Na rocinha com o poeta

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Quase tudo na favela parece funcionar 24 horas por dia Noah Addis/Corbis

De manhã, Joilson Pinheiro é garçom num hotel em Ipanema. À tarde é o professor dos Pequenos Poetas da Rocinha. Nos intervalos ainda arranja tempo para escrever e publicar livros na comunidade onde vive: a maior favela do Rio de Janeiro. Por Isabel Coutinho, no Rio de Janeiro

Quando o traficante Marcinho VP foi assassinado, em 2003, numa das prisões do Rio de Janeiro, o seu corpo foi encontrado com um papel onde se lia: "Bandido não lê, seu babaca." Aquele que ficou conhecido quando o realizador Spike Lee teve que lhe pedir autorização para gravar o videoclip de Michael Jackson no morro Dona Marta, onde ele controlava o tráfico de droga, cumpria 25 anos de prisão. Morreu por querer deixar o crime e escrever um livro.

Aquele "Bandido não lê, seu babaca" ecoava na minha cabeça quando subi o morro da Rocinha acompanhada por Joilson Pinheiro, um dos moradores da comunidade que ali desenvolve o projecto Pequenos Poetas. Foi uma semana antes do sábado de tiroteio intenso, em São Conrado, quando traficantes da Rocinha invadiram o Hotel Intercontinental e sequestraram funcionários e hóspedes.

Estava um dia de sol quando partimos de Ipanema, numa das vans que atravessam a cidade, desde a parte chique da Zona Sul (Ipanema, Leblon, Gávea e São Conrado) até à maior das 625 comunidades cariocas (481 favelas e 144 complexos, segundo dados do projecto Morar Carioca divulgados em Julho), com mais de 150 mil moradores, onde ainda não foi instalada a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) que tenta acabar com a violência, o tráfico de drogas e o crime organizado. "Você sabe que na comunidade podemos encontrar homens armados...", alerta Joilson entre os solavancos. "Sei. Mas também sei que com você estou segura."

É a primeira vez que aborda o tema nas nossas conversas que começaram por causa de José Saramago. "Todo o ano, nas festas de final de ano, a gente escolhe qual o presente que quer ganhar de um colega do trabalho. Eu sempre peço um livro do José Saramago!", contou o baiano de olhos claros num desses dias em que servia o "café da manhã" no hotel de Ipanema. "No final de 2008 pedi A Viagem do Elefante, ambientado no século XVI. Estava lendo e parei na página 45. Dei-me conta que podia também fazer a mesma coisa. E disse: "Puxa! Eu também vou escrever velho, vou escrever em outro tempo e na história do Brasil.""

Esta poderia ser a história de um garçom igual a tantos outros, mas não é. Numa das visitas que o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil fez à comunidade, apresentou-lhe Jorge Mautner, que incentivou o poeta da Rocinha a publicar os seus escritos. Ele assim fez. Saíram O Veludo e o Espinho (2005) e É Poesia? (2008). Até que este ano resolveu deixar de escrever "sobre essas coisas do quotidiano" e partiu para a escrita de Canavial, um livro de época, "a história de um escravo que é fisgado por uma sinhá". Escreveu-o em 75 dias. "Não tive mais tempo para acabar a leitura de A Viagem do Elefante, mas li neste ano Caim, é óptimo o jeito da escrita. Não falo das polémicas, só do escritor", afirmava ao levantar os pratos da mesa.

O poeta nasceu no Recôncavo da Baía, em 1966. Viveu em Salvador até ao dia em que partiu para o Rio de Janeiro e vive na Rocinha há dez anos. A história dele é comum à de milhões de brasileiros que partem do Nordeste para a grande cidade em busca de uma vida melhor. Todos os dias acorda de madrugada, desce o morro e entra ao serviço. Nessas idas e vindas lembrou-se de uma história que a sua avó lhe vinha contando. De uma mulher branca que escandaliza a sociedade da época (1880) ao apaixonar-se pelo empregado negro, casando com ele e tendo filhos. "Como eu não podia contar uma história verídica num romance, tive a ideia de escrever sobre uma pessoa que de pequenininha se apaixonou por um escravo. Assim começa a saga Elizabeth Miller, a personagem de Canavial...", explica.

