Um incontornável Salazar

Quarenta anos depois da sua morte, 15 anos depois da abertura ao público do seu arquivo, a primeira biografia académica de António de Oliveira Salazar está disponível ao público português. Ainda é cedo para saber se esta obra representará em Portugal o equivalente da biografia de Mussolini escrita por Renzo de Felice ou da de Hitler por Ian Kershaw. Apesar das suas 650 páginas de texto e 110 páginas de notas de rodapé, este livro está longe dos oito volumes e milhares de páginas da biografia incompleta composta por de Felice. Mas o italiano trabalhou mais de 30 anos na biografia do Duce, enquanto Filipe Ribeiro de Meneses "apenas" se dedicou sete anos ao retrato de Salazar. No entanto, este livro constitui um marco na história do século XX português. Por que razão demorou tanto tempo a ser produzida uma biografia académica de Salazar? Não é pelo desinteresse das editoras ou dos leitores. Basta entrar em qualquer livraria, onde inúmeras capas ostentam o rosto do ditador, para concluir que Salazar vende. Muitos livros de história sobre o Estado Novo têm Salazar no título, retratando a sociedade portuguesa apenas sob a perspectiva da sua relação com Salazar e, de certo modo, como sendo propriedade do ditador. Além disto, desde o fim da década de 90, a biografia conhece um certo fôlego em Portugal. O estudo das estruturas económicas e sociais privilegiado por muitos historiadores nos anos 70 e 80 passou de moda e o estudo do acontecimento e do indivíduo voltou ao centro do palco. Isto traz alguns problemas: algumas biografias esquecem, por vezes, que os indivíduos não se movem fora de constrangimentos sociais que moldam as suas práticas, as suas maneiras de pensar, de ver e de sentir.

Se Salazar vende e se a biografia está na moda, então porque é que este "Salazar" só veio ao lume em 2010? Salazar não é um biografado qualquer: manteve-se 40 anos no Governo, 36 dos quais, como presidente do Conselho. Concentrou o poder como poucos governantes. Ficava enclausurado no seu gabinete de trabalho, não passando dias a fio a caçar ou a pescar como Franco. Levar a cabo uma biografia de Salazar é, assim, abraçar a maior parte da história política, diplomática, económica e social de Portugal do final dos anos 20 ao fim dos anos 60. Nenhum doutorando poderia arriscar tal empreitada. Os mais ambiciosos ou temerários seriam rapidamente refreados por orientadores de tese. Os jovens adeptos da biografia dirigiram, assim, as suas atenções para personalidades ditas secundárias do regime: Pedro Teotónio Pereira, Armindo Monteiro ou Henrique Tenreiro, por exemplo. Esperar-se-ia que a biografia de Salazar fosse obra de investigadores mais experientes. Mas as lógicas de funcionamento da disciplina histórica em Portugal são pouco propícias a um trabalho dessa envergadura. As tarefas ligadas ao ensino e à administração da vida académica, e a participação de alguns historiadores noutras esferas (a política, sobretudo) impediram que, durante as décadas de 70 e 80, os investigadores pioneiros no estudo do Estado Novo se lançassem à obra. Mais recentemente, o facto de as políticas públicas ligadas à investigação estarem a originar, por um lado, um aumento notável do número de investigadores, mas, por outro, a precarização destes com contratos a prazo e em constante procura de financiamento para projectos de curta duração, tem tornado a escrita duma obra tão demorada quase impossível: num contexto em que o trabalho dos investigadores é quantificado por metas e médias, é quase um suicídio profissional dedicar mais de meia dúzia de anos à mesma obra. Não é por acaso que a primeira biografia académica de Salazar vem do estrangeiro, encomendada por uma editora nova-iorquina a um português cuja vida académica se desenvolveu, desde a tese de doutoramento, na Irlanda, e que ali usufrui de estabilidade profissional. O que distingue esta biografia académica das outras biografias não-académicas do ditador já existentes? A seriedade e o rigor. O autor fez um mergulho profundo nos arquivos, principalmente no de Salazar, leu e usou grande parte dos trabalhos já produzidos sobre o Estado Novo. O Salazar retratado na capa do livro sugere o tom e a natureza da biografia. É um Salazar, nos seus 60 anos, debruçado sobre papéis no seu gabinete de trabalho. Não é um Salazar jovem e sorridente que se encontra noutros livros que, voluntariamente ou não, humanizam e, de certo modo, banalizam o ditador. Meneses não multiplica as anedotas sobre a vida privada de Salazar e não pretende fazer revelações. Construiu uma narrativa cronológica do seu percurso e, sobretudo, da sua acção governativa, dando especial relevo ao seu papel na política externa (no contexto da guerra civil espanhola, da Segunda Guerra Mundial e das Guerras Coloniais) e às suas relações com os ministros e o Exército na procura constante de equilíbrio entre as forças que sustentavam o Estado Novo. A obra retrata o Salazar diplomata que ajuda os nacionalistas espanhóis no seu combate contra os republicanos, tenta manter Portugal fora da Segunda Guerra Mundial e enfrenta os EUA no contexto das guerras coloniais. Retrata também o Salazar político, maquiavélico, que chega ao Ministério das Finanças graças ao prestígio académico, abre o caminho para a Presidência do Conselho graças à imposição de ordem nas finanças, a uma sucessão de hábeis chantagens e ao apoio de Carmona. Um Salazar político que sabe durar, equilibrando durante quatro décadas as lutas de facções, contendo as ambições de uns e outros. A partir desta narrativa, Meneses posiciona-se sobre os principais debates em torno do Estado Novo e particularmente sobre o mais acerbo: o Estado Novo era fascista? Meneses realça as dificuldades de classificação de um regime que sobreviveu à queda do fascismo e do nazismo, que conviveu com democracias ocidentais no âmbito da NATO ou da EFTA e que conheceu um importante crescimento económico nos anos 60. O debate sobre a natureza fascista do regime tende a tornar monolítico um regime que não parou de evoluir (nos limites de um regime não-democrático, obviamente).

