"É verdade...", está um homem franzino a dizer em cima do palco da Tenda dos Autores na Festa Literária Internacional de Paraty, "... a minha mulher [a cartoonista Aline Crumb] forçou-me a vir para o Brasil". Tem um chapéu e óculos redondos, está sempre a fazer fitas, é o cartoonista Robert Crumb a contar que lhe disseram antes de viajar que o Brasil era a "a terra das bundas grandes". Dá-se ares de amuado, vai dizendo para quem o está a entrevistar naquele palco que o seu trabalho talvez seja interessante mas que a sua personalidade é entediante. "Não sei porque é que as pessoas me colocam nessa situação, eu sou chato, e andam por aí esses fotógrafos, é demasiado desconfortável".
Depois de o cantor e compositor Lou Reed, convidado-vedeta da 8ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que decorreu de 4 a 8 de Agosto no Brasil, ter cancelado a sua participação alegando problemas pessoais, Robert Crumb transformou-se na vedeta de serviço. Andavam pela festa literária de Paraty Isabel Allende, que chegou de avião com o marido, William C. Gordon, escritor de policiais, mas também Salman Rushdie a caminhar pelo empedrado da cidade com o filho, a quem dedicou o livro que ali lançou em estreia mundial. Os historiadores Robert Darnton e Peter Burke com o CEO do grupo editorial Penguin, John Makinson, a discutir o passado e o futuro do livro. A vistosa escritora cubana Wendy Guerra com as pernas à mostra nos seus shorts (curtos, curtos) a dançar pelas festas que todas as noites florescem em Paraty. A escritora iraniana Azar Nafisi, que escreveu "Lolita em Teerão", a atirar-se com unhas e dentes a Ahmadinejad e a Lula da Silva defendendo Sakineh Ashtiani, a iraniana condenada à morte por suposto adultério. E até uma escritora premiada, Pauline Melville, que em tempos idos foi quase assassinada por um "serial killer" (na Flip ela assegurou que não ficou traumatizada). Havia tanto por onde pegar... mas Robert Crumb era assim uma espécie de fruto proibido (ele que acabou de publicar o Génesis em BD).
Na conferência de imprensa (no Brasil chamam-lhe colectiva), Crumb e Shelton, dois hippies com as memórias dos anos 60 um pouco perturbadas pelo excesso de LSD, apareceram com as esposas, que quase falaram mais do que eles. No final, deram ordens para não serem perturbados pelos fotógrafos no regresso à pousada onde estavam hospedados. Ora, ora. Dito e feito. Máquinas apontadas e o casal Crumb foi captado pelas lentes dos fotógrafos a fazer caretas e aquele gesto, obsceno, de dedo em riste.
Caminho percorrido até à pousada de Paraty e eis que o jornalista brasileiro Bruno Dorigatti, do "site" Saraiva Conteúdo, se aproximou de Crumb e lhe disse: "Com licença, poderia lhe dar estes vinis?". Eram LP com música de Pixinguinha, Altamiro Carrilho, Canhoto, Noel Rosa, Jacob do Bandolim e Época de Ouro, Aracy de Almeida, Paulo Moura, e ainda 78 rotações com música do flautista Altamiro Carrilho e choro e baião de Canhoto. Crumb conhecia Pixinguinha e Lupércio Miranda e mostrou-se curioso em relação aos outros. Na entrevista exclusiva que depois foi publicada também no jornal "O Estado de São Paulo", Dorigatti escreve: Crumb "topou bater um papo, onde falou sobre as músicas que ouvia em casa, quando criança, no rádio da mãe, como conheceu essas velhas músicas nos antigos filmes do início século e como era difícil achar esse som nos anos 50, logo após a explosão do rock".
Aos 67 anos, o recluso autor que criou a personagem Fritz, o gato, conhecido por fugir a sete pés dos jornalistas, ficou 40 minutos a falar com o rapaz que lhe ofereceu os discos. Isto aconteceria em algum outro lugar? Não. Na Festa Literária Internacional de Paraty acontecem coisas do outro mundo.
"A Festa tucanou?"
Mas este ano houve polémica. O escritor brasileiro Marcelino Freire, que foi a todas as edições da festa, considerava-a "uma das farras mais animadas do país", aquela que "colocava a literatura nas ruas": "O mesmo cara chato a quem você assiste numa palestra à tarde, pode encontrá-lo à noite, tropeçando, bêbado, pelas esquinas bêbadas do local. Soltando os bofes em alguma sacada nobre, colonial", escreveu num artigo que fez no ano passado para a "Folha de São Paulo".
Este ano, Marcelino Freire faltou. Não estava doente, não tinha compromissos inadiáveis, nem nada que se parecesse. Através do Twitter perguntou ao mundo "A Festa tucanou [elitizou-se]?", disse que não tinha saco para tantos sociólogos a falarem sobre Gilberto Freyre, o homenageado, nem para a conferência de abertura do ex-Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
Freire passou em revista a lista de autores brasileiros que participavam este ano na festa e percebeu que só um nunca tinha participado antes (Carola Saavedra). Os jornais brasileiros foram investigar. "O Globo" fez uma lista de todos os escritores brasileiros que nunca participaram. Soube que uns recusaram (como Paulo Coelho nesta edição) e outros nunca foram convidados.
Flávio Moura (que foi jornalista) é o curador da Festa desde Dezembro de 2007. Num artigo de opinião no jornal "O Estado de São Paulo", explicou que a Flip não oferece cachet aos escritores e que "a persuasão tem de se dar por outras vias - e para isso a lista de convidados das edições anteriores costuma ser atractivo poderoso."
