Da África do Sul à contracosta, com Ruy Duarte de Carvalho

O escritor e cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho vai à frente nesta viagem redonda, de Joanesburgo a Joanesburgo, da qual há de sair um livro, e possivelmente também um filme. A África do Sul em 13 dias e seis mil quilómetros, com cinco pessoas dentro de um carro, e o passado pré e pós-colonial a infiltrar-se no presente, como um palimpsesto.

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Ruy Duarte de Carvalho em 2007 Nuno Ferreira Santos

Desde cedo até ao fim da tarde: mãos rotativas ao volante, pneus a rasgar as boas estradas sul-africanas, olhos maravilhados e exaustos de reter as paisagens a cada solidão um monte ou deserto preferido -e dentro do carro uma voz que se ouve mais do que as outras.

Antes da África do Sul, tinha havido um cozido à portuguesa na Baixa de Maputo, em Setembro. Decorria, no Dockanema, "E agora... vamos fazer mais como?", ciclo dedicado ao escritor e cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho, que acumula admiradores no mundo lusófono, e a viagem, patrocinada pelo Instituto Camões, começava a ganhar forma. Uma viagem espraiando-se por mudanças de relevo, animais, campos de pastagem, cores e brilhos que vão ocorrendo na paisagem: a sua adaptação morfológica ao clima e a metafísica que nos faz empatizar com ela. Uma viagem atenta à história das várias expansões e colonizações do país. Que fosse a origem, com base nos materiais recolhidos e nas conversas semeadas, do livro "As Paisagens Efémeras, Atas de Santa Helena", de Ruy Duarte de Carvalho, e também de um possível filme.

Ou não estivesse a viagem sempre inscrita em tudo o que faz.

Mas há outras ambições nesta viagem: problematizar o processo de ocidentalização do mundo e os seus efeitos, focalizados no espaço atlântico.

Que relações existiram entre europeus e populações locais? Que fenómenos desencadearam? Isto tudo pelo gosto de entrelaçar tempos. De ver naquilo que é já passado, vestígio só, matéria de conjectura histórica.

De encontrar os traços do antecedente na imagem presente e nas projecções do futuro.

Então lá estamos nós dentro de um carro dias a fio. E acabamos por aprender qualquer coisa da complexidade deste país africano que está nas bocas do mundo por causa do futebol e da persistente violência. Conclusão: a África do Sul é um país bizarro.

O Ruy está contente e só se cala esporadicamente para fixar um pormenor da paisagem e depois dizer coisas como "na vida ou se escreve ou se vive", citando Pirandello, ele que faz tão bem as duas coisas. Traz leituras e considerações, enche o espaço de referências e pensamento, de paisagens efémeras e propícias, de figuras da História. Conta episódios da vida e anedotas também. Fala no feminino quando conversa com as raparigas.

"É uma narrativa sólida e quente que transforma a paisagem da África do Sul em nostalgia", há-de escrever um de nós.

Angola, aonde regressa sempre apesar de agora viver em Swakopmund, na Namíbia, é tema recorrente e que nos liga naquela cumplicidade dos territórios do coração.

A comer uma pizza na barragem Gariepdan, abro o seu último livro, "A Terceira Metade", e tropeço nisto: "enrolados para quem não pára porque não pode, não quer ou não sabe, tal como nós estamos todos desde há muito ao corrente são os caminhos das voltas que a vida dá, como são os que no sono levam sempre aos mesmos sonhos recorrentes."

Brancos contra brancos, e contra negros

Pernoitamos em Vinburg. Uma cidadezinha de atmosfera "Twin Peaks" no interior do Free State onde os bóeres, brancos camponeses normalmente enormes, vivem e são senhores. O bóer é uma produção da África Austral, havemos de saber no curso da viagem. Na "guesthouse", um bancário bêbado pergunta-nos, meio em inglês, meio em afrikaans, crioulização da sua língua materna holandesa, se estamos a falar russo. Ao pequenoalmoço, a serviçal roliça diz que vai casar em Março e está muito feliz. "A minha mãe diz: 'Vai sempre atrás do teu marido'". E ela foi, e agora serve salsichas com ovos e carne agridoce a endinheirados rurais.

