos logo uma "vacina" que nos preparou para o resto - o cadáver de uma senhora, queimada." E mais à frente os dois comboios - de passageiros - a arder.

Os homens ficaram com a tarefa de extinguir o incêndio florestal que tinha deflagrado em ambos os lados da linha e só meia hora depois é que se aproximaram das carruagens. "Nessa altura já tinham saído muitas ambulâncias e a fase do pânico e dos gritos já tinha passado. Mas vi pelas caras dos meus colegas que aquilo era uma situação aterradora, tinham um ar estupefacto e alguns choravam..."

João Marques já viu muita coisa em dezenas de anos de bombeiro, mas estas recordações... Faz uma pausa, baixa a cabeça e quando a levanta tem os olhos húmidos e a voz treme-lhe. Para este bombeiro o 11 de Setembro já há muito era uma data marcante, muito antes de este dia ser conhecido pelo atentado nas torres gémeas.

Nas horas seguintes ao acidente tratou-se de evacuar os feridos para Mangualde, Nelas, Viseu. "Até que o nosso comandante, Américo Borges, nos disse que já estava tudo feito pelos vivos." A tarefa seguinte era remover os destroços.

O comandante estava nesse dia na central de comunicações dos bombeiros de Canas. O médico Américo Borges passava sempre por ali, quando saía do consultório, para se inteirar dos incêndios florestais do momento. Foi então que ouviu um alerta enviado por uma ambulância de Aguiar da Beira que, por acaso, passara no local no momento do choque: "Enviem muitas ambulâncias para a estrada Nelas-Mangualde!" Um pedido insistente, repetido, sem dar hipóteses de diálogo, pois na rádio só podia falar um de cada vez. "Pensei num acidente com autocarro. Nunca me lembrei que poderia ser um comboio", conta Américo Borges. Até que a mesma ambulância faz novo pedido: "Enviem autotanques que as carruagens estão a arder."

O comandante percebeu então que era um acidente ferroviário e partiu para o local para coordenar o socorro. Sem farda, sem botas, calçado com uns sapatos de corda. "Vi corpos completamente carbonizados, as carruagens a arder, as locomotivas descarriladas", conta. Curiosamente, a primeira carruagem do Internacional não ardeu, apesar de as três seguintes terem ficado calcinadas. Na primeira, uma carruagem-couchete onde as pessoas viajavam deitadas, Américo Borges só contou quatro dos 10 compartimentos. Os restantes tinham ficado completamente espalmados.

Foi nesta carruagem que se procedeu ao salvamento de uma senhora que tinha ficado encarcerada. "Com o embate, o corpo ficou protegido pelo colchão. Os outros ocupantes do compartimento morreram, mas esta senhora conseguimos tirá-la pela janela. Que coragem! Dizia-nos: "Tenham calma, tirem-me quando puderem.""

O operacional conta que algumas carruagens não arderam logo e que houve pessoas que morreram queimadas porque voltaram para dentro para recuperar os seus haveres, tendo sido apanhadas pelo deflagrar das chamas. E fala na solidariedade dos bombeiros, que chegaram a ser várias centenas no local, pois acorreram inúmeras corporações. "Dois dias antes tinham morrido em Armamar 14 bombeiros e eu acho que isso criou um reforço ainda maior ao lema Vida por Vida que explicou actos de heroicidade que ali foram cometidos", diz. "A GNR portou-se exemplarmente, porque abriu rapidamente um caminho de evacuação para os feridos. Naquela altura o IP5 estava construído, mas não tinha sido aberto ao tráfego e foi por lá que se chegou mais rapidamente ao hospital de Viseu."

O número indeterminado de mortos deste acidente tem contribuído para o tornar mais lendário. Américo Borges diz que ele próprio contou 58 corpos, embora estime as vítimas mortais à volta de uma centena. E explica, com uma fria precisão científica, o desaparecimento dos outros: "Com a carbonização dos corpos e a quantidade de água que foi introduzida nas carruagens, as cinzas ficaram solubilizadas." Isto é, desapareceram, varridas pela água. De resto, a temperatura do incêndio ultrapassou os mil graus.

Já o inquérito da CP refere 49 mortos, sendo esse o número oficial divulgado pela transportadora, que ainda não tornou público o relatório do acidente. A mesma fonte da comissão de inquérito não enjeita que tenha havido mais, mas explica que foi esse o número apurado pelos serviços jurídicos da empresa e com o qual se trabalhou nos tribunais.

Há 25 anos, as técnicas forenses não estavam tão desenvolvidas, houve cadáveres não reclamados e estão enterradas no cemitério de Mangualde urnas com pedaços de corpos que foram retirados dos destroços.