O romance foi publicado, numa edição de autor, com recurso ao microcrédito que há anos está instalado na Rocinha. "O microcrédito me emprestou R$ 2000,00 [900 euros], comecei pegando apenas R$ 800,00 [350 euros], na medida que fui pagando o que recebia das vendagens do livro fui fazendo novos empréstimos."

E a sabiá não cantou

À saída do túnel de São Conrado já se vê a Passarela da Rocinha. Tem 60 metros de comprimento e a assinatura do arquitecto Oscar Niemeyer. Uma das rampas liga a Rocinha ao novo Complexo Desportivo (onde há uma pista para se praticarem desportos radicais) e as outras duas dão para a auto-estrada Lagoa-Barra. Inaugurada em Junho, faz parte da primeira fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que além destas obras tem feito trabalho social na comunidade. O seu lema é a "Rocinha vai Mudar".

Deixamos para trás a Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha, a escola Ayrton Senna, o mercado popular e o Clube Emoções, que foi o primeiro ponto cultural da Rocinha. "É uma alusão à música Emoções de Roberto Carlos", explica Joilson já a subir as escadas para o Canteiro Social, onde os moradores se reúnem para saber o que se passa na comunidade, trocarem ideias e decidirem como conduzir as questões mais importantes (desde o "remanejamento" das famílias ao censo, passando pelas campanhas de vacinação e pelas obras).

Numa esquina, um monte de lixo. Ao cimo de um beco, um bazar onde quinquilharias parecem cair das alturas penduradas na janela do barraco. As casas parecem estar todas encostadas umas às outras, num equilíbrio periclitante. Fios de electricidade à vista e emaranhados. A olhar para a estrada, um grupo de mulheres conversa à varanda do Canteiro Social. Fazem a festa quando vêem "O Poeta" (é assim que chamam a Joilson). Será assim o dia todo. A sala de reuniões do Canteiro Social está vazia. A um canto, entre as cadeiras desalinhadas, está pousada uma gaiola. "O que é?" Ele sorri: "É uma sabiá."

O pássaro do poema que os meninos aprendem na escola, a Canção do Exílio, que Gonçalves Dias escreveu quando estava em Coimbra, "Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá."

Naquele dia, o pássaro engaiolado não cantou. O que se ouvia na Rocinha era a chinfrineira das centenas de motos que sobem e descem continuamente a curva do S, na Estrada da Gávea, sem sinais de trânsito nem passadeiras para peões. As motos coladas umas às outras. Homens, mulheres, crianças na garupa. Primeiro pensei que era uma excursão, um bando de "motoqueiros" a partir para qualquer sítio. Logo percebi que não. É assim durante 24 horas. Sem silêncio, sem parar. Num poste de electricidade um cartaz anuncia: "Vende-se kitinete com quarto, cozinha, banheiro e uma laje livre." Galgámos a ladeira, um homem altíssimo desce à pressa com um gigantesco maço de notas na mão. Não é o único. Vejo a um canto um outro homem, mais velho, que também tem notas em demasia à vista de todos. Quanto dinheiro a passar de mão em mão... Nos últimos dois anos a venda de cocaína na Rocinha e no morro São Carlos gerou 43 milhões de euros, diz a revista Época esta semana nas bancas.

No meio da estrada que atravessa toda a Rocinha um homem tenta organizar o trânsito, que não se organiza. Finalmente dá-nos ordem para atravessar a rua. Mais motos, mais algazarra. "Não faça fotos agora", avisa, preocupado, Joilson, reconhecendo sinais que escapam a "gringas" como eu: "Se não eles lhe tiram a máquina." Não me esqueço que estamos em território dominado por Nem, que entrou para a criminalidade quando a filha ficou doente e ele pediu um empréstimo aos traficantes que foi pagando depois com favores. É o chefe do tráfico há cinco anos. Volta-me à ideia aquele "Bandido não lê, seu babaca".

