A ilha dos pássaros

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Marloes Sands pode fazer lembrar a costa alentejana

Toda a espécie de aves marinhas, focas e golfinhos, arganazes e coelhos também. Coabitam em Skomer, extraordinário santuário de biodiversidade, na ponta sudoeste do País de Gales. Luís Maio (texto e fotos) diz que encanta e produz sensações fortes, este espectáculo selvagem, mesmo a quem não tem a mania dos pássaros. A costa de Pembrokshire, por outro lado, pareceu-lhe um lugar perfeito para fazer caminhadas e mesmo ir a banhos

Há milhares de aves pousadas no mar, formando um xadrez oscilante a toda a volta da ilha. À aproximação de um barco, ou a qualquer sinal de alerta, parte deste batalhão bate as asas, chapinhando com as patas, só para abancar de novo à flor da água, meia dúzia de metros mais à frente. Já outras descolam para executar voos rasantes e eventualmente mergulhar a pique. Vêem-se depois a nadar em profundidade e com grande desenvoltura, em dias de mar tranquilo, do qual eventualmente reemergem com pequenos peixes prateados no bico. Esvoaçam de regresso a saliências e covas improvisadas algures a meio de penhascos abruptos, que muitas usam como hotel e maternidade.

Sobre as cabeças desta plateia aninhada há tantas ou mais aves que cruzam os céus em todos os sentidos, rubricando vertiginosos voos lineares, hipnóticos anéis concêntricos, ou simplesmente deslizando ao sabor do vento. Umas produzem gritos aflitivos, outras parecem trautear canções de embalar. Umas rasgam o ar com solos melancólicos, outras alinham em coros estrondosos, e todo esse sortido de sonoridades se mistura mais os respectivos ecos, projectados contra as rochas. É com este espantoso bombardeamento de estímulos - sempre mais do que os nossos sentidos parecem conseguir digerir -, que é brindado o visitante à chegada a Skomer. É a maior de três ilhas inabitadas, ao largo da península galesa de Marloes.

Skomer tem uma superfície de 2,92 quilómetros quadrados, fica a cerca de um quilómetro da costa e pode ser apresentada com uma versão XL das Berlengas, especialmente animada do ponto de vista ornitológico dos inícios da Primavera a finais do Outono, quando é palco do ciclo de reprodução de milhares de aves marinhas. Outro ponto alto no calendário de Skomer é o nascimento de focas cinzentas, que decorre entre Agosto e Novembro. Mas há mais vida selvagem e uma flora igualmente deslumbrante que justificam a visita. De resto, a ilha classificada como reserva natural e marinha está longe de ser a única atracção de Pembrokshire, a costa sudoeste do País de Gales. Estão lá algumas das praias mais selvagens e bonitas das Ilhas Britânicas.

Cruzeiro circular

É possível passar o dia em Skomer, inclusive pernoitar e ficar lá uma temporada em regime de voluntariado, entre 1 de Abril e 31 de Outubro. A alternativa é fazer um passeio de barco bordejando essa e as outras duas ilhas ao largo de Marloes, num cruzeiro de dia inteiro, que também sai ao cair do dia, nos meses de Verão. Uma excursão não é melhor que outra e o ideal é combinar o cruzeiro com a caminhada na ilha, uma vez que as duas dão a ver o mesmo sob ângulos diferentes e de algum modo complementares.

O cruzeiro contorna Skomer, revelando uma sucessão de escarpas abruptas, promontórios expostos, baías protegidas, braços de mar sombreados, pequenas línguas de areia, grutas e reentrâncias. Uma linha costeira muito, muito recortada, que parece esculpida de propósito para abrigar a sua extraordinária fauna marinha. O barco é, de resto, o melhor observatório dos pássaros em acção (sobrevoando as águas à procura de alimento), tanto mais que a tripulação inclui um(a) biólogo(a) que vai identificando e descrevendo os hábitos das aves - serviço que já não se encontra na ilha, onde os monitores se limitam a informar os visitantes sobre os trilhos sinalizados e as regras a observar.

As aves mais emblemáticas da ilha são o airo, a torda-mergulhadeira e o papagais-do-mar, três das 22 espécies de alcídeos (aves palmípedes marinhas). Parte até inverna em águas portuguesas, mas a alguma distância da costa e raramente são observáveis do continente. Já em Skomer estão presentes em quantidades expressivas, embora muito variáveis. As três espécies de alcídeos locais nidificam entre finais da Primavera e inícios do Verão, meses em que as aves adultas são visíveis em maior abundância pescando em baías abrigadas.