Dentro do comboio

Duarte Correia embarcara no comboio em Nelas e iniciava ali uma viagem de 30 horas até à Alemanha, onde trabalhava. Esperava-o uma noite e um dia de viagem até Paris e mais uma noite de comboio até Dortmund. Mas mal teve tempo de se sentar na carruagem de 2ª classe, porque minutos depois sentiu um "estrondo, um vulcão". "A carruagem parece que saltou para o ar e depois caiu e começou a arder."

A viagem deste emigrante terminara ali, subitamente, entre gritos e pedidos de socorro. "Como o corredor da carruagem ficou para baixo e o compartimento para cima, eu consegui sair pela janela e ajudei um casal que estava comigo lá dentro. Depois ainda entrei num corredor e vinha um homem a fugir todo queimado. Fui a mais carruagens, mas já não consegui salvar mais ninguém."

O homem que viu a arder na carruagem chama-se Carlos Ramos e sobreviveu ao acidente após muito sofrimento, que incluiu internamento durante três anos e 31 operações cirúrgicas. Ia sair do país pela primeira vez, com um contrato de trabalho para a Suíça, onde hoje vive e de onde falou ao P2 pelo telefone. Apanhara o comboio em Santa Comba Dão e também a sua viagem durou pouco. O Internacional só deveria voltar a parar em Nelas, mas poucos sabem que fez uma paragem não oficial em Carregal do Sal, uns escassos segundos, os suficientes para a mulher do ajudante de maquinista lhe estender um embrulho com a refeição dessa noite, que ele não comeu, porque nenhuma das tripulações das locomotivas sobreviveu ao embate.

Carlos Ramos viajava também sentado na 2ª classe e no momento do embate vinha à janela a conversar com uma senhora que ia para Madrid. "Andei aos trambolhões dentro da carruagem e quando aquilo parou eu estava bem e saí. Mas ouvi gritos lá dentro e voltei a entrar. Ainda tirei uma senhora e uma moça e voltei para tirar uma criança de cinco ou seis anos. Senti que estava a queimar-me todo, que também lá iria ficar e... tive que sair e a menina ficou por lá..." A voz embarga-se e murmura: "Que Deus me perdoe."

Ferido em estado grave, acabaria por ser evacuado do hospital de Viseu no dia seguinte, à boleia do helicóptero do Presidente da República, que ali fora visitar as vítimas. "O general Ramalho Eanes salvou-me a vida", conta.

Os dois passageiros - Duarte Correia e Carlos Ramos - vão estar hoje numa cerimónia que assinala a efeméride, junto ao monumento erguido no local do acidente, e na qual irão participar outros sobreviventes, familiares, autarcas, deputados da Assembleia da República e, sobretudo, muitos bombeiros que ficaram marcados por aquele dia.

"Isto é uma coisa que não se esquece, que a gente via na televisão e pensa que é lá longe. Se fosse hoje, havia lá psicólogos e tudo, mas há 25 anos..."

Diogo Lopes, o adjunto do comando dos Bombeiros de Mangualde, tinha na altura 38 anos e preparava-se para, findo o dia de trabalho às 19h, partir para os incêndios das matas. "Tocou o alarme e disseram-nos que era um acidente na linha em Alcafache. Pensámos que era na passagem de nível e mentalizei-me que iria ver alguém aos bocados. Quando nos aproximámos, vi o fogo e pensei que era mais um incêndio florestal. Mas não, era um comboio a arder!"

Diogo Lopes conduzia a primeira ambulância de Mangualde a ocorrer ao sinistro, mas nem chegou lá perto, porque havia pessoas que tinham feito chegar os feridos à estrada. "Levei logo uma senhora que tinha um buraco enorme no corpo devido à queimadura e que só gritava para que lhe encontrassem o seu netinho..."

Ao chegar ao hospital de Mangualde, nem parou, tal era a confusão que ali havia e seguiu directamente para Viseu, onde ainda voltou mais duas vezes nessa noite para transportar feridos.

"À terceira ainda dei sangue. Deram-me uma sandes e foi com essa sandes que andei alimentado durante dois dias. Até que num momento encostei-me um bocado para descansar e acordei numa maca. Tinha estado à beira da exaustão."

Durante dois dias os bombeiros removeram destroços, deparando-se a todo o momento com pedaços de corpos. De vez em quando havia reacendimentos devido ao calor e ao combustível derramado. Um cenário dantesco. Um cheiro a corpos queimados que fez com que, durante dois anos, Diogo Lopes fosse incapaz de comer carne assada às refeições.

Quando refere o apoio psicológico tão em moda hoje nos acidentes, não desdenha. Diz que é importante, que muitos bombeiros tiveram dificuldades no sono, que não é fácil esquecer os braços e pernas espalhados pelas carruagens, as pessoas que se viam a arder através dos vidros, os corpos pendurados nas janelas.

Houve heróis, diz. Um passageiro que ajudou a tirar seis pessoas e regressou a uma carruagem em chamas para retirar uma criança e já de lá não saiu. E reconhece, tal como Américo Borges, que teve o seu 11 de Setembro muito antes de 2001.

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