Juárez Entre a vida a morte
Cabeças cortadas. Cadáveres atirados para o deserto. Gente raptada, violada, baleada, todos os dias. Esta é a história de como se destrói uma sociedade de fronteira. Primeiro, é o bordel dos EUA. Depois, fica escrava do comércio livre. E então o narcotráfico entra a matar, porque se tornou fácil e o dinheiro é muito. A cidade mais violenta do mundo é Juárez, fronteira do México com os EUA.
1.A morgue é um lugar limpo
O homem está deitado numa mesa de alumínio. Tem parte da cara desfeita e sangue na roupa. Vê-se a barriga, grande, peluda. Não há história, não há nome. O funcionário da morgue calça luvas de silicone, cobre o corpo com um oleado, e escreve a amarelo-fluorescente na zona da barriga: "Cadáver desconhecido - 30/Junho/2010."
Isto foi um homem.
"Já fizemos 14 autópsias, e agora entraram mais sete", diz a directora da morgue, Alma Rosa Padilla, vestido rodado às bolinhas, sapatos pontiagudos de verniz. Alguns dos autopsiados eram mortos de ontem, mas hoje ainda não acabou. São apenas 19h25 e, como veremos, há gente por matar.
Ao fundo do corredor, dois funcionários tiram de uma carrinha os corpos recém-chegados, envoltos em oleado. Põem cada volume numa mesa de rodinhas e puxam-na até à Sala de Autópsias. Pelo caminho, não há sangue. A nova morgue é um lugar limpo, com mosaicos onde os saltos da doutora Alma Rosa fazem tic-tic. Antes da autópsia, os mortos só se destapam para o registo fotográfico. "Depois, o sistema dá-lhes um número com as características: tatuagens, cicatrizes, amputações, cirurgias."
E fora do sistema, na contagem dos homicídios deste ano, o cadáver da cara desfeita será um número na casa dos 1400.
No tempo em que menos de uma pessoa por dia era morta em Juárez, os repórteres tinham umas horas para reconstituir a história. Isso foi há séculos, em 2007. Agora, os mortos fazem fila para entrar nas notícias, tal como na morgue.
Em 2007, foram mortas 316 pessoas em Juárez.
Depois, em 2008, foram mortas 1623 pessoas.
Depois, em 2009, foram mortas 2754 pessoas.
Ou seja, entre 2007 e 2009, o número de pessoas mortas aumentou quase 900 por cento.
E, em 2010, a tendência é para subir.
Não contando com sequestros, extorsões, violações e torturas, são estes números que fazem de Juárez a cidade mais violenta do mundo, a grande distância de San Salvador, Cidade do Cabo ou Medellín.
Segundo o Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y la Justicia Penal en México - observatório que coteja as estatísticas internacionais -, em 2009, a taxa de homicídio em Juárez foi de 191 por cada 100 mil habitantes, a mais alta do mundo. Em segundo lugar, vem San Pedro Sula, nas Honduras, com 119 (Bagdad, com 20, nem aparece no ranking).
Mas Molly Molloy, uma bibliotecária da Universidade do Novo México que há anos reúne os dados de Juárez (http://groups.google.com/group/frontera-list), tem contas ainda mais negras. Como centenas de milhares de pessoas deixaram a cidade por causa da violência, a última estimativa de população desceu para 1,1 milhões. A partir desse número, "é possível dizer que a taxa de homicídio é agora de 249", diz Molly por email. "E se projectarmos um total de homicídios mais alto para 2010, poderá chegar a 265."
Mais um pequeno esforço dos "sicários", e a inflação de mortos rondará mil por cento.
Quem são os "sicários"? Os que matam a mando. Cada cartel tem o seu exército. Supostamente o que aconteceu nesta cidade foi que em 2008 o cartel que sempre dominou aqui - Cartel de Juárez - passou a ser desafiado in loco pelo Cartel de Sinaloa. Daí o número de mortos ter disparado.
Esta é a versão oficial, repetida pela justiça, pela polícia e pelos políticos: dois cartéis em guerra, e as autoridades a porem ordem.
Depois há a versão não-oficial, de toda a gente (que as autoridades entrevistadas pela Pública também não contestam): o narcotráfico está dentro das autoridades.
E entretanto, o que qualquer pessoa em Juárez parece saber é que a qualquer momento pode ser morta.
Balanço dos quatro dias que a Pública passou na cidade:
A 29 de Junho foram mortas cinco pessoas, incluindo um polícia.
A 30 de Junho foram mortas 17 pessoas, incluindo adolescentes que reparavam telemóveis, carpinteiros no trabalho e a subprocuradora. A cabeça de um dos mortos foi deixada à porta de um político local.
A 1 de Julho foram mortas sete pessoas, incluindo uma menor, todas na rua ou em locais públicos.
A 2 de Julho foram mortas cinco pessoas, incluindo um homem desmembrado e pendurado numa árvore.
Muito trabalho para a morgue, onde a ciência forense, portanto, avança. "Temos quatro refrigeradores com capacidade para 40 corpos bem acomodados", descreve a doutora Alma Rosa. "Fazemos três turnos diários, incluindo fins-de-semana. Já chegámos a 30 autópsias por dia."