Os airos, ou araús comuns de bico fino e pontiagudo, coloração chocolate por cima e branca por baixo, são provavelmente a visão mais comum, uma vez que a colónia desta espécie de pinguins voadores atinge os 17 mil, o dobro do número registado em meados dos anos 60 do século passado. As tordas-mergulhadeiras são muito semelhantes, mesmo assim é fácil notar a diferença no bico mais grosso, plumagem mais escura e cauda mais comprida. São, no entanto, menos numerosas, rondando actualmente as cinco mil unidades. Também evidentes são os traços distintivos dos papagaios-do-mar, com os seus corpos rechonchudos e bicos triangulares em tons amarelos e vermelhos, que realmente fazem lembrar os papagaios. Há agora cerca de 10 mil destas aves a nidificar em Skomer, a maior colónia do sul de Inglaterra, mesmo assim longe dos 50 mil registados meio século atrás.

Igualmente expressivas são as colónias de aves pernaltas, corvos marinhos e gaivotas. Estas, sobretudo as espécies de maiores dimensões, como é o caso da gaivota-d"asa-branca e do gaivotão real, têm vindo a declinar drasticamente, devido a factores que limitam o seu regime alimentar, como a mudança de tamanho nas redes de pesca e a recente epidemia que ceifou quase 90 por cento da população de coelhos da ilha. Os apenas 85 pares de gaivotões restantes são mesmo assim uma ameaça séria para os 125 mil casais de pardelas-sombrias, a maior colónia mundial desta espécie, que nidifica em Skomer e na vizinha ilha de Skokholm. Passam o dia a pescar no mar, só regressando às tocas quando a noite cai, de modo a evitar os ataques das gaivotas predadoras. São, portanto, as aves mais numerosas, mas menos visíveis na ilha, sendo mais provável avistá-las em voo nos cruzeiros estivais de fim de tarde.

O caminho das falésias

É raro ver pardelas-sombrias cruzando os ares de Skomer, mas a sua presença é mesmo assim ostensiva nas inúmeras tocas que se encontram ceifadas um pouco por todos os cantos da ilha. As pardelas disputam as residências subterrâneas com as outras espécies de alcídeos - estas e mais aves são capazes de escavar buracos pelos seus próprios meios, mas sempre que podem invadem e acabam por se instalar naqueles que foram produzidos pelos coelhos. A sensação que dá a quem se passeia em Skomer, pelos menos desde que descola dos caminhos indicados, µ

±é muito semelhante a caminhar num enorme queijo suíço com mais buracos que superfície regular.

O trilho sinalizado tem cerca de 6,5 quilómetros e circunda a ilha pelo alto das suas falésias, havendo um segundo que corta caminho pelo meio, no sentido este-oeste. Seguindo o trilho costeiro no sentido dos ponteiros do relógio, a primeira estação é o Planalto Sul, frente à majestosa escarpa de Wick. É o lugar mais procurado de Skomer no início do Verão, quando uma multidão de papagaios-de-mar se passeia imperturbável, no meio do trilho e dos humanos. É um convívio que produz uma sensação incrível, algo semelhante a uma epifania, e a única coisa com que os humanos se devem preocupar é em não pisar os pássaros a caminho das tocas, ou distraí-los ao ponto de deixarem cair os peixes que levam no bico para alimentar as crias.

Mais à frente, ainda na vertente sudoeste da ilha, atinge-se o promontório de Skomer Head, excelente miradouro para a vizinha ilha de Skokholm e o mais distante ilhéu de Grassholm. À distância de 12 quilómetros, este surge como uma massa branca estranhamente oscilante. O enigma desfaz-se recorrendo a binóculos que deixem ver a colónia de gansos-patolas, que chega a atingir os 30 mil casais comprimidos sobre um diminuto escolho. Os binóculos também podem ser úteis para divisar bandos de golfinhos e focas cinzentas, sendo que estas últimas têm o hábito de abancar ao sol nas baías abrigadas de Skomer, como as de Driftwood e Pigstone.

Na Primavera, a ilha é cenário de uma profusão de flores silvestres, sobretudo exuberante nos vales do centro e do norte, almofadas com urze, relva-do-olimpo e campainhas azuis. Nessas áreas também se observa outro tipo de bicharada, incluindo aves predadoras como a coruja de orelhas curtas, o falcão peregrino e a águia de asa redonda. E, em terra, o petisco favorito de todas as três: o arganaz, ou melhor uma variação insular, que funciona como outra confirmação da teoria da evolução de Darwin. A população de arganazes ronda os 20 mil, que se vão esquivando como podem aos predadores graças à camuflagem dos fetos, uma das raras espécies vegetais excluídas da voracidade dos coelhos.