Na parede em frente à lanchonete do Elisei, aberta 24 horas por dia com frango no churrasco, um gigantesco graffito: Raça Rubro-Negra. "É onde a torcida do Flamengo (raça-fla da Rocinha) se junta", explica Joilson ao abrir a porta da entrada do Salão da Família, um dos mais antigos cabeleireiros da Rocinha, com duas salas distintas, onde homens e mulheres se vão emperiquitar. Funcionam até de madrugada. Em dias de baile funk não há hora para se terminarem os tratamentos de beleza.

Não é preciso sair da Rocinha para comprar seja o que for. Encontra-se lá de tudo. Duas agências bancárias, fast-food (pizzarias, o Bob"s burgers e até um restaurante oriental onde a novidade é o sushi), agência de viagens, farmácias e até o shopping - um pátio rodeado de lojas com umas mesas entre plantas e onde, estranhamente, só homens tagarelavam ao final da tarde.

"Como vai essa força nordestina?", pergunta alguém ao entrar na papelaria, que serve de cibercafé e videoclube. Foi ali que Joilson Pinheiro passou para o computador os poemas do seu livro É Poesia? que são declamados pelas crianças que às terças e quintas participam no projecto Pequenos Poetas da Rocinha, do Studio Arte - Espaço Aberto. "Tudo começou quando a coordenadora do Espaço Aberto, Iolanda dos Santos Demétrio, percebeu que as bailarinas "mirins" não sabiam dar entrevistas, ou seja, precisavam melhorar a fala e o vocabulário", explica. Começaram a participar no programa que o poeta mantinha numa rádio comunitária. "Todo sábado as crianças participavam do programa A Voz da Poesia. Nesse período comecei a chamar as crianças de Pequenos Poetas da Rocinha, o nome pegou e virou projecto desde 2008 junto ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. A parceria durou apenas quatro meses."

Foi por isso que, em Junho do ano passado, o professor começou a levar as crianças para um teatro em Copacabana para participarem no sarau. "Não sou muito de viver sonhando, mas gostaria muito de ver essas crianças publicando seus próprios poemas. É difícil transformar crianças em poetas. Sabe porquê? O descaso do Brasil com a leitura das crianças é muito forte, várias gerações ficaram longe da leitura. O Governo Lula tem feito alguma coisa, mas o que foi feito ainda acho pouco. Tanto é assim que não cobro nada aos pais dessas crianças. Não quero ganhar dinheiro em cima de uma coisa que o Governo devia ter feito. É a única forma que encontrei de agradecer a Deus o talento que ele me deu, a força de acordar todo o dia de madrugada, ir para o meu trabalho, ganhar dinheiro, resolver minha vida e também escrever."

As crianças no beco

Quando for grande, Lidiane quer ser actriz. Samuel quer ser médico cirurgião. Lorraine quer ser estilista ou modelo. Luana ainda não sabe. Por agora declamam o poema "Fumaça é prenúncio de fogo/é o que mais se ouve no beco/que fogo é fumaça e que fumaça é fogo..." na sala a que deram o nome de Cantinho da Literatura. O poema de Joilson Pinheiro conta a história de Fumaça, o "moleque danado que nem pirraça" que "provocava cachorro, quebrava vidraças" até que um dia "um tal tiro de fuzil apagou fumaça". Mais uma história dos becos onde se pode morrer de balas perdidas. Naquele dia na Rocinha os homens e crianças armadas não mostraram as armas. Joilson também estranhou. "Quando se desce do ónibus, já costumam estar por ali", diz.

"Quando você pega uma criança como Gabriel, de 13 anos, que quando o conheci tinha força de vontade mas não tinha nenhum conhecimento cultural, a leva para um teatro onde diz poesia e é aplaudida por escritores e poetas, adultos, que tiveram toda a oportunidade da vida, isso é gratificante."

Na Rocinha também há aulas de bateria (percussão), de arte e de bailado. Lorraine, de 13 anos, que lê livros de adolescentes como Crepúsculo, de Stephenie Meyer, gosta das aulas dos Pequenos Poetas: "Quando a gente lê alguns poemas novos, que a gente não conhece e aprende significados novos. É legal porque a gente brinca."