E, como veremos adiante, esta morgue está na vanguarda mundial quanto a re-hidratação de cadáveres mumificados. Estamos no deserto, e o deserto tem esse efeito sobre os cadáveres.
Mas voa-se para Juárez como se fosse uma cidade normal.
2. "Check in" no deserto
Cidade do México. Sala de espera do voo AM258. Um expresso custa dois euros, há joalharias e lojas Lacoste. Mexicanos vêem o correio nos blackberrys ou atendem com aquela gentileza protocolar: "Sim, sou eu, para o servir." E a duas horas e meia de voo, a morte sai à rua.Em 2007, o grupo do Financial Times escolheu Juárez como "Cidade norte-americana do futuro". Ainda hoje alguém deve estar a pensar como se enganou tanto. Se tivesse lido, por exemplo, Juárez: The Laboratory of Our Future, de Charles Bowden, estaria a par de um futuro, sim, mas negro. Bowden, que passa longas temporadas em Juárez e escreve com a exactidão de um poeta, vê a cidade como cobaia do capitalismo global, a antecâmara de um mundo de desempregados e quase-escravos.
Agora, publicou Murder City - Ciudad Juárez and the Global Economy New Killing Fields, narrativa devastada. E podemos embarcar a ler, por exemplo, a história da rapariga a quem ele chama Miss Sinaloa, que acabou entre Los Locos, aqueles que perderam a razão nas ruas de Juárez, anjos vindos do Sul do México, soprados pelo american dream, violados em série ou castanhos da heroína.
Avança uma hospedeira: "Passageiros do voo AM258 para Ciudad Juárez, embarque na porta 64."
Mulheres sozinhas com madeixas louras, mãe, pai e filho com um blusão luxuriante, filhos cheios de jogos electrónicos e mãe com unhas de gel e saco Hugo Boss. Mas isto não quer dizer nada, a não ser dinheiro novo.
Deserto, deserto, deserto. Depois fábricas. Aterramos sob um céu de cinema, grandes nuvens brancas a rebolarem num fundo azul. À saída, pick ups da Polícia Federal, armas apontadas. Há 4500 federais assim, a patrulhar a cidade.
Em 2006, quando o actual Presidente Felipe Calderón ganhou as eleições depois de uma controversa contagem, parte do país viu-o como usurpador. A primeira decisão de Calderón foi declarar guerra ao narcotráfico, e a convicção geral é de que o fez para se legitimar. Vinte e cinco mil mortos depois, a sua popularidade não está propriamente melhor.
Guerra, aqui, não é em sentido figurado. As Forças Armadas foram enviadas com tanques para as frentes do narco. E até hoje, o viajante poderá ver blindados e check points por todo o México.
Em Juárez, onde o Exército chegou em 2008, a Comissão de Direitos Humanos recebeu centenas de queixas de abusos, e o Presidente acabou por retirar os militares do centro. Nova estratégia, desde 9 de Abril deste ano: o Exército à volta e os federais dentro.
"Mas muitos polícias são ex-soldados", faz notar Julián.
Julián Cardona, 49 anos de idade e quase 49 anos de Juárez. Para a Agência Reuters escreve, para os outros fotografa. São dele as fotografias dos livros de Bowden, percorrendo as histórias da fronteira - esta que agora vemos da sua pick up, uma cerca à beira da estrada, com as carrinhas da Border Patrol do lado de lá.
O lado de lá é El Paso, Texas.
"Não consegues vê-lo porque está quase seco", diz Julián, "mas entre nós e eles está o Rio Bravo." Para os americanos, Rio Grande.
Um minuto de História sobre a fronteira. No século XVI, depois de vencer os aztecas, a conquista espanhola seguiu para norte. Ao sítio onde se passava este rio chamou El Paso. Aí fundou, em meados do século XVII, uma missão, e nas duas margens cresceram as casas de El Paso e El Paso del Norte. Décadas depois, o México tornou-se independente, mas perdeu para os EUA boa parte do território. Então a fronteira ficou a ser o rio, e El Paso del Norte mudou de nome para Ciudad Juárez.
Estamos a chegar ao centro.
Vias rápidas entre postes altos com anúncios, porque toda a cidade é horizontal, feita para andar de carro e avistar as coisas ao longe. Não há passeios, há bermas, com acessos a parques de estacionamento, bombas de gasolina, "drive ins". Não há passadeiras, há pontes aéreas, com campanha eleitoral e anúncios como "Em Juárez os sorrisos vencem fronteiras. Hoje sorri". Vermelho Coca-Cola. Dourado McDonald"s. Verde Starbucks. E, para não esquecermos onde estamos, um painel contra o céu: "Pena de morte para assassinos e sequestradores."
Ao fundo, o recorte das montanhas. Bairros de cimento interminavelmente iguais. Baldios com lixo e um aquaparque abandonado. Água nas esquinas porque choveu, e drenagem, nada. Aqueles autocarros de escola americana, comprados em segunda-mão para o transporte público. Um pequeno graffito: "Resiste."
