Glee Ainda estamos todos no liceu
É uma das fortes candidatas à vitória na noite de amanhã de prémios Emmy. Actores e produtor falam ao P2 da comédia musical que mistura tolerância e artes performativas e extravasou as fronteiras da televisão. Por Joana Amaral Cardoso
Cena de bastidores de uma ronda de entrevistas com o elenco de Glee: no final da conversa com Matthew Morrison, o professor Will Schuester da série musical, dois jornalistas saltam das cadeiras. Pedem fotografias com Morrison e autógrafos do actor da série-fenómeno. São eles uma jovem jornalista de uma revista para adolescentes irlandesa e um jornalista de meia-idade do reputado diário britânico The Independent. As fotografias sorridentes, para gáudio dos leitores da revista e das filhas do jornalista britânico, cristalizavam a essência de Glee, uma das principais candidatas à vitória na noite dos Emmy, amanhã.
Glee é uma comédia transversal em termos de público que fala a "língua internacional" da música, diz Matthew Morrison. Uma média de 10 milhões de espectadores seguiu a série nos EUA, onde passa no canal Fox (em Portugal está na Fox Life e na TVI), aos quais se junta o público de mais de 30 países. À música junta-se a mensagem de tolerância transmitida por um elenco multirracial, de várias orientações sexuais, físicos e modelos de família. "Somos uma série sobre inadaptados e subvalorizados e estar no topo é um lugar muito desconfortável", ria-se o produtor Dante DiLoreto em Londres, ciente do favoritismo.
A 62.ª cerimónia dos Emmy, continuamente desvalorizada pela crítica, mas ainda um agregador de públicos, é transmitida no AXN e SET à 1h00 da noite de domingo para segunda e é apresentada por Jimmy Fallon. Os grandes competidores são Glee, com 19 nomeações, Mad Men com 17, The Pacific com 24.
Glee tem gleeks (os geeks fãs de Glee) por todo o mundo e grande parte do elenco, Morrison incluído, pertence ao grupo de actores conhecidos como Broadway babies, jovens estrelas do teatro musical americano. Pensada inicialmente para cinema e adaptada para televisão por Ryan Murphy, Glee teve um percurso inédito na TV americana num ano (2009) em que tudo estava a mudar. Menos horas de ficção (algo que este ano voltou a equilibrar-se), erosão das audiências e o grande sucesso de audiências era o dominical American Idol (Fox). "O episódio-piloto foi aprovado imediatamente antes de alguém o ter visto. Foi uma experiência estranha", recorda Dante DiLoreto. "E emitimos apenas um episódio [em Maio, na Fox], coisa inédita nos EUA, e só pensávamos em como íamos manter o público interessado até Setembro. Descobrimos que as pessoas o fizeram sozinhas: disseram aos amigos, a música era descarregada, as pessoas falavam nisso no Twitter, criavam grupos no Facebook, gravavam as suas versões das músicas [no YouTube]... A série pareceu crescer fora do ar tanto quanto quando estava no ar."
Teenagers e American Idol
A precedê-la havia os filmes Disney High School Musical e o fenómeno American Idol (Ídolos, em Portugal), Achas Que Sabes Dançar e quejandos. DiLoreto admite que houve uma estratégia Idol. "Por causa do American Idol, havia uma oportunidade, que o Ryan viu com muita clareza, de pôr uma série [de variedades] a seguir [à sua exibição semanal]." E assim foi.
A série transbordou do ecrã. Em países sem tradição deste tipo de grupo coral, eles nascem. Não há chefes de claque e jogadores de futebol americano? Mas há sempre os mais conhecidos da escola, as tribos rivais, os totós e os gozados. "O liceu é uma provação, uma encruzilhada, um período traumático pelo qual todos passaram e se se lhe juntar música e teatralidade... é uma tempestade perfeita", explicava ao P2 Chris Colfer, o actor de 20 anos cuja personagem gay Kurt é uma das mais populares e foi criada especificamente para si depois de uma audição. Ele ainda enverga, diz, "as cicatrizes" da sua experiência liceal.
Ryan Murphy, criador e argumentista principal da série, é o senhor Nip/Tuck e agora o realizador de Comer, Orar, Amar. Mas antes disso fez Popular, também passada num liceu. A televisão está hoje cheia de novelas, procedurals criminais, séries de médicos, de advogados, mas também de adolescentes - não esquecendo os vampiros. Em Portugal essa paisagem teen faz-se de Lua Vermelha (vampiros e adolescentes) e de Morangos com Açúcar, que na última temporada se focou numa escola de talentos musicais e de dança. Esta obsessão com a juventude... Estaremos todos ainda presos no liceu? "É uma boa questão", reflecte Dante DiLoreto. "Queremos ser apelativos para um público jovem e ao mesmo tempo o público adulto já teve essa experiência e reconhece-a; nunca pensámos que íamos fazer uma série de liceu, mas sim uma comédia musical que por acaso se passava num liceu. Espero que por isso seja um pouco diferente, tentamos não ser tão noveleiros", explica o produtor ao P2.
No Reino Unido, bem como na Irlanda, há um efeito Glee. Os grupos corais transformaram-se em clubes Glee, formaram-se grupos corais onde não existiam, conseguiu-se a adesão de mais rapazes e até as inscrições no concurso Choir of the Year aumentaram 30 por cento. "Decididamente Glee teve este efeito. É muito mais divertido agora, parece que vale tudo", dizia ao jornal britânico TheGuardian Helen Price, da organização do concurso, sobre os novos alinhamentos com mais pop. Também no Reino Unido, um programa on-line de ensino básico musical viu aumentar os downloads de pop por parte de professores.
"Eu andei numa escola de artes no liceu. As inscrições para aquela escola duplicaram desde que a série se estreou", respondia Matthew Morrison ao P2. "Acho que isso diz algo sobre o que está a passar-se com a série. Para alguém que cresceu com música e dança, é espantoso estar a liderar esta carga para a nova geração", frisou. "Também acho que ajudou a comunidade teatral. As vendas na Broadway têm estado melhor. Não quero estar a associar isso ao Glee... mas estou!"
A série desdobrou-se em livros, discos que dominaram as tabelas dos mais vendidos do iTunes e da Billboard e contribuiu para relançar temas e artistas como os muito anos 80 Journey, cuja Don"t Stop Believin" é um dos hinos da série (depois de ter também marcado a cena final de Os Sopranos).
Mas tal como mostrou o final da primeira temporada de Glee, a vitória do grupo em competição, sobretudo nos muito reais Emmy, não é garantida. Os votantes do painel dos prémios, que nos últimos anos se têm redimido da sua reputação de conservadores com prémios para Mad Men ou Ruptura Total, podem não ser sensíveis ao fenómeno e valorizar a também inovadora comédia Uma Família Muito Moderna (Fox Life), por exemplo. "Só porque uma série tem mais buzz em toda a América, isso não significa que tenha ressonância nos circuitos de Hollywood. Se se perguntar à maioria dos fãs de televisão americanos, eles pensam que Glee vai ganhar; se se perguntar à maioria dos insiders de Hollywood, eles diriam que Uma Família Muito Moderna [vai ganhar]; mas se se perguntar aos historiadores dos Emmy, eles provavelmente diriam que Rockefeller 30 tem vantagem", dizia à Reuters Tom O"Neil, do site The Envelope.com. "É uma combinação fascinante."
A jornalista viajou a convite dos canais Fox