Meneses não cai nas numerosas armadilhas que frequentemente afectam a escrita biográfica. Com um estilo claro e incisivo, escreve como um historiador rigoroso, expondo factos, explicando contextos e tentando compreender as lógicas das acções do biografado. Não propõe à partida uma tese sobre Salazar, as suas intenções e o seu lugar na história de Portugal. O livro não é uma defesa do ditador escrita à pressa. Não é um requisitório. Não é, enfim, uma hagiografia à Franco Nogueira, com os seus seis volumes repletos de confidências inverificáveis feitas por um Salazar envelhecido e de ocultações dignas da propaganda do Estado Novo. Na conclusão, apenas, Meneses faz um balanço dos motivos que levaram Salazar a agarrar-se afincadamente ao poder e, com prudência, expõe a estratégia global que estaria na mente de Salazar. Até lá, Meneses segue Salazar passo a passo, protegendo-se assim de qualquer "ilusão biográfica". Estas compreensivas cautelas conduzem Meneses a não pôr em relevo fios condutores da acção de Salazar. E o autor é por vezes demasiado expedito na apresentação dos contextos. Assim, não aprofunda o contexto ideológico, político e social no qual se socializou o futuro ditador no fim do século XIX e no início do século XX (análise realizada recentemente por Valentim Alexandre). Não se debruça também sobre os motivos sociológicos que explicariam a vontade de poder de Salazar, nomeadamente a sua origem camponesa (não tão pobre como o próprio queria fazer crer), a sua provável vontade de elevação e até de revanchismo social. A célebre troca de telegramas em 1943 entre Salazar e Armindo Monteiro, embaixador de Portugal em Londres, na qual o presidente do Conselho se retrata como um "pobre homem de Santa Comba" troçado por um "grande senhor que vive em Londres", sugere esta leitura que Meneses preferiu não abordar. No entanto, pela sua seriedade, extensão e minúcia, esta biografia não tem por enquanto, e certamente por mais anos, rival. Ela será para qualquer leitor a referência sobre Salazar e um excelente ponto de partida para se investigar a história do Estado Novo. No futuro, novas biografias e interpretações aparecerão, sobretudo se as cartas enviadas por Salazar a ministros, funcionários, amigos ou políticos estrangeiros se tornarem disponíveis. No melhor dos casos, estas cartas foram conservadas pelos destinatários ou pelos familiares; no pior, terão sido destruídas (como aconteceu às cartas recebidas pelo Cardeal Cerejeira). Estes documentos, se um dia forem acessíveis, e não surgirem apenas em correspondências publicadas e criteriosamente seleccionadas para manter boas reputações e ocultar feitos menos gloriosos, oferecerão novas perspectivas sobre Salazar. Até lá, este Salazar de Filipe Ribeiro de Meneses será incontornável.

Victor Pereira é historiador e professor na Université de Pau et des Pays de l'Adour, França.

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