A casa é um mausoléu das guerras anglo-bóeres, mas gloriosa para os bóeres foi só a primeira, porque a de 1903 levou à anexação das suas repúblicas do Transvaal e do Free State de Orange à colónia britânica do Cabo, ao que parece com a ajuda das armas europeias da revolução industrial. Os bóeres não gostavam da autocracia britânica, que degenerava as tradições holandesas e não os protegia dos ataques dos Xhosa. Já tinham fundado a república de Natália depois da batalha de Blood River (da qual vimos a pintura), em 1838, onde derrotaram Dingane, um dos chefes zulu, Haveriam de perdê-la para os ingleses, com as suas plantações de cana-de-açúcar.

O que interessa é que já havia uma sociedade colonial, e o país estava ocupado por brancos. Os bóeres declaram a República da África do Sul, com Pretória como capital, em 1854.

Em 1910, as províncias fundavam a União Sul-Africana, que duraria até ao fim do apartheid, em 1994.

Ouvimos ainda a história de Shaka Zulu. Diz-se que era gay. Antes de ser assassinado, em 1928, com muita estratégia militar e dureza combativa, fez da etnia zulu um império que ensombrou os desígnios coloniais britânicos.

A expansão do estado zulu e o desarranjo social provocado pelo tráfico de escravos a partir do sul de Moçambique, além de secas e fomes entre o fim do século XVIII e o princípio do século XIX, estão na origem de movimentações massivas de populações que convulsionaram a África Austral.

A maior quezília entre britânicos e holandeses tinha a ver com as minas de diamantes encontradas naquele território. Na pequena localidade de Kimberley, visitamos o turístico Big Hole, uma rocha diamantífera cavada para extrair o famoso kimberlito, composto por minerais de alta pressão formados a 300 quilómetros de profundidade.

Ali se fez uma espécie de reprodução da vida mineira com barzinhos e lojas. Explicações sobre diamantes, ali descobertos em 1867 em brincadeiras de crianças. O homem por trás da mina é Cecil John Rhodes, co-fundador da poderosa companhia De Beers. Abandonou a fazenda de algodão em 1871 para gerir as minas de Kimberley, e chegou a membro do Parlamento, com políticas que serviram tanto o Império britânico como os interesses dos mineiros.

De expansões e opressões

A história da África do Sul é uma história de disputas e de ocupações, sangue e mais sangue, tudo isto não há muito tempo atrás. "Demorou muito até chegar aqui, a este último canto do continente, e mesmo da terra toda, a que se foram alargando várias correntes migratórias, gente a vir de fora para ocupar e controlar esses territórios segundo os seus interesses, quer dizer os recursos que aqui lhes cativavam, e perturbar assim, ou a submeter ou a dizimar os que já cá se encontravam." Vem em "A Terceira Metade", mas podia ser o Ruy a falar connosco porque ele escreve como fala e fala como escreve, com reticências e assertividade, sem isto ser contraditório.

Com uma costa imensa, a África do Sul é apetitosa para a expansão ocidental mas a sua ocupação é tardia: deserto, falta de condições para o comércio e práticas esclavagistas. "Quando foi finalmente objecto dessa vaga ocidentalizante, ofereceu o espectáculo de um vasto território de fronteira a ser em simultâneo acometido pela expansão dos brancos e pela dos bantos", que não gostam de ser lembrados que também foram invasores.

Os bantos desceram desde a África Oriental, iniciando a sua interminável expansão, desencadeada pela explosão demográfica que a banana, trazida pelos malaios que colonizaram Madagáscar, provocou. Ironias e conjurações da história. Ocupações contemporâneas que remetem para os problemas actuais: a terra é de todos, cada um foi chegando com os seus motivos e agora todos têm de aprender a conviver, às vezes numa paz podre, às vezes numa guerra infinita.

