A revolucionária sem medo

Sendo este um livro que conta a história da vida da revolucionária angolana Sita Valles e, ao mesmo tempo, retrata um episódio trágico da História de Angola, o seu desfecho está selado. Aconteceu em 1977, o 27 de Maio. E, sobre ele, não há um voltar atrás. Sita Valles desapareceu. Não se sabe onde repousa. Apenas se sabe que teve um fim insuportável. Porém, a inevitabilidade dos acontecimentos é-nos revelada em ritmo lento, de forma quase inesperada - como se fosse possível esperar outro final, menos trágico.

Sita Valles foi executada (como muitos milhares de pessoas), depois de violada por agentes da polícia política (DISA) do regime do Presidente Agostinho Neto, num país que vivia os primeiros tempos - com encantos e desencantos - de uma independência declarada em Novembro de 1975. Estava prestes a fazer 26 anos. Tinha um filho de seis meses, e possivelmente estaria grávida de um segundo. Dedicara a vida a um ideal, a uma revolução. Entregou-se à luta antifascista e anticolonial em Portugal e, mais tarde, em Luanda, junto do movimento dos "nitistas", que contestava o rumo seguido pela liderança de Agostinho Neto e do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) e era liderado por Nito Alves. Este tinha a seu lado José Van-Dunem, companheiro e pai do filho de Sita Valles.

A intensidade dos acontecimentos abate-se no livro da jornalista Leonor Figueiredo de forma quase íntima, com o discreto apagar de um pai, Edgar Francisco Valles, subjugado pelo desgosto, e as súplicas de uma mãe incrédula, Lúcia Valles, incrédula, em cartas sem resposta dirigidas ao ministro da Justiça a perguntar pela filha e pelo filho Ademar, depois do desaparecimento de ambos. Apesar de ser do MPLA, Ademar não era militante do partido e não estava envolvido na política ou no movimento nitista. Mas também ele foi preso e executado, por ter o nome Valles - tal era a frieza do sistema, tal era a influência de Sita e o impacto do seu activismo.

Quando nasceu em 1951, os seus pais, como que adivinhando um percurso excepcional, escolheram para ela um nome que aludia à deusa Sita, "personagem de um épico hindu, símbolo da mulher ideal, brilhante e com uma força e uma coragem únicas". A menina angolana, de uma família de Goa, estudante de Medicina primeiro em Luanda e depois em Lisboa, tornou-se numa distinta líder do movimento estudantil na União de Estudantes Comunistas (UEC) e depois num dos nomes mais importantes da contestação ao poder de Agostinho Neto, dentro do MPLA. (A saída do PCP foi-lhe imposta quando decidiu regressar a Angola, em 1975.)No momento do fuzilamento, Sita Valles quis olhar de frente os seus carrascos, recusando a venda nos olhos. Morreu como viveu e como abraçou a causa da revolução - sem medo. A sua morte foi um choque para muitos que a conheciam e que a lembram, neste livro, como uma figura exemplar, uma líder estudantil insubstituível, carismática e inteligente, idealista e sonhadora, e ao mesmo tempo organizada e com uma capacidade de trabalho e de argumentação ímpares.Vítima dos acontecimentos? Ou dela própria? Sita Valles entregou-se com uma tal intensidade à luta que a pergunta se coloca. Para a maioria ela foi corajosa, para alguns foi imprudente.

O livro deixa outra questão em aberto - o 27 de Maio foi "um golpe", "uma acção?" - e relembra a tese de que a intenção dos "nitistas" era enfrentar o poder, contando com o apoio de uma parte do Exército e das tropas cubanas, o que não aconteceu.

Várias versões se cruzam. Os números dos mortos que não deixaram rasto nem registos apenas podem ser aproximados. Muita gente continua a não querer falar sobre o que se passou. Por receio ou para não despertar os seus próprios fantasmas. Mais de 20 mil pessoas terão desaparecido, entre os quais portugueses do PCP que viviam em Luanda. Muitas outras foram torturadas. Sobreviveram ou não. Esta ainda é uma história por contar. E o que nos dá este livro é uma parte dessa história, bem como um olhar humano sobre uma figura heróica que, para alguns, pecou pelos excessos e, para outros, fez apenas aquilo que acreditava ser justo para contribuir para um mundo melhor.

Muito dizem da época que se vivia os testemunhos e documentos publicados pela ex-jornalista do "Diário de Notícias": os discursos de Agostinho Neto em que este anuncia que não haverá perdão para os "fraccionistas", os apelos ao povo a pedir ajuda para prendê-los, os editoriais no "Jornal de Angola" a diabolizá-los. Ou as cartas pessoais dos familiares de Sita.

Depois do 27 de Maio, o silêncio das autoridades sobre os desaparecidos adensa o medo que se adivinha nas ruas e nas casas de outras vítimas. A tragédia é a de um terror organizado e imparável, como que anestesiado, contra os que desafiaram a política do MPLA.

Nito Alves, o carismático líder afastado, como José Van-Dunem, dos importantes cargos que havia ocupado no MPLA, ambicionava o lugar de Lúcio Lara, "número dois" do regime. Mas também acreditava que seria possível instaurar o poder popular, conduzindo uma linha marxista-leninista dentro do MPLA. Estaria ele disposto a tudo? Terão as pessoas da direcção do MPLA encontradas às primeiras horas desse dia 27 de Maio sido mortas pelos "nitistas", como fez crer o regime?Sem o 27 de Maio, que MPLA teria Angola hoje? É outra questão, de resposta já impossível.

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