O último sobrevivente do Comboio Presidencial

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Depois de desactivado, o comboio foi espartilhado por vários locais e foi-se degradando dr

Estavam disponíveis a qualquer hora do dia e da noite. Tinham grande responsabilidade - ali havia prata, cristal e certamente algumas conversas delicadas. Memórias de um dos homens da "brigada presidencial" no ano em que se comemora o centenário da República e em que se procura financiamento para recuperar o comboio dos presidentes.

Manuel Pires Silveiro tinha 30 anos quando um dia o chefe o chama ao escritório das oficinas da CP de Campolide e o convida para integrar a brigada do Comboio Presidencial. O convite pareceu estranho a este revisor de material, mas estava fora de questão não aceitar. "Se eu recusasse, podia ficar mal visto", conta. Afinal, para aquele lugar, "era preciso uma pessoa de categoria e competência, e muito séria porque havia material de muita responsabilidade - as loiças em cristal, os copos, as travessas de prata. E, se calhar, escolheram-me a mim porque talvez eu fosse a pessoa indicada".

Hoje, o comboio está espartilhado e degradado, e a Fundação Museu Nacional Ferroviário planeara recuperar as suas partes e restaurá-lo, isto no ano em que a República comemora cem anos, de forma a expô-lo pelo país. Os caminhos-de-ferro franceses (SNCF), por exemplo, ainda hoje mantêm o seu Train de la Presidence em estado operacional. O projecto custaria 1,25 milhões de euros, tendo sido pedido apoio ao Instituto Português do Turismo, que disponibilizou 550 mil euros. A Presidência da República recusou participar. Os responsáveis do museu têm feito uma verdadeira peregrinação junto de várias entidades, tentando obter apoios ao abrigo da lei do mecenato, mas as boas respostas iniciais têm dado lugar ao argumento da crise.

Com 550 mil euros garantidos, o museu recorreu à CP e àEmpresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário que vão reabilitar três dos cinco salões do comboio. Um quarto, que o museu erradamente designa pela "carruagem dos jornalistas" mas que, na verdade, se destinava aos ministros e, pontualmente, ao cardeal Cerejeira, foi alvo de um "SOS Junte-se a nós", lançado no site da Fundação a 21 de Junho.

O Comboio Presidencial era composto por cinco carruagens de luxo e transportou os chefes de Estado até à década de 70 do século XX. Para o compor, aproveitaram-se carruagens usadas pela monarquia, datadas de 1890, que foram transformadas em veículos modernos e atreladas à carruagem do Presidente, essa sim comprada na Alemanha em 1930, e a um furgão também dessa época.

O conjunto espelha na sua decoração e na sua funcionalidade os requintes e equipamentos mais modernos daquele tempo. Os homens que lá trabalhavam eram escolhidos a dedo.

Estar na brigada do Comboio do Presidente significava disponibilidade total para sair em viagem sempre que o chefe de Estado se fazia deslocar naquele comboio. Acrescente-se que em 1961, para o revisor de material da CP, o posto representava um ganho extra em deslocações e algumas gorjetas que iam caindo. Aceitou, claro.

O revisor de material

Há revisores de bilhetes e revisores de material. Na CP, este último é um posto em extinção, mas naquele tempo estes profissionais trabalhavam em Campolide em três turnos que ocupavam as 24 horas do dia. O que "revisava" um revisor destes? As carruagens dos comboios à chegada às oficinas, procurando objectos perdidos e sobretudo verificando os freios, os calços das rodas e avarias nos freios, nas janelas, portas, casas de banhos, sinais de alarme, lâmpadas fundidas, bancos rasgados.

Na velha hierarquia da Companhia, como então se chamava à CP, Manuel Silveiro já obtivera uma subida relevante naquilo que hoje se designa por "mobilidade social". Nascido em Fratel (Beira Baixa) em 1931, escapa à vida do campo porque um "rapaz amigo que era chauffer de um director da CP" o ajudou a entrar para a empresa como servente. Começou por limpar carruagens em Campolide, depois ascendeu a capataz e mais tarde a revisor de material.

E agora, de repente, ali estava ele na estação lisboeta de Santa Apolónia, perfilado como na tropa, os ferroviários e os empregados da Wagons Lits, em frente ao Comboio Presidencial para ser cumprimentado pelo "primeiro magistrado da nação, o senhor almirante Américo Tomás!".

Juntos terão percorrido milhares de quilómetros naquele comboio de luxo, mas entre os dois não houve sequer uma troca de palavras. Manuel Silveiro era apenas um peão numa tripulação de 15 pessoas destinada a servir a comitiva do chefe de Estado.

O único sobrevivente dessa brigada que integrou o comboio até à sua extinção no início de 1970 conta que da CP estavam afectos em permanência a este comboio um inspector, um serralheiro, um electricista, dois condutores de carruagens, um revisor de bilhetes e um revisor de material (ele próprio).