Sempre que aparece uma fábrica é uma maquiladora (ou maquila, para abreviar): fábricas, sobretudo americanas, mas também europeias ou japonesas onde, por custos muito baixos, operários mexicanos montam peças que vêm de fora.
"Antes, a cidade vivia do turismo negro", diz Julián. "Bares, prostitutas, artesanato. Depois, nos anos 60, aceitou um novo modelo, com as maquilas. Salários de 50 pesos por dia [três euros]. Claro que décadas de salários tão baixos geraram uma decomposição."
Ele mesmo experimentou a maquila, há 30 anos. Foi supervisor e saiu depressa: "Não ia passar a vida a foder a minha gente."
3. Uma bala no bolso
Em qualquer sítio no México, se olharmos em volta, algo pertence a Carlos Slim, o homem mais rico do mundo. Por exemplo, a rede de telemóveis. Por exemplo, este Sanborns na avenida principal de Juárez. É uma cadeia nacional, espécie de restaurante-e-fnac, mas com ar condicionado no máximo e chiles dentro da sopa. E, como em qualquer sítio no México, dão-nos música tão alta que não se ouviria um tiro."Já não se aguenta o argumento de que isto é como qualquer cidade violenta. Porque não há nenhuma cidade mais violenta que esta. Mas as pessoas têm medo de falar, porque têm medo de que as matem." Julián fala a olhar nos olhos. E de quando em quando olha a porta, as janelas, em volta.
Ao fim de umas horas, o visitante começa a aperceber-se de que é assim que as pessoas de Juárez falam. E parecem ter sempre gotas na testa, ou por cima do lábio.
Julián propõe beber café no Starbucks, não só porque o café é melhor, mas porque "ontem houve uma execução no estacionamento".
Um dos lavadores de carros, Jorge, 19 anos, cabeça rapada, brinco, não viu nada. "Não estava cá, mas encontrei uma bala de 9 mm." Qualquer miúdo em Juárez sabe distinguir balas.
O único lavador que viu algo é um tipo de meia-idade e boné, que não quer dizer nem o nome próprio: "E se os federais vierem falar comigo, não vi nada." E o que viu, afinal? "Vieram executar um. Era uma carrinha com dois homens, eram umas sete da tarde. Estavam cá fora à espera, e ele estava lá dentro às compras. Quando olhei, já estava no chão. Saíram logo, e a polícia apareceu um minuto depois." Se a polícia aparece "um minuto depois", as pessoas tendem a suspeitar que já estava lá, e não fez nada. Ou seja, que foi cúmplice.
"As pessoas já estão tão acostumadas que foi como se nada se tivesse passado", remata o homem, que veio do Sul há muito. "Trabalhei seis anos nos campos da Califórnia sem papéis, até me deportarem. Então, há 15 anos, vim para Juárez, quando era outra Juárez." A limpar carros faz "uns 200 pesos por dia [12 euros]". Quatro vezes mais do que um operário.
À saída e em cada curva somos seguidos pelos cartazes da campanha, cheios de dentes falsos. O que levará, por exemplo, este Hector Murguía a candidatar-se à presidência da câmara de Juárez? É que amanhã vai aparecer à sua porta uma cabeça acabada de cortar. São coisas que acontecem em Juárez.
"Murguía é uma espécie de Berlusconi local, parece que vai ganhar", resume Julián. "Dizem que está vinculado ao narco."
De toda a gente com poder, ou aspirante, se diz isso, aqui. Por exemplo, sobre o presidente Calderón e o seu Partido de Acção Nacional (PAN, direita liberal) diz-se que apoiam o Cartel de Sinaloa contra o Cartel de Juárez, e daí a explosão de violência: o actual regime estaria a ajudar um cartel a vencer outro.
O que leva as pessoas a ligar o actual regime ao Cartel de Sinaloa? Antes de mais, o facto de o líder desse cartel, "El Chapo" Guzmán, ter escapado há anos de uma prisão de alta segurança. Sim, os guardas foram subornados, mas as pessoas acham que o regime sabia. El Chapo vale mil milhões. Está na lista da Forbes.
Julián tem uma perspectiva mais radical: "Calderón é uma figura decorativa. Não creio que eles apoiem um cartel. Eu creio que eles são o cartel. O narco é um tipo de economia."
Quatro faixas de carros numa direcção. As distâncias são enormes. De repente, terras de ninguém. Saímos da cidade? "Não, a cidade é isto", diz Julián. "Cresceu de forma desordenada, de acordo com os interesses de quatro ou cinco famílias, sem parques, sem infantários, sem escolas secundárias."
Há cem anos, Pancho Villa chegou com um punhado de homens e 500 balas. Os habitantes de El Paso alugaram sótãos para o espectáculo da revolução mexicana, do outro lado do rio. E os livros de História dizem que a revolução triunfou. Este ano é mesmo de celebrações nacionais, embora em Juárez, assim de repente, não se dê por isso.
Por exemplo, Pancho Villa: uma estátua no meio do trânsito, num separador, e sem placa. "Os drogadictos arrancam-nas todas", explica Julián.
