Caridade multimilionária
O objectivo é que os 400 mais ricos dos EUA dediquem metade das suas fortunas à caridade. Se for atingido, haverá pelo menos 600 mil milhões de dólares para distribuir. Quase três vezes a riqueza produzida em Portugal
Transmitir a fortuna já amealhada aos filhos e à restante família é a escolha óbvia dos mais ricos, mas o apelo lançado agora pelos donos das maiores fortunas dos Estados Unidos, Warren Buffett e o casal Gates, é bem diferente. O projecto The Giving Pledge (Compromisso de Dar) traduz-se num desafio lançado aos multimilionários norte-americanos para que doem pelo menos metade das suas fortunas para fins de caridade, ainda em vida ou depois da morte, assumindo desde já esse facto junto do grande público.
E para já, dos 70 a 80 nomes contactados pelos organizadores desta iniciativa lançada oficialmente em Junho, 40 responderam que sim ao desafio. Estes multimilionários incluem vários nomes conhecidos dentro e fora dos Estados Unidos, que acederam a escrever uma carta explicando as razões dessa escolha (as cartas foram divulgadas no site givingpledge.org). Exemplos? George Lucas, realizador da série Star Wars, Ted Turner, conhecido patrão dos media norte-americanos, ou o presidente da Câmara de Nova Iorque, Michael Bloomberg.
Outros menos famosos como Lorry Lockey, fundador da Business Wire (agência de distribuição de comunicados), juntaram-se à acção e também eles explicam de forma detalhada as razões dessa escolha: "Durante os piores anos da Depressão, os meus pais deram dinheiro, cerca de oito por cento do seu rendimento anual. Lembro-me de dizer à minha mãe que não nos podíamos dar a esse luxo, mas ela disse que tínhamos de partilhar com outros. Aprendi com ela a partilhar", explica Lockey na sua carta.
O novo projecto foi lançado oficialmente em Junho deste ano, com o objectivo de aumentar os montantes doados nos Estados Unidos com objectivos filantrópicos. A primeira fase é fazer um convite pessoal aos donos das 400 maiores fortunas dos Estados Unidos, listados todos os anos pela Forbes. Bill Gates e Warren Buffett encabeçam o ranking. Gates é o fundador da Microsoft e Buffett fez crescer a sua fortuna à custa de investimentos financeiros. Em 2006, comprometeu-se a doar 99 por cento do dinheiro para cinco fundações, incluindo a maior do mundo, a Gates Foundation (criada por Bill e Melinda Gates).
Nos últimos anos, a Gates Foundation dedicou anualmente cerca de três mil milhões de dólares para fins não lucrativos, na maioria programas de pesquisa na saúde mas também investimentos em educação. Um dos exemplos mais conhecidos é um programa de investigação desenvolvido em conjunto com a farmacêutica Novartis, para o desenvolvimento de medicamentos contra a malária em 24 países.
Se todos os 400 da lista responderem que sim, estima-se que pelo menos 600 mil milhões de dólares (456 mil milhões de euros) cheguem às mãos de organizações não lucrativas ligadas a várias áreas, incluindo a saúde, o combate contra a pobreza ou a educação.
Em causa está um valor que corresponde a quase três vezes a riqueza produzida em Portugal em 2009: no ano passado, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, o Produto Interno Bruto português foi de 164 mil milhões de euros.
O Giving Pledge começou a tomar forma há mais de um ano, por iniciativa dos Gates e de Buffett. O primeiro encontro de multimilionários realizou-se em Maio de 2009, em Nova Iorque, de uma forma meio clandestina (mas foi rapidamente divulgado pela imprensa) e foi presidido pelo patrono dos filantropos norte-americanos, David Rockefeller, agora com 95 anos.
Juntou à mesma mesa, na Rockefeller University, nomes como Oprah Winfrey, o presidente da Câmara de Nova Iorque Michael Bloomberg, o homem de negócios e filantropo George Soros.
