O rosto impassível de Hedda Gabler fixa-nos quando o pano sobe. Está sentada no sofá, único elemento em destaque numa sala vazia, sem se perceber se a casa está por arrumar ou se é já o fim de tudo. E o corpo dela ali, sem dizer uma palavra, a olhar-nos. "Mas a minha cabeça não pára", diz Maria João Luís, actriz, 46 anos, de regresso ao teatro para interpretar essa mulher-mistério chamada Hedda Gabler, não a de Henrik Ibsen, monstro no feminino, mas, simplesmente, Hedda, fixada por José Maria Vieira Mendes e encenada por Jorge Silva Melo.
Hedda Maria João Luís Gabler, a mão afastada do corpo, um vestido preto de uma elegância a toda a prova, um par de armas junto aos pés. No fim, tal como em Ibsen, é o tiro disparado que a vai salvar, que lhe vai permitir encontrar a liberdade que defendia de todos durante a peça, agarrada a ideias que a afastam de uma realidade que é aquela onde vivem as outras personagens. O marido, apaixonado, e aqui seu cúmplice mais do que em Ibsen, o amante, que deixou por ser fraco, ou forte demais, esse amor, o juiz, esse ser repugnante e viscoso a quem ela podia, se quisesse, arrancar os olhos, a outra rapariga, essa rapariga que não percebe que as histórias que conta não interessam, e a tia, preocupada com qualquer coisa que também não lhe interessa.
O perfil das trágicas
Há anos que Jorge Silva Melo desejava que este encontro se desse. Tinha guardado para esta actriz rara, que se tem dividido entre o teatro, esparso, e a televisão, a memória de uma outra actriz, o mito italiano Piera degli Esposti, que fez "Stabat Matter", de Antonio Tarantino, que Silva Melo encenou e que em 2007 deu a Maria João Luís o prémio da crítica da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro.
"Há muito poucas actrizes da idade dela que tenham esta independência de espírito, esta técnica, esta pose. A Maria João tem este lado desmedido, característico das grandes divas, em que se atira para a frente, e que se adapta muito bem a um repertório do fim do século dezanove e princípio do século vinte".
Maria João Luís tem, para Silva Melo, o perfil das grandes trágicas Ibsenianas e Strindbergianas. "Não há muitas", diz de uma actriz que vestiu como se fosse a Grace Kelly, num "desespero romântico absoluto", e que "deixou de ser a filha do general para ser a mulher de alguém, e isso ela não suporta".
O fio narrativo de Ibsen continua lá, sem a "ganga" e "as portas" de Ibsen. Mas a mulher é a mesma, agora quase "pós-moderna", a ver-se e a pensar ao mesmo tempo que age.
Para a actriz, este é um presente envenenado.
"Todos os textos que têm esta carga de clássicos foram sempre textos que achei que não eram para mim. Assustam-me porque há uma responsabilidade que aparece primeiro que o gozo que as coisas me deveriam dar. E sinto que preciso fazer coisas adequadas ao que sou, à minha personalidade", diz Maria João. "As pessoas acham que sou muito intuitiva, mas não sou nada, sou muito cerebral, muito estratega. Tudo o que faço é muito pensado".
"A Maria João é uma Hedda Gabler que já viu a Hedda Gabler. Não há um grama de nostalgia nela. Consegue-se falar com ela, pessoal e profissionalmente, sem nostalgia", diz Silva Melo. A mesma força que imprimiu à mulher que buscava o filho e, não o encontrando, culpava o mundo antes de se culpar a ela própria. "Tenho uma cabeça que não é fraca, entendo como isto se faz, sei perceber como se lê uma cena. Isso não quer dizer que o caminho me esteja facilitado. Às vezes falha-se e quando se falha, aprende-se. Mas há um gozo na viagem, nesta aventura de representar que é linda, e me dá imenso prazer", diz.
"Sou o mensageiro entre a Maria João e o Zé Maria", assume Silva Melo, a quem nunca interessou encenar o texto de Ibsen: "Muito do que o Ibsen escreveu felizmente já morreu. Estamos hoje muito longe dos combates sociais do feminismo que estavam na peça original e que dominaram a leitura desta peça até aos anos 60. Não sei se na sociedade já estamos tão longe, mas no teatro, pelo menos, estamos. Temos que agradecer ao Ibsen ter estado lá e tê-lo testemunhado".