4. O centro dos desaparecidos
Há um lugar onde Juárez quase parece uma cidade, e esse lugar é o centro. As ruas estreitam. Bicicletas, bancas de refrescos, lojas com letreiros dos anos 50. Um velho cinema, uma igreja com torres, uma praça com árvores e pessoas sentadas.Mas, de perto, nada é o que parece.
Porque as pessoas estão sentadas num banco com tinta descascada e cantos partidos; o cinema está abandonado e do outro lado da rua há um outro cinema abandonado; as mulheres estão de minissaia, chinelos de salto e boca franzida num desdém; a comida é de plástico, de garrafa, de pacote, e isso vê-se nos corpos e pelo chão; um mendigo olha o grandioso céu do deserto, como se neste momento não estivesse a ser baleado mais um homem; e no subterrâneo onde deixamos o carro para que não seja roubado há uma placa a dizer: "Rezemos por Juárez."
Pendurada na grade da igreja, uma adolescente domina a praça, vestida de azul-celeste, coroa de princesa, covinhas. "Por favor, ajude-nos a encontrá-la e a rezar para que nada de grave lhe aconteça", diz a primeira frase do cartaz. Depois o nome, em letras gigantes: Yanira Frayre Jaquez. As características, a roupa, o lugar onde foi vista a última vez, os telefones de contacto. Não há idade, mas ninguém lhe daria mais de 15, e deve ter desaparecido há pouco porque o cartaz está novo.
Se olharmos em volta, veremos outras adolescentes mais desbotadas, com as características igualmente escancaradas na parede ou em postes. E por cada uma, outras que ninguém verá porque a família teve medo de fazer queixa. Quando não há queixa nem corpo, será como se nada tivesse acontecido. Há-de sobrar a placa no jardim que diz: "A uma mulher não se toca nem com uma pétala de rosa."
Então, este é o centro de Juárez, uma boca que nos engole. De repente, podemos nunca ter existido. E cheira a hambúrgueres Wendy"s, e a marijuana.
"Aqui, por toda a parte se vende droga", diz Julián, subindo as escadas da igreja. No adro, uma estátua do frade fundador que parece viva, e lá dentro homens que parecem atordoados, sentados ao lado de sacos. Música a bombar de um carro, e é como se ninguém a ouvisse. Mas nem só os pobres entram na igreja. "Os narcos são católicos."
Julián volta costas para identificar os cinemas da sua infância, o Reforma, o Plaza, o Éden. Depois, continuamos para poente, até ao largo do Palácio Municipal, onde estão duas carrinhas com federais em agitação. A guarda do palácio explica que "balearam um polícia perto da ponte", ou seja na fronteira.
Ao lado há uma mini-livraria, a única que veremos em Juárez. O Que os Mortos Sabem e A Bíblia do Diabo estão em destaque, mas somos os únicos clientes.
Ruas com velhas lojas de bonecos coloridos, a Dulceria El Alamo com um leão e um cavalo para montar cá fora, bancas com chiles de todos os tamanhos e copos de cajeta, um doce de leite condensado. Mas sobretudo o comércio barato que tomou o lugar de quem morreu ou desistiu: lojas chinesas, quadros com A Morte vestida de dólares, esculturas da Virgem de Guadalupe com o seu manto de sol, crucifixos com flores e laços para funerais, revistas com raparigas de tanga, pernas-e-rabo de plástico com calças a seis euros.
"Não tires fotografias", avisa Julián. "Toda esta rua é de venda intensa." Passadores e picaderos.
E de caminho, mais postes com desaparecidas. Atrás, uma loja de chapéus. Ao lado, a reparação de calçado El Relampago.
Roberto, o sapateiro, 65 anos, está lá dentro, com cabedais no colo. "Mudou muito, o centro, há menos trabalho. Muitas lojas fecharam porque as pessoas têm medo. Antes era tranquilo, podia andar-se às onze da noite, e agora já nem de dia." Porquê? "Andam aí os rapazes a pedir dinheiro para nos deixarem trabalhar." Quais rapazes? "Os "aztecas"."
Em Ciudad Juárez há mais de 800 gangues, mas o Barrio Azteca é o mais poderoso. Trabalha para o Cartel de Juárez e tem os seus subcontratados. Crianças de sete anos recebem à semana como "falcões", para vigiar. Os liceus estão cheios de adolescentes que não querem a pobreza da maquila. Querem sucesso, e sucesso é o narco, com os seus gangues tatuados.
"Eu não pago aos "aztecas"", diz o sapateiro Roberto. Até agora não pagou. E um dia destes vai-se embora.
Mais adiante fica a Rua Noite Triste. E de volta pela igreja chegamos à esquina da Avenida Juárez, que vai até à fronteira.
"Era a avenida dos turistas", lembra Julián. "Os gringos vinham aqui comprar o seu sombrero grandote. Várias fábricas de whisky vieram produzir para cá." Do lado de lá era a Lei Seca, e antes, durante e depois todo o tipo de sede desaguava em Juárez: álcool, jogo, droga, sexo. Criaram-se mitos: aqui se inventou a Marguerita e se divorciaram Marilyn e Miller. Juárez era o consolo dos soldados americanos do Forte Bliss e do puritanismo de El Paso. El Paso mantinha-se limpa e Juárez sujava as mãos.
