Raquel Evita Saraswati: Proibir é dar um presente ao islão radical

Foto
Raquel Evita Saraswati DR

Quando me perguntam, dou o meu melhor para explicar por que é que algumas mulheres o usam.

No entanto, quando pressionada a dar a minha opinião pessoal, tenho de ser honesta: considero terrivelmente perturbador o niqab e a sua crescente popularidade.

Tenho ouvido e lido muitos argumentos contra o niqab com os quais eu concordo. No entanto, não ouvi qualquer argumento que me tenha convencido de que seja aceitável regular as expressões religiosas nas sociedades livres ou que esses regulamentos sejam, de facto, bons para as mulheres. Como americana, a defesa que faço da liberdade religiosa não me permite apoiar a proibição do niqab.

Compreendo intimamente que as mulheres usem vestes - religiosas ou culturais - por muitas razões. Compreendo que as mulheres que usam o niqab não partilham uma perspectiva singular. Por isso, os meus sentimentos negativos sobre o niqab têm a ver com a própria peça de vestuário - e não todas as muçulmanas que a usam.

Para mim, o niqab e a burqa representam tudo o que está de errado no mundo muçulmano actual. Em países onde estes véus são a norma - ou até mesmo impostos por lei - testemunhamos algumas das piores condições de direitos humanos dos nossos tempos.

Embora o niqab não seja, por si só, obviamente culpado pelas muitas violações de direitos humanos cometidas em nome do islão, é uma ingenuidade alegar, como alguns fazem, que "não representa nada". As justifi cações religiosas para usar o niqab são, no mínimo, questionáveis.

Destacados teólogos e instituições muçulmanas têm repetidamente declarado que o niqab não é islâmico e alguns defendem até a sua proibição.

No entanto, quando regimes islamistas tentam subjugar a mulher, o niqab e a burqa são instrumentos que usam para tornar as mulheres invisíveis. Nessas sociedades, é colocado sobre as mulheres o peso de comunicar a piedade religiosa, a abstinência sexual e a feminilidade muçulmana. Não há escolha entre cobrir-se ou não se cobrir - uma rebelião pode ser fatal.

Em algumas áreas do mundo muçulmano onde as interpretações ultraconservadoras do islão ditam a lei do país, as mulheres são presas, interrogadas e frequentemente torturadas por mostrarem um fi o de cabelo, por desvelarem os pulsos ou até por usarem calças. Vítimas de violação são apedrejadas até à morte.

Ao invocarem justificação religiosa, os Estados "islâmicos" decretam castigos como amputação, flagelação e execução para infracções que vão desde beber álcool até falar com alguém do sexo oposto. As liberdades de expressão e de religião não existem. Dissidentes e apóstatas temem pelas suas vidas em igual medida.

Na sua tentativa de banir os véus dos rostos, a França julga, aparentemente, que está a tomar posição contra as versões radicais do islão que eu acima descrevi. Contudo, eu acho que a proibição do niqab e da burqa não é apenas uma afronta aos valores ocidentais e à liberdade das mulheres -mas também um presente ao islão radical.

Há informações de que meio por cento das mulheres muçulmanas em França usam o niqab.

Algumas dessas mulheres seguramente que optaram por o usar. No entanto, o que dizer sobre aquelas que não escolherem usá-lo? Os proponentes da interdição têm argumentado que ela dará às mulheres a oportunidade de mostrarem os seus rostos em público independentemente dos desejos dos seus maridos ou famílias. Esta é uma assunção, simultaneamente disparatada e perigosa.

Nos casos em que uma mulher é forçada a usar o niqab ou a burqa, a resposta imediata que o seu guardião masculino terá, após esta proibição, será a de obrigar a mulher a ficar dentro de casa. Incapazes de sair, estas mulheres fi carão privadas das oportunidades de interagir com uma sociedade e ideias seculares.

Os franceses poderão até constatar uma diminuição no uso do véu - mas o que, na realidade, estarão a ver é uma maior invisibilidade das mulheres muçulmanas.

São dúbias as advertências de que os maridos que forçarem as mulheres a usar o véu serão perseguidos. Como é que estes casos serão descobertos e julgados quando as mulheres que vivem com estes homens não se vêem, literalmente, em parte alguma? Quem pagará pelos recursos adicionais para fazer cumprir a lei e os processos judiciais nestes casos, tendo em conta que os arguidos podem ser imigrantes que dependem do Estado para sobreviver? Os islamistas radicais já se uniram contra a proibição do véu em França, exigindo que o niqab e a burqa sejam promovidos onde ainda podem ser usados: em lugares como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e em muitas partes do mundo muçulmano onde ainda não é a norma.

Ayman al-Zawahiri, o "braço direito" de Osama bin Laden, já descreveu a proibição do niqab como "o apelo a uma guerra sem vergonha". As forças taliban no Paquistão ameaçaram queimar os rostos das mulheres com ácido se elas forem vistas sem o lenço na cabeça. Eu prevejo que outras proibições dos véus do rosto irão provocar um crescendo neste tipo de violência contra as mulheres muçulmanas.

Embora não devamos apaziguar os terroristas também temos de entender que uma proibição que parece afectar apenas uma pequena minoria poderá, na realidade, resultar em consequências mortíferas para as mulheres muçulmanas em todo o mundo, as que nunca usaram - nem desejam usar - o niqab. Ao regulamentar o que uma mulher pode ou não mostrar do seu corpo, a França está a comportar-se como os islamistas radicais: a sacrificar os corpos das mulheres a uma guerra cósmica que não pode vencer.

Restringir a liberdade de expressão - seja a proibição dos véus do rosto ou a censura à crítica da religião - prejudica a verdadeira liberdade. A compulsão em matéria de religião e de expressão viola tanto a promessa de secularismo como o que a fé tem de melhor. Ao permanecermos fi éis a estes valores - em vez de os trair para atacar um inimigo - estaremos a permitir que as mulheres muçulmanas tenham a oportunidade de usufruir aquilo que os regimes radicais lhes negam: o direito que Deus lhes deu de pensarem por si próprias.

Não interessa se este pensamento ocorre debaixo de um véu. As ideias pluralistas não chegam àquelas que estão em isolamento, mas àquelas que têm a autonomia para poderem pensar e agir. Faz parte do melhor espírito do secularismo tratar as mulheres muçulmanas como cidadãos iguais - mas não dizerlhes como se devem vestir.

Raquel Evita Saraswati

Raquel Evita Saraswati é uma feminista muçulmana americana empenhada na defesa dos direitos humanos e de religião, resolução de confl itos e democracia. Como jornalista freelance, os seus artigos têm sido publicados em vários jornais - um deles o israelita Ha'aretz. Tem dado palestras na Europa e América do Norte sobre questões como os crimes de sangue (honor killings), dissidência e o papel das mulheres na transformação do mundo islâmico. Participa também em campanhas de apoio a pacientes com HIV DR e sida, pessoas sem-abrigo, imigrantes e outras em risco. Em 2007, recebeu o prestigiado Colin Higgins Youth Courage Award, atribuído aos "indivíduos que enfrentaram extrema hostilidade e ódio e, no entanto, vivem as suas vidas com a maior afabilidade". Em 2010, tornou-se a primeira mulher com menos de 30 anos (nasceu em 1983) a receber o Durga Award, do IndieFest (San Diego) - um prémio concedido anualmente a "mulheres extraordinárias que dedicam as suas vidas a cicatrizar as feridas das comunidades".

Sugerir correcção
Comentar