Lidiane Silva, de 12 anos, sabe interpretar. Luana Rodrigues, de 12, está "meio indecisa, mas uma hora aí ela diz ao professor que quer ser alguma coisa". Quem sabe se um dia o poeta escreve um texto sobre remédios e um dos garotos lhe diz que quer ser médico ou veterinário. "Estou aqui para descobrir profissionais de qualquer área. A literatura é um pretexto, os caminhos são diversos, as janelas que se abrem são um horizonte do qual as pessoas não têm nem noção", acredita o professor que, na sua infância, na Baía, teve uma professora de Língua Portuguesa que "pegava as músicas" de Vinicius de Moraes, dava uma cópia a cada um e fazia com que lessem um trecho. Trazia para a aula um gravador e mostrava aos alunos que o que tinham acabado de ler era também uma canção. "Descobri tanta coisa por causa disso", recorda enquanto olha para a bandeira: "Ordem e Progresso."

Pelos vidros, lá fora, vê-se a Assembleia de Deus; a administradora de imóveis com "critério e transparência" Passárgada - lembram-se do poema "Vou-me embora pra Pasárgada..."? É Manuel Bandeira na Rocinha. Uma venda de frutas & legumes e ainda lojas de roupa onde os manequins parecem de verdade entre as moças sentadas à porta. Acaba a aula. As crianças partem para casa. Desaparecem entre os becos, onde se escondem kitinetes com "geladeiras" modernas e aquários com peixinhos. Mas onde também há a mais profunda miséria, onde os gatos não são de companhia: servem para afugentar ratos. A favela é isto. Os que poderiam sem dificuldade viver noutro sítio (mas não querem sair dali) e os outros, sem esperança, em barracos feitos com restos de lixo.

"Por aqui ninguém usa capacete?!" pergunto, intrigada, já a descer a avenida, a três motoboys, rapazes que guiam os Mototáxi, cada viagem 2 reais (90 cêntimos). "Na Rocinha é opcional. Cada qual corre o seu próprio risco", riem-se.

Perto do Largo do Boiadeiro, Joilson cumprimenta Wark, Marcos Rodrigo Neves, artista de graffiti que faz parte da ONG Grupo de Break Consciente da Rocinha, e também dá aulas a jovens. No Wark Studio estão à venda "camisas grafitadas" com retratos de cantores e políticos que visitaram a comunidade. Lula da Silva está lá.

Em frente, na Rua do Banco Itaú, fica o Cantinho das Baianas, cada refeição a oito reais (3,60 euros). Há feijoada, frango refogado com puré, Strogonoff, peixe com molho de camarão. A história de Ana Márcia é exemplar. Nasceu em Feira de Santana, na Baía, partiu para o Rio de Janeiro aos 16 anos. Quando o marido morreu, ficou sozinha com uma filha pequena e aventurou-se de porta em porta, no Leblon. Pediu aos porteiros para falar com as moradoras dos prédios, encontrou Dona Janete que lhe ensinou tudo o que sabe.

Aprendeu a cozinhar e abriu a Barraca da Baianas, na Via Ápia, em frente à Gráfica Nova Geração. Com as irmãs toma conta das panelas que brilham, limpas, limpas, no meio da confusão da feira. Os clientes comem de pé em pequenos pratos de plástico e as refeições custam 4 reais (1,70 euros). Com o dinheiro que lhe foi dando a barraca comprou um fogão industrial e inaugurou, mais acima, o Cantinho das Baianas. Não recorreu ao microcrédito e está feliz porque tem conseguido colocar dinheiro de parte. Até comprou uma casa para a filha. Nas paredes do Cantinho das Baianas há fotografias da sua ida ao popular programa de Ana Maria Braga na TV Globo. Ao ver a gravação, ainda se emociona.

