Eels: Música para ser um homem melhor

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No dia anterior à entrevista Mark Everett tinha sido confundido com um terrorista e brevemente detido pelas autoridades inglesas

"Uma das vantagens de ser um cantor rock é poder ficar num bom quarto de hotel", diz o cantor rock, apropriadamente sentado num belíssimo quarto de hotel de cinco estrelas junto ao Hyde Park.

À porta do edifício, árabes saem de Rolls Royce vintage e são recebidos de braços abertos por britânicos enfarpelados em Armanis (ou derivados) da cabeça aos pés. Nos sofás da entrada, mulheres bem postas passeiam os dedos pelos colares antes de porem papéis à frente de homens bem penteados que retiram canetas reluzentes do bolso. Algures numa mesa uma senhora esquece-se de um gancho para o cabelo. Pensamos em ficar com ele, mas depois alertamo-la para o esquecimento. Ela agradece muito, que lhe é uma jóia muito querida, agradece com a polidez caricatural dos britânicos enquanto disfarça um certo ar de nojo perante a indumentária do benfeitor.

Isto não é rock'n'roll e, mesmo que fosse, não era o mundo de Mark Everett, o líder dos Eels. Ele está aqui apenas e só para receber jornalistas de todas as partes do mundo e assim promover "Tomorrow Morning", o terceiro disco de uma trilogia começada com "Hombre Lobo" e seguida com "End Times". O disco só sai dentro de dez dias, mas já se pode adiantar que é provavelmente o melhor dos três - e o melhor disco dos Eels em muito tempo.

Sendo Mark Everett quem é, as coisas não podem correr bem. Ele pode até ter um belo e caro quarto à sua disposição, mas isso não altera a percepção que o mundo tem sobre ele.

No dia anterior à nossa visita, tinha sido detido pelas autoridades inglesas. "Foi mesmo ali", diz ele, apontando para um lugar vago no Hyde Park. "Eu estava simplesmente a passear e eles vieram ter comigo e começaram a fazer-me uma data de perguntas. Só me libertaram quando eu lhes mostrei a chave do quarto do hotel e foram verificar que eu estava mesmo aqui registado. Depois explicaram-me que andavam à procura de um terrorista parecido comigo".

O incidente levou a uma já célebre declaração de Everett, em que dizia que nem todos os que têm barba são terroristas, alguns "just want to rock out".

Essa é a primeira conclusão que se pode tirar do caso. A segunda é que, pelos vistos, os terroristas usam barbas compridas mas não frequentam hotéis caros. (Já imaginaram alguém poderoso e perigoso a frequentar um hotel caro?) E a terceira é que nada disto é estranho tratando-se de Mark Everett: o homem tem uma nuvem cinzenta a pairar sobre a sua cabeça desde que nasceu.

Surpresa, isto afinal é bom

O primeiro encontro com ele confirma essa impressão. Estamos na sala do quarto de hotel, na companhia do agente, a ver o Mundial, quando E surge do quarto onde atende os clientes, seja cara-a-cara, seja por telefone. Ele surge, calças apertadas e desbotadas enfiadas em botas de lenhador, camisola interior com suspensórios, barba enorme, óculos idem, boné na cabeça, e antes de dizer "bom dia" já lançou "Este jornalista italiano era um idiota".

"Ai sim?", pergunta o agente, "então porquê?".

"Acreditas que ele pensou que, quando eu canto 'My baby loves me' [na canção com o mesmo nome], estava literalmente a referir-me a um bebé?"

O agente ri-se. Nós ficamos calados, só um ligeiro sorriso.

"Não consigo perceber como é que um jornalista pode interpretar de forma tão literal", continua ele.

"Talvez não seja bom a inglês", diz o agente.

"Se ele soubesse ler, não seria jornalista, não é?", arriscamos.

Ele grunhe. Não, é um sorriso.

"Espere só para ver as minhas interpretações das suas letras".

Ele grunhe ainda mais. Não, é um riso.

"Nos últimos tempos andei a reflectir sobre o que se passava comigo", diz E, já no cadeirão do seu quarto com vista para o Hyde Park. "E isso acabou por tornar-se um conceito". Fala rápido, não toma muito tempo para reflectir, mas, quando toma, isso cria aquele tipo de silêncio que vulgarmente se toma por incomodativo.

"A ideia é que a felicidade pode ser uma escolha e, se se fizer essa escolha, e se se tiver alguma sorte, os acasos talvez nos levem à felicidade". Prossegue: "No fundo, o conceito é uma coisa fora do comum no rock: um tipo tornar-se um homem melhor. E talvez com isso venha uma mulher". Faz uma pausa e acrescenta: "Acho que é um pouco nobre tentar-se ser um homem melhor".

Uma qualquer força estranha impede-nos de rebolar no chão a rir. Ponderamos por um segundo e concluímos que ele está a falar a sério. Então arriscamos perguntar-lhe se há algo de judaico-cristão nesse tão toscamente verbalizado "ser um homem melhor". Algum tipo de culpa, contas a pagar, etc.

"Não, não sinto nenhum tipo de culpa, pelo menos não muitas vezes. Quando a sinto, sei que deve haver uma razão para ela".

E fim de história: o homem não quer ser excessivamente escrutinado e está no seu direito. "Acho que já tentei dizer vezes suficientes no passado que a vida não é assim tão má, e agora estou a dizê-lo outra vez, só que de forma mais aberta".

