A longa viagem de Calantha, a tartaruga que atravessou o Atlântico depois de 30 anos em cativeiro
Viveu boa parte da vida num aquário. Até que lhe ensinaram o que precisava de saber para voltar ao oceano. Quase um ano depois chegou às Caraíbas. As tartarugas tendem a dirigir-se para as praias onde nasceram. Mas ninguém sabe dizer se a viagem de Calantha já terminou
a Será que se dirige para um local específico? É isso que parece, quando se olha para o percurso quase em linha recta que fez ao longo de 332 dias. Calantha é uma tartaruga que esteve mais de 30 anos longe do mar, num tanque do Aquário Vasco da Gama, em Lisboa. Desde que foi devolvida ao oceano, no ano passado, nadou 10.640 quilómetros e conseguiu atravessar o Atlântico, numa das maiores migrações conhecidas.
Fêmea da espécie tartaruga-comum (Caretta caretta), chegou a 30 de Agosto às praias das ilhas britânicas Turcas e Caios, nas Caraíbas. Nos últimos dias, tem vindo a contornar as ilhas, que têm uma extensão de cem quilómetros. A 1 de Setembro, "começou a afastar-se", contou ao P2 Élio Vicente, biólogo marinho e director de Ciência e Educação do Zoomarine. Mas entretanto voltou a aproximar-se. E mantém-se numa zona que serve de alimentação, reprodução e postura para muitas tartarugas de espécies diferentes.
Graças aos dados de satélite disponibilizados por um transmissor colocado com uma resina especial na sua carapaça o percurso da tartaruga tem sido seguido atentamente. Para ajudar a saber o que lhe está a acontecer foram também colocados um microchip e duas anilhas nas barbatanas peitorais.
Enquanto não se acabar a bateria do transmissor (que tem uma duração de 18 meses e já vai para o 13.º mês de funcionamento) e o orçamento para pagar o serviço de satélite, que custa entre 600 e 800 euros por mês, vamos continuar a segui-la. "Sabemos que está saudável, que foi capaz de se defender [durante a travessia do oceano] e que soube reencontrar o seu rumo. Não se perdeu no meio do mar", diz Élio Vicente.
Preparar esta viagem - que tem tanto de "extraordinário como de inspirador", nas palavras dos biólogos - exigiu treino. Calantha chegou ao Porto d"Abrigo, Centro de Reabilitação de Espécies Marinhas do Zoomarine, em Albufeira, a 13 de Outubro de 2005. O Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) entendeu que a tartaruga deveria ter a oportunidade de voltar ao mar, depois de tantos anos no Aquário Vasco da Gama.
Foi nesse centro que passou cerca de cinco anos a aprender o que esquecera nos mais de 30 que vivera numa piscina pequena, rodeada de pessoas todos os dias. Pesava então 115 quilos. "Primeiro ensinámos-lhes que os humanos não são amigos", diz o biólogo marinho. Depois, reaprendeu a capturar o seu alimento, especialmente caranguejos e peixes. "Como tinha perdido as técnicas de captura de presas, ensinámos-lhe a identificar o alimento e a ir buscá-lo." Por fim, "foi essencial pô-la a nadar e a mergulhar o mais possível, para exercitar a sua musculatura".
A 30 de Setembro de 2009, o Zoomarine, o ICNB e a Marinha Portuguesa devolveram-na ao mar. Pesava 128,5 quilos. "Não sabíamos para onde iria, até porque esta é a primeira vez que uma tartaruga que viveu tanto tempo em cativeiro voltou ao mar", diz Élio Vicente. Ainda assim, "esta é uma das maiores migrações [de tartarugas] de que temos conhecimento".
Chegou ao fim?
Para Élio Vicente, seria um prémio que a "nossa Calantha fosse vista numa praia a fazer um ninho". Afinal, esta tartaruga está em plena fase reprodutiva. Não se sabe ao certo a sua idade, mas, segundo os primeiros registos no Aquário Vasco da Gama, datando de 1974, terá pelo menos 40 anos - a longevidade média das tartarugas é de 60 a 70 anos.
O biólogo garante que não se coloca a questão de ser, ou não, rejeitada pelas outras tartarugas. "Durante a maior parte do ano, à excepção da altura da reprodução, as tartarugas não interagem, não há laços sociais. Apenas partilham o espaço."
A questão em aberto é se a viagem de Calantha chegou ao fim, ou se esta é apenas uma etapa, para repor as energias gastas durante a longa jornada. "Ela pode ainda seguir para o mar das Caraíbas, para as Baamas, Brasil ou golfo do México." Ninguém sabe o que Calantha vai fazer e é isso o que torna "esta aventura tão aliciante" - "Pode passar vários dias ao redor das ilhas, pode passar lá o resto da vida ou partir para outros destinos. Ela pode fazer tudo."
A espécie Caretta caretta tem uma vasta distribuição em todos os oceanos, mas, no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, está classificada como estando "em perigo", especialmente por causa das ameaças às praias de nidificação, a captura de ovos e a urbanização intensiva. Nas águas portuguesas ocorrem maioritariamente juvenis e o maior risco que correm é a captura acidental por artes de pesca.
Johnny vai ter que esperar
Mas nem todas as tartarugas marinhas tiveram a mesma "sorte" desta viajante. Johnny, que também está no Zoomarine, é uma delas. É uma tartaruga-de-kemp (Lepidochelys kempii), a mais ameaçada de extinção das sete espécies de tartarugas marinhas que existem. Não pode regressar a casa por causa da maré negra no golfo do México, ainda que, numa população ameaçada, um único indivíduo possa fazer a diferença no aumento da população.
Johnny deu à costa da Holanda a 21 de Novembro de 2008. Foi, então, levado para o Zoo de Roterdão onde chegou com pouco mais de dois quilos. No Verão de 2009, foi transferido para o Zoomarine por causa das águas mais quentes e pela experiência da instituição neste tipo de acções.
Hoje, está bem de saúde, com 17,3 quilos e pronto para ser libertado. Mas, explicou Élio Vicente, "a devolução não podia ser feita nas nossas águas por a espécie não ter aqui a sua distribuição natural". Estima-se que 95 por cento dos animais desta espécie nasçam numa única praia do golfo do México.
"Como as tartarugas tendem a dirigir-se para as praias onde nasceram, e existem fortíssimas probabilidades de Johnny ter nascido no golfo do México, não o poderemos libertar enquanto aquele ecossistema estiver contaminado." A contaminação ocorreu com a explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, a 20 de Abril, acrescentou Élio Vicente. "A devolução tem vindo a ser adiada sine die."
Como o espaço no Zoomarine é limitado e a prioridade é dada aos animais doentes, a instituição já pediu às autoridades portuguesas e norte-americanas para ajudarem no processo de devolução de Johnny. "A Força Aérea portuguesa já se disponibilizou para o levar de Faro aos Açores. E esta semana entrámos em contacto com o NOAA [National Oceanic and Atmospheric Administration] para que trate do transporte para um centro nos Estados Unidos que o receba e que o mantenha até ser seguro libertá-lo."
Para já, Johnny continuará longe de casa.