Hoje, El Paso - ou seja, aqueles arranha-céus ali - é a segunda cidade mais segura dos EUA. A violência do narco no México não prejudica os EUA, pelo contrário, dá-lhe capital e mão-de-obra. Os juarenses que podem têm casa em El Paso e filhos em escolas de El Paso. São cinco minutos, uma ponte a pé sobre o rio, até estarmos frente ao recorte espelhado da baixa texana.
"Ordem", diz Julián, braço a apontar para os EUA. "Caos", o outro braço na direcção do México.
Juárez flutua no horizonte, como a cidade dos condenados. Ao lado, a montanha ocre onde alguém escreveu em letras gigantes: "A Bíblia é a verdade: lê-a."
O vento sopra, o sol põe-se. Regressamos pela paralela à Juárez que é a Mariscal. Era uma espécie de "quarto escuro": "Aqui estavam os bares de malamuerte, prostíbulos, striptease, topless." Agora há quarteirões com uma só fachada de pé a dizer "Bar La Princesita" e um cipreste. Portas de ferro corridas até ao chão e a foto de uma stripper num poste. Ruínas com lixo, entulho e uma mulher de alças e calções a desaparecer atrás de um barraco que diz "Salão de Baile O Morro, quartas-feiras de tanga, sexy". Está descalça, e as plantas dos pés parecem sola castanha.
5. Vida operária
O primeiro encontro com Irma Guadalupe é breve. "Roubaram-me o telemóvel na missa e ainda quero apanhar a loja aberta", diz ela, oferecendo água fresca. É directora da Casa Amiga, um centro pioneiro para as mulheres de Juárez. Há mulheres que escaparam de morrer e só falam com ela. Não pode ficar incontactável.Muito antes de as mortes explodirem, Juárez foi notícia pela morte de dezenas de mulheres que todos os anos apareciam violadas e torturadas, muitas no deserto. Roberto Bolaño ficou tão obcecado que lhes dedicou 350 páginas do seu 2666, e houve filmes, livros e canções sobre os "feminicídios".
Brutais, inquietantes e não-investigadas, as mortes destas mulheres representam uma percentagem relativamente pequena do total de homicídios. Já chegaram a 16 por cento, em 2009 ficaram pelos seis. O que não significa que as mulheres não sejam dos alvos mais vulneráveis. Além das mortes, há sequestros, violações e violência doméstica.
A história de Eva tem tudo isso. Ela só não morreu.
E quando Irma lhe telefona a perguntar se recebe a Pública para falar da sua vida na maquila, Eva aceita.
Bairro Los Alcaldes, terra batida, casas pobres, cimento à vista. E todas têm grades, cercas de ferro e cães a ladrar, porque os gangues de Juárez não roubam aos ricos para dar aos pobres, mais ao contrário.
O cão de Eva chama-se Jason. "O anterior chamava-se Killer, mas roubaram-mo", diz ela, abraçando-o como se fosse um gatinho e não um pitt bull. Aos 42 anos, é uma mulher obesa e risonha, vestida com uma T-shirt cor de laranja. Quando deixa de sorrir, parece exausta.
Estamos num pátio inacabado, com tijolos no chão e roupa a secar. "Tínhamos outra casa com mais quartos, mas por causa da violência viemos para aqui todos juntos, os meus filhos e a minha companheira." No caso dela, a violência é uma história de infância, mas disso não falará. "Irma não vos contou? É melhor ser ela. Prefiro não falar disso à frente da minha família."
Então entramos no único quarto que é a casa. Em frente, a mesa. À esquerda, frigorífico, lava-loiças portátil, uma frigideira ao lume. À direita, uma estante com a televisão, um filho sentado numa cama a olhar para o ecrã, a companheira deitada noutra cama a olhar para o ecrã, a cama do outro filho vazia, dois cães e um elefante de peluche ao pé da janela.
O tecto é de madeira e há frestas. O que acontece quando chove? "Pois, entra água", sorri Eva. A porta está aberta, mas é como se o ar tivesse parado acima dos 40 graus.
Sentamo-nos à mesa.
A maquila onde ela trabalha é a Cisco Systems, sede na Califórnia. Eva nunca viu os patrões e eles nunca a viram a ela. "Só conheço os supervisores, que são mexicanos." Cinco mil trabalhadores em cada turno, três turnos por dia. "Eu monto o que está dentro das televisões Sony. Pagam-me 600 pesos por semana [36 euros]." Esse trabalho implica soldar, o que a expõe a envenenamento por chumbo. Que acontece quando fica doente? "Dão-me um dia. Férias, temos 23 dias, mas roubam-nos sempre alguns, não sei como."
A fábrica assegura o transporte dos operários, como acontece em geral na maquila, porque cada minuto conta. E dá-lhes duas refeições por dia. "Mas às vezes a comida está feia, e não a comemos para não ficar mal do estômago", diz Eva, delicadamente.