Esse é, diga-se, o som de "Tomorrow Morning": um ligeiro véu de melancolia a cobrir refrões que resplandecem (isto para usar uma imagem ridícula.)

"Essa é a ideia", diz ele, ao ouvir a imagem ridícula. "É a grande reviravolta que há em cada canção: surpresa, isto afinal é bom", conclui. Mas há coisas que não mudam e, depois deste momento de unidade com o mundo, E, como um Larry David rural, resmunga: "Não percebo como é que o italiano achou que era mesmo um bebé. Se fosse mesmo um bebé seria repugnante".

Corrida contra o tempo

Eis o lado obsessivo de Mark Everett, uma faceta que ele assume, embora não às claras. Vê-a como "uma ética de trabalho muito forte". "Muitas pessoas não conseguem acabar o que fazem", explica. "Eu acabo coisas a mais. Se decido fazer uma coisa, faço-a até ao fim. Se decido fazer três discos de seguida, faço". Aqui ele faz uma das suas pausas, que surgem sempre de forma brusca: está a dizer uma coisa com uma rapidez notável e de repente pára, sem que um tipo saiba se parou de vez ou só para ganhar balanço. Lá se aproveita a pausa para tentar olhar pelo buraco da fechadura da vida privada do homem.

"Se isso me retira da vida normal muitas vezes? A resposta é simples: suga-me a vida por completo. É preciso estar muito concentrado, não pensar em mais nada se não no que se está a fazer e aonde se quer chegar. Não há mais nada, não pode haver mais nada".

Tal como a culpa tem uma razão no mundo de Everett, a pressa também. Ele anda assumidamente "a correr contra o relógio", por causa da "história" (expressão dele) do pai: "Estou a chegar à idade com que o meu pai morreu e tenho cada vez mais consciência disso". O tiquetaque do tempo é duplo: a sombra da morte do pai, numa família em que a morte é visita constante.

Terá sido esse tiquetaque a alimentar a ambição de fazer uma trilogia num só ano. "Hombre Lobo" (2009) era "sobre o desejo", "End Times" (2009) "sobre a perda de amor", e agora "Tomorrow Morning" é "sobre um novo começo". Uma espécie de ciclo da vida, que Everett explica de forma sucinta: "O desejo leva-nos a alguma coisa, depois pensamos que tudo acabou, e a seguir sentimos que amanhã teremos outra hipótese".

De acordo com o plano inicial, E queria "acabar com um novo começo", pelo que tinha "de começar por pôr a sementinha". "Foi muito divertido ser um lobo", diz. Isto é: ser um predador sexual, tal como em "Hombre Lobo". Se isto parece conversa de pessoa normal, Everett faz questão de nos lembrar logo a seguir, que não é: "Mais divertido só fazer de conta que sou um terrorista".

"Tomorrow Morning" é o tipo de disco que invariavelmente leva os críticos a usarem expressões como "camadas". Pequenas melodias vão-se sobrepondo, criando ambientes, até que, no refrão, a canção abre-se de forma inesperada, como aquelas flores nos documentários sobre a natureza que aceleram a imagem para mostrar a passagem do tempo.

Mas mais do que em sobrepor camadas (ou texturas), E estava interessado no erro: "Queríamos aproveitar os erros, por isso samplámos tudo desde o primeiro momento. O erro pode ser muito interessante e usámo-los o mais que pudemos". Também lhe interessam a diversidade de géneros que o disco abarca, e a subversão que aplica a cada género. "Nenhum músico quer pertencer a um só género", diz, visivelmente afastado da realidade. "Não quero que uma canção gospel minha [que há neste disco] seja um gospel clássico [não é]. Tem de soar a 2010 e tem de ser a minha versão".

O exemplo Tom Waits

Há que reconhecer que ele é um desses tipos: quando se ouve uma canção dele, sabe-se que é dele. Talvez o único elemento comum seja a voz, mas lá que marcou o seu pequeno território, marcou. Ou não: "Não sei se a minha voz autoral é imediatamente identificável. Por um lado, é porreiro termos um nicho reconhecível, por outro isso é tremendamente limitativo. Deixo essa questão para os ouvintes".

Everett também não tem muita certeza de ter o seu lugar numa espécie de "middleground", algures entre o imenso reconhecimento da estreia e a obscuridade. "Quando os Eels começaram", lembra, "estávamos o tempo todo na MTV". A experiência foi "doentia", mas teve uma vantagem: "Deu para ver tudo o que detestava". E acerca desse "middleground", só tem uma coisa a dizer: "O Neil Young dizia que no lixo se encontram coisas muito mais interessantes".

Young é um dos heróis deste tipo - que sabe que nunca será tão grande como os que admira e se dá por contente por ter vindo "parar aqui", a este lugar que "alguns dos tipos que sempre foram heróis" são hoje seus amigos. Como Tom Waits.

Isso talvez explique um lado menos inquietado que parece sobrevir em Everett. É um tipo com objectivos e que, olhando para o futuro, diz: "Não me parece muito digno ter 55 anos e pôr tipos de 20 anos a gritar".

Será que ele pede conselhos ao seu amigo Tom Waits sobre como envelhecer com classe?

"Peço, claro. Mas não é preciso: basta olhar para o que ele fez. É um exemplo".

É improvável, mas quem sabe?, talvez dentro de 30 ou 40 anos estejamos a olhar para este homem como olhamos hoje para Waits.

O Ípsilon viajou a convite da Popstock

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