As várias populações dentro do país não prosperam todas ao mesmo tempo e isto provoca muitas

dependências e explorações. Ruy explica nas notas de viagem: "Uns grupos, e certos indivíduos dentro da cada grupo, mesmo se só à escala da família, começam a prosperar primeiro, muito antes dos outros e sempre e ainda senão à custa de outros, a nível da dinâmica interna e da relação externa.... e os outros, para virem a prosperar também, há de ser de uma maneira ou de outra só a reboque desses, ainda e sempre.... e tem uns que parece surpreenderem-se, e se insurgem e denunciam... mas então não é isso que é próprio do sistema que todos afinal aceitam e em que se integram e é nele que se exprimem a partir do lugar que ocupam na luta tentando ganhar pontos, conquistas, dentro do sistema?" No carro enumeram-se tantas etnias e ramificações dos povos sangue no sangue no sangue -que já vamos todos baralhados. Os hotentotes, que são vermelhos e tinham avós pastores -com a instalação dos holandeses na baía da montanha que deu origem à Cidade do Cabo, para servir de apoio às rotas comerciais da Índia, tiveram de mudar de vida. Os San, bosquímanos, franzinos, então caçadores e recolectores, que não gostaram nada da instalação dos bóers: ao trazerem o gado, acabaram-lhes com a caça.

Apesar de a África do Sul ser esse "melting-pot" de "raças" muito fenotipicamente marcadas, onde podemos resgatar os vestígios da ocupação humana de idades recuadas, está em curso a produção de um mestiço universal, genética e culturalmente. "O pleno mestiço do devir universal, afeiçoado pelo modelo branco expandido e imposto à escala do mundo". O que sobreviver a isto será apenas folclore, porque a diferença irá ser extinta, digerida e consumida. Nisso há "desagrado, agravo, pela diferença que vai ser, já está a ser cultivada e que, além de cristalizada, ou por isso mesmo, é kitsch. Não é?!" Mais um cigarro e a viagem prossegue.

O Sul do Sul

Depois das paisagens áridas do Karoo profundo, onde os pensamentos aquecem, aproxima-se o mar. Vir do interior para a costa é desaguar. Port Elizabeth tem baleias e golfinhos ao largo e zonas de comércio com ar de Disneylândia. Segue-se um grande troço de costa com vegetação mediterrânica até se entrar na província do Cabo da Boa Esperança. Directos ao extremo mais a Sul de África, onde se misturam os oceanos Índico e Atlântico. Perguntamos "where is Cabo das Agulhas?", mas ninguém entende, até que percebem que queremos dizer Agalhas, o lugar onde as bússolas se desnorteavam. A anglicização dda língua faz parte do que nos traz aqui.

Terra de revelações, de pedir desejos e afogar mágoas, "uma visão extrema e abismal de inapreensíveis oceanos", é o que o poeta Ruy escreve no mesmo livro.

No dia seguinte a um jantar num restaurante de portugueses fugidos das ex-colónias, continuamos caminho.

A Cidade do Cabo surge emoldurada pela Montanha com nome de Mesa e pela outra, da Cabeça de Leão.

Num hotel para "backpackers" da Long Street, uma longa conversa fica filmada como base do movimento neo-animista que o Ruy quer criar com a nossa ajuda. Para isso temos matéria de reflexão e acção. Eis algumas pistas: o Império contém a sua própria crítica. É preciso criar ilhas de resistência, e outros paradigmas que denunciem, critiquem e ofereçam alternativas ao paradigma humanista e ao progresso. É preciso dar voz a narrativas silenciadas ou ignoradas por outras dominantes. Temos de procurar teses, elites, utopias, literatura e imagens para dizer várias vezes a mesma coisa até esta se tornar simples.

Tudo se joga na diferença entre a economia do equilíbrio e a economia do crescimento, que é obrigada a crescer sempre, porque se não cresce colapsa, como está a acontecer agora.

Comemos carne de caça e no bar um velho faz-nos hesitar: terá saído da guerra anglo-bóer ou do "Senhor do Anéis"? É um elfo com enormes cabelos e barbas brancas num corpo pequeno e magro, e dança como uma borboleta em frente ao trio de mulatos que toca jazz. O Cabo continua uma cidade de boa música e gente bizarra.

A alma da viagem

Subimos a costa com um cheirinho do Kalahari, o deserto que liga a África do Sul à Namíbia. Perto da costa, os vales imensos de castanho e verde, enormes fendas na profusão da natureza, e a sua violência própria. Ruy identifica phynbos, a vegetação característica deste lado atlântico (comum à Patagónia e ao Lago Vitória).