Os escritores estrangeiros costumam sair da FLIP agradecidos. São eles quem melhor vende a festa aos colegas. Tudo indica que este ano a história se repita. O escritor William Boyd (autor de "A Praia de Brazaville"), que já esteve em muitos festivais literários, afirmou que nenhum se compara à FLIP. Além de Paraty ser uma cidade magnífica que permite que se concentrem todas as actividades literárias, "como se as ruas tivessem sido feitas para o festival, tem muita classe e é muito bem organizado", considerou. Nunca lhe tinham dado um crachá de participante. Aqui teve um e, tal como os outros autores, foi tratado com todas as mordomias.
As mordomias podem ser coisas simples como a mudança de quarto de Gay Talese no ano passado (no que lhe foi atribuído não havia espaço para todas as suas roupas). Mas como não só de literatura se vive em Paraty, há sempre o tradicional almoço de boas vindas aos autores na Pousada da Marquesa. Este ano deliciaram-se com grão de bico, camarões e doce de abóbora. Também se organizam passeios de barco e mergulho: num desses passeios, Wendy Guerra, que em Cuba não pode andar de lancha, pôs as mãos no volante e quase se espatifou com os escritores que viajavam com ela. Todos os anos o príncipe Dom João de Orleans e Bragança dá um almoço no seu jardim regado pelas famosas caipirinhas de maracujá e rola sempre um clima.
Muitos dos escritores viajam com a família. Este ano, o escritor irlândes Colum McCann levou a filha Isabella, de 13 anos, que joga futebol no Gotham Girls FC, em Nova Iorque, e conseguiu que em Paraty ela treinasse num campo improvisado.
A saga dos bilhetes
É por causa de Liz Calder, 72 anos, que trabalhou décadas na editora Bloomsbury, que a FLIP existe desde 2003. Tudo começou em 1992 quando ela conversava com o arquitecto Mauro Munhoz (hoje director geral do evento e presidente da Associação Casa Azul, entidade que organiza a FLIP) e tiveram a ideia de fazer uma festa literária inspirada no Festival britânico Hay-on-Wye.
Este ano, a FLIP teve um orçamento de 6,3 milhões de reais (2,8 milhões de euros); 1,3 milhões de reais (580 mil euros) foram dados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, o patrocinador oficial foi o Itaú Unibanco. Participantes: um total de 147 autores, 21 deles estrangeiros.
O local faz toda a diferença: tudo em Paraty (ou talvez seja da pinga e da cachaça) lembra o paraíso. Lá esquecemos as fortes picadas dos mosquitos, os preços exorbitantes cobrados por esses dias nas pousadas, as longas filas de espera nos restaurantes, a música infernal ao vivo, bar sim, bar não, os gritos dos bêbados que se prolongam noite fora quando tropeçam nas pedras do centro histórico de Paraty. Entre 15 a 20 mil pessoas estiveram este ano na festa (no ano passado passaram por lá 25 mil), apesar de desde 2008 o evento ser transmitido ao vivo pela Internet. A mistura da fina flor da intelectualidade e dos vips (actores de novela, apresentadores de televisão, etc) e milionários brasileiros com os habitantes de Paraty e visitantes da festa (como as estátuas vivas que ali desaguam por estes dias - há um Jack Sparrow, a personagem de "Piratas das Caraíbas", e vendedores de artesanato, quadros, jóias, literatura de cordel) é explosiva. O director da Biblioteca da Universidade de Harvard, Robert Dartnon, ficou fascinado com aquela cidade do século XVIII quase congelada no tempo, mas também com toda a animação na praça principal de Paraty. Havia livros pendurados em árvores. As crianças abrem-nos como "se se tratassem de frutas maravilhosas à sua disposição", comentou.
Conta-se que, quando foi à FLIP, o sempre sisudo prémio Nobel sul-africano J. M. Coetzee esboçou um "sorriso guloso" ao comprar "pé de moleque" num daqueles carrinhos de mão de madeira que, rua acima, rua abaixo, são empurrados por jovens que vendem doces caseiros. Que o escritor Hanif Kureishi, nesse mesmo ano, abancou numa mesa do principal bar de Paraty e a transformou num escritório onde, escreveu Ubiratan Brasil no "Estado de São Paulo", atendia ao final da tarde.
É por causa desta "empolgação pelo livro e pela literatura" que nos esquecemos do que foi preciso fazer para chegar até ali. Não basta querer ir à FLIP. É preciso gastar algum dinheiro e ter força de vontade para ultrapassar todas as etapas.
Marcar uma pousada é uma saga: estão sempre cheias e, em média, os preços cobrados rondam os mil euros pela estadia nos cinco dias do evento (claro que, se for a Pousada da Marquesa, o pacote FLIP pode chegar aos três mil). Depois é preciso reservar os bilhetes. É um desespero até para quem os compra no Brasil. As mesas mais disputadas esgotam nas primeiras horas. Um bilhete para as mesas literárias na Tenda dos Autores custa 40 reais (20 euros) e para a Tenda do Telão (onde as conferências são transmitidas num ecrã em tempo real) dez reais (cinco euros). São 19 mesas, façam as contas.
Mas quando chega finalmente o dia e se desce no centro histórico daquela cidade brasileira, depois de percorrer dentro de uma carrinha, e numa estrada cheia de curvas, os 235 quilómetros que vão do Rio de Janeiro até Paraty, respira-se fundo. Sabemos que a partir dali, por cinco dias, vamos viver a literatura de uma forma inesquecível.