A regionalização, outra vez
No continente apenas existe uma região natural: o Algarve. Todas as outras serão artificiais
Parece que entre as propostas de revisão constitucional do PSD vai estar a eliminação da obrigatoriedade de um referendo para concretizar a regionalização, referendo imposto pelo Artigo 256º do actual texto. É mais um sinal do regresso do tema da regionalização à actualidade política, porventura reflexo da crescente importância dos autarcas nos dois principais partidos portugueses. Há cinco anos foi limitada a renovação dos mandatos dos autarcas, pelo que talvez alguns deles vejam na regionalização uma hipótese de se manterem activos na esfera política.
Mas não faço processo de intenções. Se há um renovado interesse pela regionalização, importa debater a ideia com racionalidade, como António Vitorino preconizou no Diário de Notícias de 12 de Julho. Votei contra a regionalização há 12 anos, mas admito mudar de opinião, se me convencerem com argumentos sérios.
Agora, como em 1998, não me preocupa qualquer ameaça da regionalização à coesão nacional. Somos um Estado-nação e um Estado unitário há quase 900 anos, com fronteiras estabilizadas há mais tempo do que qualquer outro país europeu e com um fortíssimo sentimento de identidade nacional. Os problemas que se levantam são outros.
Num ponto prévio não tenho dúvidas: com ou sem obrigatoriedade constitucional, seria um erro político de palmatória avançar com a regionalização dispensando uma consulta popular nacional, depois do resultado do referendo de 1998. Provocar sem legitimidade democrática plena uma mudança estrutural da nossa organização político-administrativa apenas serviria para a enfraquecer. Qualquer defensor inteligente da regionalização concordará ser indispensável um novo referendo.
Diz-se que o referendo de 1998 rejeitou a regionalização sobretudo por causa do mapa, que então previa oito regiões. O problema é que no continente apenas existe uma região natural: o Algarve ("reino de Portugal e dos Algarves"...). Todas as outras regiões serão artificiais, logo passíveis de críticas.
Propõe-se, agora, adoptar as cinco regiões a cargo das comissões de coordenação regional, as chamadas regiões-plano (embora ninguém saiba onde esteja o plano). Ora o grande e crescente desequilíbrio no território português está entre a faixa litoral, da fronteira norte até Setúbal, face a um interior cada vez mais desertificado. A população concentra-se no litoral, indo ao interior em férias ou fins-de-semana. Terá, assim, sentido comandar o interior a partir do litoral, como aconteceria, por exemplo, na região norte? Em contrapartida, parece hoje difícil constituir regiões com limites geográficos apenas no interior. É que já não existe ali massa crítica para sustentar regiões com alguma autonomia.
Depois, os adeptos da regionalização deverão provar que esta não irá criar mais uma "camada de Estado", num país onde há Estado a mais, coincidindo com Estado a menos nas funções básicas deste: justiça, segurança, autoridade democrática dos governantes, regulação económica e financeira (e não só - vejam-se as clínicas privadas ilegais que por aí existem). Fala-se muito em desburocratizar, mas há o risco de, pelo contrário, se criarem instâncias administrativas adicionais, com o correspondente aumento de funcionários e de despesa pública, para darem novas autorizações e licenças e assim complicarem ainda mais a vida dos cidadãos e das empresas. É muito consensual termos demasiados concelhos e freguesias, mas ainda não houve redução... Aí está um alerta.
Por isso não basta manifestar intenções de eliminar instâncias administrativas. É preciso que as coisas fiquem clarificadas de forma inequívoca. Daí que me pareça sensata a ideia de Rui Rio (um ex-adversário da regionalização) de que o eventual referendo se baseie numa lei antes votada na Assembleia da República, de maneira a que "as pessoas saibam exactamente o que estão a decidir" (PÚBLICO de 08/07/10).
Conviria ainda que os partidos e os políticos que defendem a regionalização e estiveram no poder nos últimos 12 anos nos expliquem porque não avançou significativamente a desconcentração administrativa. É que, depois de derrotada a regionalização no referendo de 1998, os políticos prometeram aquela desconcentração, mas pouco se fez. Jornalista (franciscosarsfieldcabral@gmail.com)