O trabalho, "ângulo morto" da saúde pública
Se há circunstâncias que são condicionante central da vida das pessoas, são as relacionadas com as condições de trabalho
São conhecidos os preocupantes problemas orçamentais, de recursos e de resposta oportuna aos utentes do Serviço Nacional de Saúde.
Ouvimos e lemos todos os dias várias opiniões qualificadas sobre esta situação. Aumento da esperança de vida, envelhecimento da população, maiores custos da inovação tecnológica introduzida, encargos com a prevenção epidemiológica, maior acesso das pessoas aos cuidados de saúde, maior consumo de medicamentos e de exames complementares de diagnóstico. Ou, por outra óptica, orçamento insuficiente, falta de técnicos, "má gestão" e "desperdício".
Mas é preciso também reparar nalguns custos e constrangimentos mais ocultos. Por exemplo, os que se projectam no SNS em decurso das más condições de segurança e saúde nos locais de trabalho (empresas, Administração Pública e outras organizações) e pela degeneração da organização da prevenção ("serviços de segurança e saúde do trabalho" previstos na lei) nas organizações empregadoras para uma actividade exterior à organização empregadora (em regra, subcontratada), com objectivos essencialmente mercantis e muito limitada às formalidades legais. E não, como é legal, humana e socialmente exigível aos empregadores, efectivamente preventiva dos riscos profissionais.
A saúde não é "um assunto privado", que dependa só da genética e do comportamento individual. Influem nela, e muito, as circunstâncias sociais em que as pessoas vivem.
E, se há circunstâncias que, em todos os domínios, são condicionante central da vida das pessoas, são as que se relacionam com o trabalho, as condições de trabalho. Tanto mais que as modificações técnicas, organizacionais e de gestão que se têm vindo a verificar no mundo do trabalho e a crise económica e social que atravessamos têm tido por consequência a efectiva degradação das condições de trabalho nos locais de trabalho.
O desemprego (que, aliás, é mais um factor de degradação das condições de trabalho) tem "mascarado" esta realidade que a resposta a algumas perguntas evidencia.
Por exemplo, sendo o cancro o principal problema da Saúde Pública, muitas das situações de cancro não terão origem ou são agravadas no local de trabalho, onde, muitas vezes, os trabalhadores são quotidianamente expostos a verdadeiros cocktails de substâncias, preparações ou processos potencialmente cancerígenos? Não tem nada a ver com o trabalho que as pessoas fazem em ambientes notoriamente poluídos o que se passa com o crescimento das doenças respiratórias (um terço das pessoas que recorrem aos serviços de urgência dos hospitais)? O alastramento das incapacitantes lesões ou doenças músculo-esqueléticas não advirá, sobretudo, da progressiva sobreintensificação do trabalho que é timbre dos "novos modelos de organização do trabalho? Muito do sofrimento psicológico e suas dramáticas consequências (de que, no limite, há exemplos conhecidos de suicídio), de que se queixa mais de um quarto da população portuguesa (e de que é sintoma o aumento desmesurado do consumo de antidepressivos e ansiolíticos) não terá origem ou sido agravado pelas condições físicas e, sobretudo, organizacionais, psicológicas e sociais em que as pessoas trabalham?
Contudo, nos "riscos e incertezas" dos sistemas de Saúde Pública sobre os quais se debruçam os relatórios do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), pouco se "observa" sobre a preocupante "incerteza", a verdadeira caixa de Pandora que é a subnotificação das doenças profissionais, das doenças em que possa haver qualquer presunção de terem origem ou serem agravadas pelas condições em que o trabalho é realizado. O mesmo acontece com os Planos Nacionais de Saúde (quer no de 2008/2011, quer no "caderno de encargos" do de 2011 /2016).
O debate, a reflexão e a acção sobre as condições de segurança e saúde do trabalho não podem ficar confinadas ao contrato de trabalho, fechadas na "caixa negra" da organização empregadora ou no emaranhado da "teia" jurídica, administrativa e judiciária dos artigos e das coimas. Esta é uma questão eminentemente social e política, quer pelas enormes repercussões sociais de saúde pública, quer pelos encargos públicos que projecta.
Claro que (também) nesta matéria o desemprego é uma "prioridade das prioridades" da atenção e acção política e institucional (nomeadamente, quanto ao suporte social de que carece), até porque, vários estudos o sustentam, também é um factor de degradação directa e indirecta da saúde das pessoas nessa condição.
Mas a não-prevenção adequada e oportuna dos riscos profissionais nos locais de trabalho é, para além de uma ilegalidade e desumanidade, uma forma "oculta" de "captura" do SNS pelos empregadores (privados ou públicos), ao transferirem para este sistema público (e, logo, para os cidadãos em geral) os encargos e a responsabilidade (legal e social) da reparação das lesões da saúde dos trabalhadores relacionadas com o trabalho que, eles, empregadores, estão legalmente obrigados a, efectivamente, prevenir.
Não obstante as consequências económicas e sociais desta relação virtuosa ou viciosa, recíproca e contínua, entre trabalho e saúde, não há memória de ouvirmos ou lermos um ministro do Trabalho posicionar-se consequentemente sobre a Saúde Pública e um ministro da Saúde interessar-se efectivamente pela Saúde do Trabalho.
É um acto de cidadania clamar por mais atenção, articulação e acção política, administrativa, institucional e social para o que se está a passar (também) neste domínio, para a (des)consideração do Trabalho como um "ângulo morto" da Saúde Pública. Inspector do trabalho (aposentado)