"Temos que ir andando", interrompe o poeta que quer ainda "bater um papo" com um dos seus parceiros de samba. Ele diz que "faz de atrevido", que cria umas melodias que os outros ajeitam. Descemos. Em quase todos os estabelecimentos os televisores estão ligados. É quinta-feira, dia d"A Hora do Funk, o primeiro piloto de programa ao vivo para pessoas da comunidade. É lá que o MC Binho, o músico-apresentador, mostra o seu megatalento. Há uns anos o garoto que tocava em bailes funk foi ter com a produtora Fabiana Cândido Giannini, da TV Roc - o Cabo da Rocinha, e disse-lhe que tinha o sonho de fazer um programa de televisão. "Achava que, se fosse bater à porta da TV Globo ou da TV Record, nem iriam deixar chegar nem à porta. Então criou-se A Hora do Funk para mostrar à comunidade a sua cara e se poderem trazer atracções, que não são daqui mas que os jovens da comunidade gostam. De outra maneira não teriam acesso", explica Fabiana Giannini. Naquele dia o convidado era MC Kadu. Rodeado de duas garotas, de "shortinhos", mascarilha de Tiazinha e peitos vistosos que "descem e sobem lindas", MC Kadu faz o seu número e MC Bicho anima a galera. "Deixa a gatinha dançar./E vai rebolando, vai rebolando/e vai rebolando./descendo e subindo,/ subindo e descendo pra mim", cantam num espaço apertado onde as câmaras se entusiasmam com o rebolar das moças.

A TV Roc começou há 14 anos "com o intuito de propagar e igualar as classes". É uma empresa privada de TV por cabo e o canal comunitário é a parte social da empresa. "Foi criada para as pessoas da comunidade saberem que podem ter seu espaço, seu lugar ao sol. Uma pessoa rica pode ser apresentador e um pobre nem pode sonhar. É por isso que cedemos esse espaço, gratuito, para o pobre sonhar. O canal comunitário é gratuito para moradores da Rocinha", continua a explicar Giannini. Criaram também o programa de pagode (Muvuka) feito por pessoas da Rocinha. "Tem essa parte boa de querer e de poder dizer: "Puxa, eu posso!" E dizer para as outras pessoas da comunidade que se ele pode, eu também posso."

O "camelô" poeta

Já escureceu. As luzes acenderam-se pelas encostas do morro Dois Irmãos. A favela, gigantesca, parece uma imagem irreal. Há uma beleza naquela desordem iluminada. Alguém grafitou numa das paredes: "Bem-vindo à Rocinha. O perigo é você não querer mais ir embora."

Na via Ápia a vida não pára. Milton Moisés, que nasceu em 1934 no sertão do Ceará, é "camelô", está sentado a vender "bala" [doces, rebuçados, pastilhas, chocolates] na feira. Nos anos 80 veio viver para o Rio de Janeiro, mandou depois vir a mulher e os 12 filhos. No Ceará acreditou que "não era ninguém", mas "a vontade de Deus" fez-lhe ver que "ali estava com um parando de vida."

Era analfabeto mas aprendeu. "Não estudei. Mas com o que chamo loucura do poeta, os tapas e beijos da vida, comecei a escrever, a ler cartaz. O que eu não podia, ou não sabia, passava por cima e fazia o que eu entendia de fazer." Com o tempo alguém viu os seus rascunhos. "Por que é que você não edita um livro?", perguntavam-lhe. Pouco a pouco foi acontecendo. Publicou Jardim do Pensamento. "Quer ver?", pergunta "seu" Milton, que, aos 73 anos, não pára de escrever e também faz pinturas, coloridas, cada uma diferente da outra. "Ele sai desenhando por aí e quando se chega aqui está sempre com um textinho na mão. Como "seu" Milton é uma pessoa que vende "balas", eu costumo dizer que ele é o homem que adoça a conversa da via Ápia - uma das vias principais da Rocinha - e adoça a vida das crianças porque vende "balas"", diz o baiano.

Com aquela entoação da literatura de cordel, do Ceará, no Nordeste brasileiro, "seu" Milton começa a recitar: "Eu sou um velho doceiro/Camelô em uma favela/Não tenho como ser contra ela/É aqui que eu vivo e sou feliz, sim."

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