Os conservadores têm vindo a demarcar zonas de exclusão de coelhos, onde a urze e mais vegetação atlântica crescem vedadas, até ganharem resistência aos ataques dos roedores. Com tantos contras, a questão acaba por ser por que razão não se acaba de uma vez com os coelhos em Skomer, um trabalho de resto facilitado pela letal epidemia que os vitimou em 2006. Não é um assunto líquido para os especialistas, que receiam pela diminuição das aves marítimas, num cenário de redução de tocas produzidas pelos coelhos e que elas empregam para nidificar.

A costa e o trilho

Antes ou depois de Skomer, vale a pena ir a Marloes Sands, que pelo caminho oferece as melhores vistas panorâmicas sobre as três ilhas ao largo da península. O trilho serpenteia no alto da falésia cobertas de vegetação rasteira até atingir uma longa praia de areias finas, sulcada por cursos de água e decorada por esculturais rochedos laminados. Marloes Sands lembra as praias alentejanas e está longe de ser caso único em Pembrokeshire, um condado com quase 300 quilómetros de litoral classificado como parque natural desde 1952.

Logo na altura foi proposta a criação de um trilho sinalizado a toda a extensão do condado e na maior parte à beira mar, que acabou por ser inaugurado só nos anos 70. Há algumas nódoas pelo meio, em particular a tenebrosa refinaria de Milford Haven, mas mesmo aí os paisagistas conseguiram minimizar o choque e manter sempre que possível as chaminés fora da vista, graças à plantação de arbustos e pequenas árvores ao longo das vedações. De resto, o Pembrokeshire Coast Path é seguramente um dos trilhos litorais mais esplêndidos do planeta.

O parque é dividido mais ou menos a meio pelo estuário do Dangleddau, sendo que a norte há menos construção e as praias são mais remotas. Uma das parcelas mais bonitas do trilho costeiro fica, no entanto, a sul, ligando em cerca de vinte quilómetros as praias de Freshwater East e West. O caminho evolui sobre escarpas de arenito, entre charnecas floridas com o mar quase sempre revolto de um lado e a tranquilidade bucólica das ovelhas a pastar do outro.

Freshwater East é um longo crescente cercado por bosques, por sua vez salpicados de casas de praia do género que dá manchete em revistas de decoração. Já em Freshwater West, a única construção que se divisa é um cottage tradicional, especialmente construído para um dos filmes da saga Harry Potter. Longa baía aberta sobre o mar tumultuoso e bordada de pequenas dunas ondulantes, é a praia tipo postal que fica bem em qualquer filme histórico e aqui foi também rodada uma batalha com mais de 600 figurantes para a mais recente versão de Robin dos Bosques. A meio caminho das duas Freshwater fica Barafundle Bay, praia que já tem lugar cativo nas listas das mais bonitas da Grã Bretanha. Forma uma concha de areias imaculadas, circunscrita por uma cortina de falésias cobertas de bosques luxuriantes. Não tem parque de estacionamento, não há lojas, nem sequer um carrinho de gelados e é preciso caminhar no trilho costeiro pelo menos vinte minutos para lá chegar.

Claro que nem todo o litoral do condado está tão intacto e pelo meio há uma série de aldeias e vilas balneares, a mais popular das quais é Tenby. Antiga povoação fortificada e porto comercial, converteu-se depois, no século XVIII, num dos primeiros centros turísticos do país, onde se ia a banhos por receita médica. O centro antigo conserva testemunhos doutros tempos, desde parte das muralhas até ruínas do castelo, passando pela casa dos mercadores, à mistura com uma enorme profusão de negócios turísticos com cheiro a perfume antigo. Nada disto impede que as praias em volta sejam excelentes, oferecendo uma variedade de cenários que vão da pequena enseada urbana até aos mais de dois quilómetros de dunas monumentais que se alongam para sul. Tendy também tem uma ilha em frente, menos procurada por pássaros que por monges cirtercenses que se entretêm a fazer perfumes. Como se faltassem no litoral de Gales, a ilha de Caldey oferece ainda uma praia magnífica, pouco frequentada e com zero de infra-estruturas.

A Fugas viajou a convite do Turismo Britânico

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