Junte-se-lhes ainda o maquinista e dois inspectores de tracção que seguiam na locomotiva.

Da Wagons Lits - a empresa de origem belga que se tornara famosa logo no século XIX aquando da criação dos grandes expressos europeus e que operou em Portugal até 1974 -, estavam adstritos à composição dois cozinheiros, dois ajudantes de cozinha e quatro criados de mesa.

Ministros, jornalistas e pides

A "arraia miúda" do comboio ficava por aqui, mas com o Presidente da República, os ministros e os jornalistas (que tinham carruagem própria), havia inúmeros pides e funcionários mais ou menos subalternos que Silveiro não identificava.

Esta mobilização de meios, que ocorria sempre que o comboio saía em serviço, não tinha, porém, paralelo com a que, pelas mesmas razões, ocorria na linha férrea. "Uma hora antes de o comboio passar, a via tinha de estar livre e os outros comboios encostavam todos, mesmo que estivessem cheios de gente. E o pessoal da via tinha de estar distribuído ao longo do percurso todo e tinham de se ver uns aos outros. Não podia haver um metro de linha que não estivesse à vista. E em cima das pontes havia sempre a GNR."

É certo que, naquele tempo de pouca automatização, havia milhares de operários de via que tinham como função manter em bom estado os carris e as travessas, mas não é fácil imaginar um cordão humano ao longo dos 337 quilómetros de linha férrea entre Lisboa e Porto. Silveiro garante que assim era.

Havia mais: na véspera de saída, o Comboio Presidencial, que tinha uma "garagem" própria na estação da Cruz da Pedra, saía em viagem de experiência, apenas com o pessoal da CP, até ao Entroncamento. E no dia seguinte, já com o Presidente a bordo, era precedido de uma batedora, uma locomotiva isolada que "batia o terreno" ao Comboio Presidencial para garantir que tudo estava em condições e não havia sabotagens nem outros incidentes. Esta prática, de resto, ainda hoje existe sempre que o chefe de Estado viaja de comboio, como aconteceu há quatro anos quando o Presidente Cavaco Silva se deslocou num comboio pendular entre Lisboa e o Algarve - um outro pendular vazio seguiu na dianteira.

O comboio do Presidente era, pois, no sistema ferroviário, um grande senhor ao qual todos tinham de prestar vassalagem.

Manuel Silveiro conta que a maioria das viagens que fez foi entre Lisboa e Porto, e que estas só tinham uma única e breve paragem em Coimbra, onde os estudantes vinham à estação com as suas batinas cumprimentar o chefe de Estado. A viagem de regresso era feita toda sem parar, mas demorava entre quatro a cinco horas, porque "quando eles iam a comer afrouxavam a marcha".

Havia um telefone instalado entre a locomotiva e o furgão, de onde se ligava para o maquinista para que este reduzisse a velocidade durante o almoço ou o jantar.

O Presidente almoçava com um grupinho restrito na carruagem presidencial, que tinha cozinha própria e à qual estavam afectos um cozinheiro, um ajudante de cozinha e dois criados de mesa. Exactamente os mesmos que viajavam na carruagem-restaurante, onde se sentavam à mesa os ministros e outros convidados. Jornalistas e pides, que viajavam na última carruagem, não comiam a bordo.

A possibilidade de poder tomar as refeições a bordo é uma das razões apontadas por Hélder Bonifácio, investigador do caminho-de-ferro, para o uso deste comboio "repleto de simbolismo e que circulava sempre rodeado de pompa e circunstância", e no qual viajaram Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás.

"A vantagem deste modo de transporte, mesmo nos anos 60, era evidente, não pelo menor tempo de viagem, mas também pela comodidade de movimentação permitida ao Presidente e comitiva, e com o must das refeições servidas a bordo, o que não podia acontecer se a viagem se fizesse de carro, ainda que nos luxuosos e comodíssimos Cadillac e Chrysler, da presidência", refere.

De resto, no Portugal de há 50 anos, apenas existiam as estradas nacionais, na sua maioria com traçados de origem. E daí as vantagens do Comboio Presidencial, apesar de limitado aos 120 km/hora e numa altura em que se generalizavam as novíssimas carruagens em aço inoxidável construídas na Sorefame.

Ainda assim, no que concerne ao luxo, nada superava as velhas carruagens onde viajavam as figuras do Estado Novo.

Emblematicamente, um dos seus salões tinha sido comprado à Alemanha dos anos 30 durante a ascensão dos fascismos na Europa. E, emblematicamente também, três das carruagens do Comboio Presidencial datavam de 1890 e tinham integrado o Comboio Real. Sobreviveram à I República, estacionadas em locais discretos por ferroviários que já entendiam a importância da preservação do património e foram depois modernizadas para integrar a composição dos presidentes.