O objectivo era desenhar uma estratégia para aumentar as doações dos mais ricos, numa altura de grande crise económica nos Estados Unidos. Seguiram-se outros encontros, mas só em 2010 é que o esquema ficou claramente definido e se consagrou num apelo formal aos mais ricos dos ricos. O próximo passo será estender este movimento para fora dos Estados Unidos, em nações como a Índia ou a China.
Até agora, Larry Ellison terá sido a maior surpresa neste grupo de grandes filantropos: co-fundador da Oracle, tornou-se conhecido por retirar uma doação de 115 milhões de dólares que tinha endereçado a Harvard, como protesto pela demissão de Lawrence H. Summers da presidência. Numa breve carta publicada no site GivingPledge, Ellison adianta que já tinha comprometido 95 por cento da sua fortuna a um fundo e que já doou centenas de milhões de dólares a acções de pesquisa médica e educação.
Cada milionário escolhe
"Até agora, tenho realizado estas doações em silêncio - porque acredito há muito tempo que as doações para caridade são um assunto pessoal e privado", escreve na sua carta o fundador da Oracle, um dos grandes gigantes mundiais de tecnologia e de comunicações. "Por que é que agora estou a tornar isto público? Porque Warren Buffett pediu-me pessoalmente para escrever esta carta para servir como exemplo e influenciar outros a darem. Espero que ele tenha razão."
Na verdade, ninguém conhece para já qual foi a quantia que os 40 grandes milionários norte-americanos se comprometeram a doar, até porque o dinheiro não é directamente entregue aos organizadores do Giving Pledge.
"O compromisso pede simplesmente às pessoas que dediquem a sua riqueza à filantropia. Não é um programa de doações - nenhum dinheiro será doado através deste esforço", esclarece uma das explicações que são transmitidas no site dedicado à iniciativa. Caberá a cada multimilionário escolher quem será abrangido pelos seus donativos e quem fica de fora.
Por outro lado, não se sabe qual a parte destes montantes que corresponde realmente a dinheiro novo ou se uma boa fatia já tinha sido investida em fundações. "Isto não significa que todo ou metade do dinheiro [de cada um dos multimilionários] já tenha sido doado, mas uma parte desta quantia será somada [como dinheiro novo]", admitiu Warren Buffett numa entrevista ao New York Times.
Stacy Palmer, directora da Chronicle of Philanthropy, em Washington DC, que cobre as organizações não lucrativas, tem também outras dúvidas sobre os efeitos reais deste projecto, na forma como conseguirá alterar as mentalidades dos grandes ricos norte-americanos. "Ficarei mais convencida de que isto é verdadeiramente transformador quando vir nomes na lista que não são os dos suspeitos do costume."
Mas mais do que juntar uma grande quantia de dinheiro, Buffett salienta que espera que esta iniciativa e a publicidade à volta da mesma sirvam como exemplo para que outros sigam esse caminho. "Esperamos que a América, que já é a mais generosa sociedade na terra, se torne ainda mais generosa com o passar do tempo", justifica.
A verdade é que neste momento será como remar contra a maré: o Giving Pledge começou a tomar forma no segundo ano consecutivo em que a filantropia - fundamental, nos Estados Unidos, para garantir um sistema de apoio aos mais carenciados - registou um declínio, o que é habitual em alturas de recessão.
De acordo com a Giving USA, uma fundação dedicada à caridade, estima-se que as doações para fins não lucrativos tenham caído 3,6 por cento entre 2008 e 2009 - de 315 mil milhões de dólares para 303,75 mil milhões de dólares.
Geralmente, as organizações religiosas são as mais beneficiadas. No ano passado, receberam mais de 100 mil milhões de dólares (um terço do total doado). Seguem-se os projectos de educação (40 mil milhões de dólares) e os serviços humanitários, nomeadamente ajudas urgentes (cerca de 27 mil milhões). A saúde é outro dos sectores mais apoiados, com 22,4 mil milhões de dólares.