Alimentação, transporte, atendimento médico, bairros de má construção a preços baixos, "um modelo muito sofisticado em que tudo se vende como um benefício", resumirá à Pública o antropólogo Carlos González Herrera, director do mais importante centro de investigadores em Juárez. "A exploração terrível da maquila castrou as pessoas como cidadãs e divorciou-as dos serviços públicos."
Eva acha que a vantagem da maquila sobre outros trabalhos, como limpar um centro comercial, é "ter os fins-de-semana livres", e sente-se com sorte por ter um contrato quando a recente crise nos EUA levou tantas maquilas a despedirem.
Seja como for, se quisesse direitos, não ia longe. "As maquilas não permitem sindicatos. O mundo da maquila é diferente dos outros trabalhos."
E está cheio de droga. "Vende-se tudo lá dentro, sobretudo cocaína e pastilhas. Os guardas estão de acordo, sabem quem é. Um globo [de heroína] que dá para várias vezes custa 100 pesos [seis euros]. Um papel de cocaína são 60 pesos [3,6 euros]. A maioria dos trabalhadores e dos guardas estão viciados. De outra forma, como é que os guardas aguentariam dois turnos? Dentro e fora da maquila, por toda a parte, há droga, e é isso que causa a violência. Em Juárez tenho medo de ir às lojas, medo de ir para o trabalho. Entramos com medo, saímos com medo, mas temos de ir trabalhar. Há três meses mataram uma pessoa ali na esquina e aqui atrás mataram um rapaz."
Quem matou? Ela sorri. "Pois, tapam a cara, matam e vão-se." Nunca ninguém sabe.
Houve um tempo em que Eva se sentiu "livre": a mãe dela trabalhava numa padaria do Novo México e tinha papéis. Isso durou dez anos, e foi há muito tempo. De vez em quando Eva pensa nisso, nos Estados Unidos. "Mas agora estou a tomar remédios, e tenho a terapia com Irma." Além disso, a mãe morreu e ela herdou uma casa, vendeu-a e comprou esta. Aqui não paga renda.
À saída, o pitt bullJason encosta-se e recebe festas. Rua deserta, só grades. "Está muito feio", remata. "Põem-te uma pistola na cabeça..."
6. Os pecados de Eva
"Dentro da maquila há droga, prostituição, armas", diz Julián ao volante da sua pick up. "Tudo isto é o free trade. Temos de ter o free trade porque "é bom para os nossos povos"."
Oficialmente, chama-se NAFTA, acordo norte-americano de livre comércio assinado em 1994. As maquilas já tinham muitos incentivos, e a partir daí mais. E quem eram tradicionalmente os operários da maquila? Mulheres como Eva.
Por isso muitas mulheres, as mais desamparadas do México, vieram sozinhas para Juárez, sem rede, sem raízes. E para outras, já nascidas na cidade, o inferno foi a família. Decomposição: a palavra omnipresente em Juárez. Maus salários, lei do mais forte, ausência do Estado, álcool, droga.
"Os homens em Juárez são impotentes socialmente. Não podem aceder a uma carreira, e ainda por cima bebem ou drogam-se, mas mantêm o vigor sexual", diz Julián. Usam-no como poder.
Casa Amiga. Irma já tem um telemóvel novo. Oferece água fresca e conta a outra história de Eva. "Em 2008, quando ela estava à espera do transporte da maquila às 5h30 da manhã, chegou uma carrinha, saíram dois rapazes e obrigaram-na a subir. Vendaram-na, disseram que a iam matar, e durante três horas violaram-na os três, com um sempre a conduzir. Ela acha que teriam entre 20 e 25 anos e nunca os vira. No fim, deixaram-na nua na rua, e ela pediu ajuda a uma senhora que deu parte à polícia. Confirmaram a violação num primeiro exame, mas depois ela não quis repetir. Começou a ter ataques de pânico, gritava, saía a correr, achava que as portas lhe iam cair em cima, que os carros a iam atropelar. Até há pouco tempo não conseguia ter relações sexuais."
Uma espécie de colapso com origens antigas.
"Durante 15 anos, Eva foi violada pelo pai, que também violava uma outra irmã. Era pastor evangélico, reconhecido socialmente. Ela nunca o denunciou. A irmã é uma heroinómana, conheço-a há muito, andava no meu bairro." E a mãe? "Falava sozinha, escutava vozes. Agora o pai tem quase 80 anos e está no estado de Durango, com os sobrinhos, que estão ligados ao narco. Foi ele quem matou o pai do primeiro filho de Eva. Dizia-lhe que se ela não fosse dele não seria de ninguém. Esteve dez anos preso por esse homicídio, e depois deixou a religião."
Quando o outro filho de Eva nasceu, ela já não queria ver homens. "Ficou com aversão. Mas, por ter um filho único, decidiu dar-lhe um irmão. Então propôs a um companheiro da maquila, que já tinha 15 filhos, e numa só relação ficou grávida. Depois nunca mais teve homens. Foi alcoólica, mas nunca tomou drogas. Crê em Deus, é muito crente. Pedia a Deus: "Manda-me alguém." E chegou-lhe esta Ana, que já tinha dormido com várias mulheres. É de uma aldeia de Veracruz que acredita em bruxaria. A mãe diz que ela sempre teve comportamento de homem, e que foi por feitiço. O pai e os irmãos têm problemas com álcool." Quando Eva e Ana se juntaram, as irmãs de Eva deixaram de lhe falar. "A irmã drogada queria matar Ana. Mas os filhos aceitaram-na totalmente. Eva acha que é um pecado muito grande, mas que paga por ele."