"Hedda Gabler", escrita em 1890, pode ser visto como um retrato impiedoso de uma mulher que recusa as prisões do casamento, da vida conjugal, da obrigação dos filhos e da conveniência social. "Ninguém sabe porque é que a Hedda comove quem quer que seja", observa Silva Melo, que viu Maggie Smith em 1970 no National Theatre, em Londres, numa encenação de Ingmar Bergman. "Ela levava aquilo para a alta-comédia. Mesmo que o Bergman e a Maggie Smith digam que não gostaram do resultado, eu defendo-o". É essa capacidade de ir para além do que é pedido que encontra em Maria João Luís. "Conseguimos dizer que esta mulher é calculista, fria, que despreza a tia do marido, leva o amante à morte, mas... e fazer isto? Isto tem um grau de dificuldade terrível e o texto do Zé Maria ainda o provoca mais", diz a actriz.
A famosa frase da peça: "As pessoas dizem isso mas não o fazem", último lamento escrito por Ibsen, é o que parece dar a Maria João Luís a força para, precisamente, o fazer. "O gozo do actor é o acto de liberdade de fazer. É uma liberdade que se tem de se poder experimentar. A primeira a gozar sou eu, tenho que ser eu. A minha grande luta é por fazer as coisas como acho que deveriam ser feitas. Todas estas nuances, estas coisas que são subtis, as que não são, as que são claras e as que devem ser mostradas devagarinho ao público. É um trabalho fácil de dizer mas difícil de fazer".
À beira do abismo
"Fui descobrido a Hedda com o tempo", continua uma actriz de quem nos habituámos a ver interpretações que, nitidamente, escapam ao controlo de quem as escreve. Isso é notório nas personagens que interpreta, por exemplo, na televisão, de quem diz ser viciada. "Gosto daquela adrenalina, daquela loucura. Gosto de pensar que faço a diferença com as minhas personagens. Eu sou um animal disto, sou um bicho. Tenho esta capacidade de desenhar com rapidez a personagem. Vampirizo imenso à minha volta e o que faço, o modo como o faço, procuro disfrutar o mais possível de um avanço sem medo das consequências e dos estragos. Gosto de andar para a frente e sofrer. Gosto de ter a consciência, sobretudo a consciência do que quero e não consigo".
Hedda, na versão de José Maria Vieira Mendes, é, segundo a actriz "uma mulher que vive na beira do abismo". Essa ideia de vertigem foi uma das preocupações do encenador: "Vivemos numa inquietação que não sabemos bem o que é. É uma mulher de extrema inteligência, de uma grande frieza, que está a fazer uma grande viagem de comboio e que passa por várias estações, várias paragens".
Maria João Luís, "franca, muito franca", acha que a peça vai ao encontro daquilo que defende para a sua vida, a sua maneira de estar e de ser como artista. "As personagens têm que existir. Eu não sei se é um método. Acho que é como as pessoas que penduram fatos uma vida inteira e ficam com uma deformação no polegar. Eu tenho esta deformação, profissional provavelmente, que me faz sentir que ou as coisas me são próximas ou não consigo".
Recorda o quanto lhe foi difícil interpretar Brecht, "um autor extremamente complicado de gerir". Experimentou-o com Luís Miguel Cintra, no Teatro da Cornucópia, em "Um Homem é um Homem". "Aquela coisa da distanciação é-me difícil. É um trabalho muito generoso e árduo da parte dos actores. A Helena Weill [mulher do Brecht] fazia muito bem. Preciso de liberdade. Aquilo que sei fazer bem é a arquitectura da personagem, isso faço rapidamente. E sou a primeira e última responsável pelo que faço. O trabalho do Jorge Silva Melo nesta peça foi o de me levar, com muito poucas indicações, até lá. Ele adivinha os problemas dos actores, sabe apontar as nossas dificuldades, às vezes até antes de nós".
Hedda, esta mulher que parece controlar todas as outras personagens, fazendo - ou fingindo - que estão todas no interior da sua cabeça, não é, para Maria João Luís, alguém que se preocupe em saber se as pessoas estão ou não à sua altura. "Para ela, tudo o que a trave, tudo o que a impeça ou seja indicador de pressão, ela não aguenta, não suporta e despreza". Não são tanto as personagens, em concreto, percebe-se do discurso da actriz, serão mais as situações abstractas.
Hedda e Maria João Luís, fundidas num corpo que traz o tempo e a experiência como mais-valias, são uma e a mesma coisa. "Com a idade exijo que as coisas sejam claras, porque é assim que deve ser. O corpo é só um, o canal é este, isto tem que me implicar. Um actor que diz que se cansa deve sofrer imenso. Eu descanso quando trabalho. Posso estar duas horas em cena, mas quando saio estou fresca que nem uma alface". Hedda, quando se suicida, encontra a liberdade de que falava e que os outros acreditavam que era só uma coisa que se dizia. Maria João Luís quando diz que faz, fá-lo. E é isso que os seus olhos nos dizem logo no início da peça. Aquele corpo naquele sofá não está à espera que lhe perguntemos o que se passa, Chegou antes de nós. Ficará depois de nós.