Na última edição da revista "Uncut", o baterista Jack DeJohnette classifica "Bitches Brew" como "uma crise de meia-idade". Uma crise de meia-idade? O álbum em que o jazz se abriu de forma visionária a novas linguagens, para ser retalhado e reconstruído de uma forma que marcaria decisivamente a música das décadas seguintes? Crise de meia-idade? Num primeiro impacto, as palavras de DeJohnette soam como uma ameaça ao estatuto que o álbum ganhou desde a sua edição. Aparte vozes isoladas como a de Wynton Marsalis, que o renega mais por questões de taxinomia ("o que quer que seja, não é jazz"), "Bitches Brew" é um álbum consensual, um monumento que continua a distinguir-se, tão impressionante como sempre, no centro da história da música do século XX. Ora, a história da crise de meia-idade contada por Jack DeJohnette não é afinal qualquer "ameaça".
O contrabaixista Dave Holland desenvolve na "Uncut" o raciocínio do então companheiro de banda: "Miles estava naquela altura no início dos 40, mas parecia mais novo. [...] Tenho a impressão de que achava deprimente tocar para audiências nos seus 40 e 50. Não queria desaparecer nos livros de história. Queria ser relevante novamente". Guiado pela mulher de então, a furiosa e magnífica Betty Davis, autora de um par de álbuns indispensáveis, e entusiasmado com o que a jovem geração psicadélica fazia na soul, no funk e no rock'n'roll, o quarentão Miles sintetizou o presente de forma inescapável e, no processo, deu um impulso inestimável à criação do futuro. A influência de "Bitches Brew" alastrou e, geração após geração, continuámos a senti-lo presente.
À época, os efeitos foram imediatos. Os próprios músicos participantes nas sessões, inicialmente desdenhosos da contaminação do jazz pelo rock, prosseguiram no trilho aberto por Miles: o pianista Josef "Joe" Zawinul e o saxofonista Wayne Shorter formaram os fusionistas Weather Report, e o guitarrista John McLaughlin fundou a banda de jazz-rock Mahavishnu Orchestra. Sly Stone, uma das inspirações de Miles na sua viragem para os instrumentos eléctricos, seria por sua vez influenciado pela construção musical caleidoscópica de "Bitches Brew" e montaria no seu estúdio caseiro, recorrendo a milhentas sessões com os mais diversos músicos, o seminal "There's A Riot Going On", álbum de funk minimal, dilacerado e alienígena. No futuro, de resto, tais lições viriam a ser aproveitadas decisivamente no hip-hop. Exemplos diversificados: os A Tribe Called Quest (conferir o calor orgânico e os ritmos densos do imprescindível "Low End Theory", de 1991) ou a obra torrencial de Madlib, com destaque para os seus Yesterday New Quintet, banda jazz fictícia, de um sabor vintage progressista, que criou em 2001.
O mais impressionante, porém, é perceber como a obra de Miles Davis naquele período de transformação se manifestou noutros de uma forma tão global. Podemos descobrir algo dela no Tim Buckley de "Starsailor", onde as raízes folk frutificam em algo novo, precisamente pela abertura ao vanguardismo jazz.Temo-la como influência certa no trabalho dos ingleses Soft Machine, que abandonam de vez uma estrutura de canção a partir de 1970, com a edição de "Third", álbum de planagens instrumentais em regime livre (e mesmo Robert Wyatt, no subsequente trabalho a solo, exibe a marca de Miles).
Com ouvidos atentos e espírito aberto à descoberta, parece haver sempre algo para aproveitar naquela música. Bandas como os americanos Oneness Of Juju, formados em 1971, aproveitaram a capa e o ambiente do álbum para aprofundar a pesquisa por uma música americana que celebrasse as suas raízes africanas (no que foi acompanhada por muitas outras na época). Um monstro sagrado como o nigeriano Fela Kuti encontrou na luxúria rítmica e no calor eléctrico de "Bitches Brew" componente primordial no desenvolvimento do afrobeat. Isto enquanto na fria e industrial Alemanha os Can, nome fulcral do kraut rock germânico da década de 70, absorviam toda aquela riqueza sónica e adaptavam-na ao seu próprio contexto - mais mecânico, mais "branco" na vertente rock, mas igualmente experimentalista, como ouvimos em "Tago Mago" ou "Ege Bamyasi".
Três décadas depois, continuámos a ouvi-lo: na transformação dos Radiohead em "Kid A" e "Amnesiac", onde o existencialismo da banda começou a ganhar traços de maior abstracção; no tricô da electrónica ambiental de Four Tet; na nova soul de alguém como Common, cuja súmula da história da música negra tem no ambiente sónico do Miles eléctrico uma referência inescapável.
Em 1970, o quarentão Miles Davis queria sangue novo, queria ser novamente relevante. Em 2010, o quarentão "Bitches Brew" mantém-se jovem e desafiante como sempre. Essa é a marca do seu génio.