O primeiro mundo está cheio de pessoas que têm aborrecimentos. E este mundo está cheio de pessoas que estão vivas não se sabe como, e ainda acham que têm de pagar.
Foi para algumas delas - mulheres em risco - que Esther Chávez Cano fundou a Casa Amiga nos anos 90. As pessoas de Juárez não acreditam nas autoridades, mas acreditam em gente como Esther Chávez Cano. Depois da sua morte (por cancro), a psicóloga Irma levou a Casa em frente. Tem 33 anos, um filho de dez, e recebe ameaças.
Vai buscar as chaves para mostrar o abrigo onde ficam mulheres perseguidas, por vezes com os filhos. Tem de ser secreto, porque os abrigos são atacados por gangues. Para além disso, parceiros de mulheres maltratadas aparecem na Casa Amiga à procura delas. Irma diz sempre que não sabe onde estão. "Um disse-me: "A sua vida vai tornar-se num inferno, investiguei tudo sobre si, já sei que vive no centro." Nesse dia, eu nem queria sair do escritório."
Saiu e no dia seguinte, claro, voltou a entrar.
7. O cavalo apanhou Jesus
Outro alvo dos narcos têm sido os centros para toxicodependentes, um fenómeno recente em Juárez, como vai explicar José Rojas, num gabinete cheio de esculturas de Dom Quixote. É um herói bastante adequado à situação, Quixote. O doutor Rojas, de facto, combate a realidade. E a realidade é cada vez maior.Por exemplo, este Centro de Integração Juvenil não tinha grade e seguranças, agora tem.
"Estamos no corredor central do tráfico para os EUA. E ao fim de anos de alto tráfico, Juárez tornou-se também numa cidade de alto consumo, a primeira no México: marijuana, depois cocaína, heroína, anfetaminas e inalantes como gasolina e cola. Recebíamos 20 pedidos de ajuda por mês, passámos para 50, 60. O tráfico entrou por toda a cidade, e pela maquila."
Ponto de viragem, 11 de Setembro. "Quando derrubaram as Torres, a fronteira foi fechada, ficou mais droga na cidade e havia que utilizá-la. Então começaram a utilizar jovens para passar droga aos poucos, e pagavam-lhes com droga. Hoje, qualquer miúdo com 30 pesos [dois euros] tem acesso a uma susbtância."
Perfil do consumo: a maioria tem entre 25 e 60, por cada dez homens há quatro mulheres.
"E a tendência é para aumentar o consumo feminino. Quanto a álcool, já é superior ao dos homens. E nas drogas de uso médico, também." Porquê? É neste ponto que Rojas, também ele, fala na "decomposição social" da maquila, que atraiu muitas mulheres sem que se fizessem, por exemplo, creches. "Os filhos ficaram ao cuidado da TV, ou da avó, ou do pai irresponsável. Há muitas mulheres sozinhas e famílias desintegradas."
Só à volta deste centro, numa parte pobre de Juárez, funcionam "mais de 150 picaderos". Os pacientes são "pressionados" sempre que cá vêm. E o doutor Rojas, tranquilo?
"Tenho o medo normal. Cerca de 90 por cento dos meus pacientes têm antecedentes criminais, e quando se vêem bem atendidos, sem estigmatização, mudam. Isso faz com que nos protejam, nos alertem para os perigos."
Mas há ataques de milícias. Há um ano houve um massacre de 17 pessoas num centro. Não são golpes individuais. "Estamos a investigar porquê. Há a versão de que esses ataques aconteceram porque havia gente lá que ainda tinha contas a ajustar."
Esta é a versão oficial para a morte em Juárez: os que morrem são do narco - o que permite às autoridades continuar a resumir tudo a uma guerra contra os narcos, e muita gente em Juárez continuar a pensar que nada lhe vai acontecer.
E entretanto morrem adolescentes, sapateiros e gente que ia a passar. E a cidade continua com mau planeamento, maus salários, sem parques, sem creches, sem secundárias. E os pobres continuam a sonhar com os EUA porque o seu país não aposta neles. E os ricos continuam a enriquecer, porque a droga continua a passar para os EUA.
O que o doutor Rojas pode fazer de melhor é continuar o seu trabalho, confiando em quem trata. Como pagam eles? "Muitos estão isentos, e muitos pagam quando já estão a trabalhar." Este centro faz parte de uma rede com apoios vários. "A nível nacional há um milhão de curados." E em Juárez? "A taxa de recuperação é mais baixa. No país é 53 por cento, em Juárez 26."
Na manhã seguinte, neste mesmo centro, conversamos com um deles. Um ou uma? Quando Jesus Hernandez abre a porta, não é claro: tem cara de homem sugado pela heroína e peito de mulher que deixou de pôr silicone. Um transexual na ressaca.