Springbok é zona de flores, mas falhámos por pouco o florir primaveril dos prados, e por isso o amarelotorrado cobre a pedra. Cheira a esteva.

Ficamos num albergue perto das montanhas. É propriedade do pai de uma velhota de olhos azul-british que nos recebe com o cabelo apanhado a descobrir as rugas, numa casa com um caniche e muitos retratos. Luhuna e Miguel sobem o monte para filmar mais um pôr-do-sol. Já são várias as cassetes com pôres-do-sol. Mas nunca se filme o sol de frente que a câmara pode estoirar, tal como os olhos podem cegar. O Ruy fica no lugar do braai (grelhador) a fumar cigarros com o seu ar vigilante de lobo do mar. Eu leio o "Disgrace", do Coetzee, no cimo de uma rocha. O jardineiro diz-me para ter cuidado com as cobras, que esta é a hora de dormirem.

Um bater de asas, um réptil que passa, uma brisa.

Ruy fala da sabedoria das idades.

"Que viagens poderão dizer-se 'réussies' [conseguidas]? Aquelas em que tudo 'corre bem', ou as outras, recheadas de imprevisto e de aventura?" Marta Mestre evoca a interioridade da viagem, o "sairmos de nós mesmos": "Em viagem descentras-te com mais intensidade, tornando tudo matéria que relacionamos com a nossa experiência e preconceito." Pergunto-lhe o que ficou da viagem à África do Sul. Pela acumulação de "veld", nome que se dá aos grandes espaços rurais, escreve ela: "Tratei de fazer o que tinha de fazer: dar lugar em tempo real ao tique crónico de dar sentido e continuar a garantir a vida suportável".

Ou, como escreve o Ruy, a permanente incomodidade física da alma. Foi muito tempo à conversa com o mais-velho.

A viagem no mapa, o país no chão

Uma última noite nas margens do rio Orange, em Upington (nome do primeiro-ministro da então colónia inglesa do Cabo), mais uma das muitas cidades de abastecimento agrícola que parecem a mais profunda América que eu nunca visitei.

Regressamos na imensa estrada até Joanesburgo, passando pelos 40 quilómetros do Soweto. A extracção do ouro para os bolsos do Estado e das empresas continua imparável. Subscrevemos a facilidade com que se faz turismo na África do Sul: estradas, serviços, comida, paz e tranquilidade, guardada a insegurança para as grandes cidades. O coração acumula simpatias e nenhum percalço, o bolso não sai muito desforrado.

"We can´t wait, let's go 2010!" gritam eufóricos os cartazes, com o cuidado de colocar caras negras, brancas e coloridas no país multiracial, a anunciar o Mundial. Esperança de que muita coisa mude. Não fosse a cartografia tão demarcada das "townships", onde subsiste um forte apartheid de negros pobres, com focos de indignação para receio dos ricos - e isto num país onde são assassinadas 50 pessoas por dia, com o presidente Zuma a ordenar à polícia: "atirar para matar" -, e o país de primeiro mundo estaria preparado para receber os turistas e as selecções.

Acabou a viagem e o escritor parece deprimido, não sai do quarto zulu.

Cada caranguejo irá para o seu buraco no dia seguinte: Maputo, Namíbia, Portugal e Brasil. Um jovem zimbabweano recolhe as beatas dos cigarros que fumamos juntos entre risos.

Numa viagem destas acabamos por ser todos indispensáveis, e isso resume bem uma ideia de harmonia, efémera, como tudo o que é interessante neste mundo. Como as paisagens.

No jardim leio Coetzee. Conta precisamente como as pessoas da África tribal emigraram para as cidades em busca de trabalho, estabelecendo-se num meio urbano novo e assombroso, que ele considera uma dádiva europeia a África. Diz que o mundo no qual nascemos é o nosso mundo, tudo o que há agora é, para esta geração, inquestionável. Conhecer a história de um lugar em profundidade, para ver o seu passado em palimpsesto por baixo do presente, é importante.

"Mas a história só tem vida se lhe derem um poiso na nossa consciência." Esta viagem foi esse lugar.

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