Onde iam os presidentes

E que viagens fazia este comboio? Para onde fosse necessário? A maioria das deslocações, já se disse, eram ao Porto e às vezes a Coimbra. Lembra-se que foi neste modo de transporte que Américo Tomás foi inaugurar a Ponte da Arrábida, no Porto, e por lá ficou quatro dias. Quase todos os anos iam à Festa dos Tabuleiros a Tomar. E a inauguração de uma fábrica de automóveis na Azambuja também obrigou à deslocação do Comboio Presidencial.

O antigo revisor de material da CP também se recorda de uma deslocação ao Tramagal (Abrantes) para visitar uma fábrica de travessas de betão para o caminho-de-fero, bem como de uma ida à Covilhã para fazer inaugurações. "E houve também uma vez que fomos a Vilar Formoso e ficámos lá quatro dias estacionados porque eles andaram por lá a inaugurar estradas", diz Manuel Silveiro.

Foi também no Comboio Presidencial que se realizou, em 1970, o funeral de Salazar, desde uma estação improvisada em frente aos Jerónimos até Santa Comba Dão, tendo-se-lhes atrelado uma carruagem Schindler (que aguarda restauro no museu), onde viajou a urna do ditador.

Apesar de equipado com quartos e de os lençóis viajarem sempre em caixas especiais, como lembra Silveiro, Américo Tomás nunca dormiu a bordo. Se não se regressava a Lisboa no próprio dia, a comitiva distribuía-se pelos hotéis. O pessoal levava colchões no furgão e estendia-se neles para passar a noite. E, às vezes, discretamente, havia quem se deitasse nas camas dos dignitários, conta Silveiro, com um sorriso. Sempre eram mais confortáveis do que os colchões no chão duro do furgão das mercadorias. Cá fora, como se impunha, a GNR montava guarda ao comboio do regime.

Boas recordações guarda-as este ferroviário das viagens à província na composição mais luxuosa da CP. "Comíamos e bebíamos bem!", recorda. E o trabalho não apertava.

Durante a viagem, Manuel Silveiro viajava sempre de pé, discreto, num cantinho do salão n.º 2. Às vezes, ajudava o pessoal da Wagons Lits na logística das refeições e via a paisagem desfilar. "Eu nunca ia nervoso. A minha mulher é que ficava aí às vezes a tremer."

A proximidade com as pessoas mais importantes do país não o perturbava, até porque na prática, segundo conta, a distância entre as figuras do regime e a tripulação era enorme e não havia qualquer convívio. Só no regresso, à chegada a Santa Apolónia, havia a cerimónia da despedida, com o pessoal perfilado, que o Presidente cumprimentava um a um.

"Com os pides a gente não queria nada", diz Manuel Silveiro.

A CP escolhia pessoal de confiança para trabalhar e acompanhar este comboio. O que significa que este ferroviário teria, seguramente, de ter a ficha limpa e não estar ligado a movimentações sindicais. A forma como ainda hoje fala dos "pides à paisana" revela o respeito e o receio que deixaram marcas na época. Ainda assim, às vezes, Manuel Silveiro fazia-lhes chegar umas cervejas e umas sandes.

E não houve nunca uma história, um episódio com Américo Tomás para contar?

"Não! Nunca. Aquilo estava tudo preparado para não haver nada." Do que se recorda bem é de Américo Tomás ter um verdadeiro prazer nas viagens de comboio. "Cinco minutos depois de sairmos de Lisboa, já ia tudo nas bebidas finas e nos petiscos. E antes de Coimbra já estavam todos a almoçar. Era comer e beber a viagem toda."

Manuel Silveiro tem uma explicação pragmática e que faz sentido para o fim das viagens do Comboio Presidencial: "Foi Marcelo Caetano que acabou com aquilo porque gastava muito dinheiro ao Estado. Disse ao Américo Tomás que, se ele quisesse, tinha o carro da presidência."

A verdade é que, mesmo para a época e para a CP (a Companhia confundia-se com o próprio Estado), os custos daquela composição eram elevados.

Manuel Silveiro ainda continuou a tratar do comboio por mais algum tempo. As loiças e os talheres terão ido para o Palácio de Queluz e das carruagens perdeu-lhes depois o rasto.

A composição foi espartilhada. O salão do Presidente seguiu para a secção museológica da CP de Santarém e a carruagem-restaurante está hoje guardada no museu da estação de Estremoz. Um dos salões dos ministros está há décadas no antigo armazém de madeiras do complexo do Entroncamento e o outro integra, após transformação, o Comboio Socorro da Refer, uma composição destinada a ocorrer a acidentes, descarrilamentos e avarias no caminho-de-ferro. a

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