Câmara aprovou condomínio contra pareceres dos seus técnicos

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O terreno ainda desocupado situa-se entre a Infante Santo e a Tapada das Necessidades Foto: Miguel Manso

A Câmara de Lisboa autorizou, no fim de Julho, um loteamento que foi considerado inviável pela Estrutura Consultiva do Plano Director Municipal e que suscitou fortes reservas de outros serviços camarários. A proposta aprovada, subscrita por Manuel Salgado, vice-presidente e vereador do Urbanismo, omite o essencial das objecções levantadas e foi aprovada apenas com os votos da maioria.

Com um historial iniciado há uma dúzia de anos, o projecto envolve duas parcelas contíguas, num total de 4242 m2, que o grupo liderado pelo empresário João Pereira Coutinho possui entre a Av. Infante Santo e a Calçada das Necessidades. Juntamente com uma faixa de quase 100 metros de comprimento e uma área de 1134 m2, de propriedade municipal, que lhe é contígua e deita para a Infante Santo, as parcelas da imobiliária SGC correspondem ao único espaço ainda não-urbanizado daquela avenida.

Na década passada houve três propostas para o local, a última das quais foi indeferida por Manuel Salgado no fim de 2008. Tal como os anteriores, o projecto contava com a promessa de "cedência" da parcela camarária confinante para "complemento de lote". As conclusões da sindicância de 2007, que apontavam para a ilegalidade da generalidade deste tipo de "cedências" - e desta em concreto -, contribuíram, porém, para que Salgado indeferisse a pretensão.

O loteamento agora aprovado contempla a transformação de um edifício fronteiro ao muro da Tapada das Necessidades, a demolição de um outro e a construção, no logradouro, de quatro blocos de apartamentos com cinco pisos, recuados em relação à Calçada das Necessidades, mas sobrelevados em relação à Infante Santo. A intervenção abrange apenas as duas parcelas do promotor, mantendo os dois lotes actuais, e dará origem a 29 apartamentos, com 75 lugares de estacionamento privativo no subsolo. A área total a construir será de 6938 m2, dos quais 670 serão para comércio e o restante para habitação.

O Núcleo Residente da Estrutura Consultiva do PDM - serviço composto por técnicos municipais - entende, porém, que a intervenção não deveria ter sido sujeita às regras dos loteamentos, devendo, pelo contrário, obedecer às normas para construção avulsa.

Proposta "inviável"

No parecer emitido, aquele serviço salienta que o recurso à figura do loteamento "não tem sentido" porque não são criados mais lotes, novos arruamentos, ou infra-estruturas. Porém, enfatiza, a utilização dessa figura "potencia a edificabilidade para além do permitido pela aplicação das normas gerais para construção em Área Histórica Habitacional". Ou seja, permite aumentar a área de construção.

Além disso, o parecer defende que o projecto da SGC "não respeita" o artigo do PDM que ali interdita a construção nos logradouros. "As questões atrás colocadas apontam para a inviabilidade da presente proposta", conclui. O incumprimento do PDM em matéria de estacionamento e áreas comerciais mínimas nos loteamentos é igualmente uma das raras conclusões a que chega o Departamento de Projectos Estratégicos (DPE), responsável pela informação em que se baseou Manuel Salgado. No estacionamento, manda o plano que o projecto contemple 69 lugares e ele não prevê um único. Quanto às áreas comerciais, faltam 23 m2 para o cumprir.

Apontados estes dois aspectos, a informação resume os pareceres emitidos, sem nada propor, deixando tudo "à consideração superior". Salientado no texto, bem como nos despachos da hierarquia do DPE, é o facto de a informação responder a um despacho de Manuel Salgado que ordenou a sua elaboração por forma a instruir "uma proposta de deliberação".

O despacho de Salgado

Nesse despacho, de Janeiro deste ano, Salgado diz que o processo "tem sido acompanhado" no seu gabinete, estando a ser desenvolvida, "em articulação com o promotor", uma proposta "diametralmente oposta à que vem sendo usual nesta zona da cidade". Por isso, acrescenta, "neste momento é necessário serem tomadas opções político-urbanísticas", determinando a feitura da informação do DPE e de uma outra do Departamento do Património Imobiliário (DPI). A propósito desta, tece uma crítica severa ao DPI, dizendo que o seu trabalho se deve "circunscrever ao que lhe é pedido, não emitindo juízos de valor sobre áreas que são da competência" de outros serviços. O remoque dirigia-se a uma anterior informação do DPI em que se emitiam sérias reservas sobre o projecto e se concluía que ele desvalorizaria a parcela municipal contígua.

Na proposta que fez aprovar, Salgado omite parte das objecções dos serviços, nomeadamente as da Estutura Consultiva do PDM. Quanto às outras, justifica-as sobretudo com a cedência, pelo promotor, de 1572 m2 que, juntamente com os 1134 da parcela municipal [o que, somado, dá 2706 m2], permitirão "constituir um único espaço verde de utilização pública com a área total de cerca de 2900 m2".

Quanto à falta dos 69 lugares de estacionamento público, o autarca diz que ela é compensada em dinheiro. Aplicando as fórmulas em vigor, o DPI apurou 137.548 euros a pagar como compensação (1993 euros por cada lugar em falta). Adicionalmente, Salgado diz que "a operação viabilizará a construção de um parque público para 200 lugares, parcialmente em terreno" da SGC.

Um parque de estacionamento mal explicado

O loteamento aprovado não contempla a criação dos 69 lugares de estacionamento público exigidos pelo PDM, "dada a topografia do terreno e restrições do subsolo", explica Manuel Salgado na proposta que levou à câmara. "Contudo", acrescenta, "esta operação viabilizará um parque para 200 lugares, parcialmente em terreno da requerente", na Infante Santo. O texto não diz é que o terreno da SGC tem apenas 175 m2, pertencendo ao município os 2035 m2 restantes. De acordo com o processo camarário, a parcela a ceder pela SGC corresponde a um bico da propriedade, sem qualquer possibilidade de uso para construção e que há longos anos está integrado num dos cantos de uma zona de estacionamento criada pela autarquia no terreno que possui em frente ao edifício Bonag, no gaveto da Infante Santo com a Rua Embaixador Teixeira de Sampaio. Foi o direito de superfície em subsolo correspondente a esta parcela que o município cedeu em 2001 à empresa Esli, actualmente integrada na Emparque, para que ali construísse e explorasse um parque com quatro pisos subterrâneos e 225 lugares. No mesmo dia, a autarquia celebrou também com a Esli um contrato de promessa de constituição do direito de superfície de uma parcela confinante, de 225 m2, que ainda não era sua, mas que esperava vir a ser-lhe cedida para a urbanização já então em estudo. Ao que se constata agora, a parcela não tinha 225 m2, mas 175. Falta saber se a Emparque não os podia comprar à SGC e até se o parque era inviável sem essa nesga de terreno. A Emparque, que há cinco anos não manifestava interesse no projecto, informou Manuel Salgado em Março passado de que ia apresentar um novo projecto para o parque.

Salgado não responde

O PÚBLICO pediu por escrito ao vice-presidente da câmara que explicasse a sua posição face às informações dos técnicos municipais que apontam para o incumprimento do PDM no projecto cuja aprovação ele propôs. Idêntica pergunta foi feita em relação ao entendimento dos serviços de que o recurso ao loteamento apenas serviu para potenciar a área de construção. Ambas as questões são omitidas na proposta de Salgado, que, porém, mandou dizer ao PÚBLICO, através de uma assessora, que não iria responder às perguntas feitas.

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