Aos 50 anos, sobram-lhe dois dentes em baixo e uma perna boa. A outra ficou torta num atropelamento. História breve: chegou a Juárez aos seis anos, fala da mãe e de oito irmãos, a mãe limpava casas, Jesus também limpou casas, fez a primária e pronto. "Não houve dinheiro para mais, comecei a trabalhar muito menino." Aos 17 estava num bar strip da Mariscal. "Vinham muitos turistas, americanos de cor, japoneses, alemães, chineses, as ruas estavam cheias de clubes. Pagavam-me para beber com os clientes e para dançar. Dormia de dia." E a heroína, o "cavalo"? "Só comecei há dez anos. Antes tomava pastilhas para cima e para baixo, umas 20 por dia." Chegou a gastar 500 pesos por dia [30 euros] em heroína. E a polícia? "A polícia sabe e pede dinheiro aos picaderos." Cada picadero tem os seus polícias. Agora gasta 40 euros por dia com os remédios. "Voltei a limpar casas." Apesar da perna três-vezes-operada.
E até ele, uma rapariga da Mariscal, não reconhece aquilo em que Juárez se tornou. "Quando vou pela rua à noite, tenho medo. A um conhecido, bateram-lhe, amarraram-no e mataram-no. A outro, La Rubi, mataram-no na Mariscal."
Neste mesmo bairro, há um centro de atendimento psiquiátrico em que tudo é pobre, o tamanho das divisões, os acabamentos, o calor que faz e o gabinete do director, Victor Acosta, figura "hemingwayana". Formou-se na UNAM, a grande universidade da Cidade do México. E há 35 anos que segue o que vai pelas cabeças de Juárez.
"Os casos não mudaram muito. O que há é uma paranóia generalizada: "Estão a vigiar-me. Quem são aqueles ali estacionados? Aquele carro já me seguiu dois quarteirões." Só a presença da polícia ou dos soldados já nos põe em alerta. Não estamos em estado de sítio mas temos uma guerra declarada. Os rapazes já não podem andar seguros, os papás não estão tranquilos, as festas fazem-se em casa porque eles matam-te num bar."
E que dizem as pessoas sobre quem morre? "Que andam metidos no narco. Mas a quantos tocou que não deviam nada? E as extorsões, os sequestros, as ameaças? Acha que as autoridades vão fazer caso se telefonarem a dizer que me vão matar? É uma sociedade que quer estar bem, mas o medo impede que se organize. O medo cria medo. Pode ser até uma táctica, não sei de quem. Para criar medo de sair, de protestar."
8. Repórteres na fronteira
"Estamos a viver uma violência tão extrema que está em todos os lugares, na rua, na escola, no supermercado, e essa cartografia das execuções mostra como toda a cidade está infectada, e o facto de não se poder combater diz como as autoridades estão infectadas", resume o antropólogo Carlos Herrera. "É justa a percepção de que o narco infiltrou a polícia, o Exército, a política, mas o mais grave é que como sociedade estamos profundamente infiltrados."Pouca gente fará ideia tão clara disso como os repórteres locais. Juárez desenvolveu uma especialidade de reportagem: execuções. Jornais, rádios, sites e televisões locais têm repórteres que só fazem isso, e por turnos.
Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, o "México é o país ocidental mais mortífero para os media e um dos mais perigosos do mundo". Desde 2000, foram mortos 67 jornalistas, e só este ano já morreram dez. "Os jornalistas no México vivem agora em constante medo de serem raptados, torturados e mortos. A violência é encorajada pelo facto de que aqueles que matam quase nunca são punidos." Se é assim no país em geral, mais ainda em Juárez.
Sigamos um veterano do vespertino PM.
Está sentado ao volante, a receber informações por telemóvel, chama-se Ernesto. A seu lado, um jovem de rabo-de-cavalo, com uma máquina fotográfica. Carro modesto e com muito andamento. Uma rapariga foi algemada pelos federais. Eles arrancam à procura da casa. A história vai dar em nada, depois de muitas ruas e telefonemas. O ar está eléctrico.
"Ontem prenderam o líder dos "aztecas"", diz Ernesto. E há dois dias os federais chatearam um repórter que fotografou aquele polícia baleado. "Disseram que o iam matar." Então Ernesto telefona-lhe, a perguntar se não quer vir ter connosco à loja de conveniência Del Rio.
"É um ritual", explica Julián Cadona. "Quando andas a cobrir as execuções, a meio do dia paras aqui, comes qualquer coisa."
Ao fundo da loja há comida feita e mesas de plástico. Os repórteres sentam-se a comer burritos e frango.
"A gente da cidade habituou-se a ligar, quando acontece algo", diz Ernesto. "Outra fonte boa são as funerárias." E a polícia? "Também, mas os federais são de fora da cidade, não temos relação com eles." Não acompanham patrulhas, como fazem os jornalistas estrangeiros que vêm a Juárez. Por quem se sentem protegidos? Ernesto sorri, aponta para o céu. "Estamos sozinhos, metidos numa guerra e somos os mais próximos. Recebemos avisos. Já me avisaram de arma na mão. Há dias em que me sinto aterrorizado. A um companheiro que fazia o turno da madrugada, puseram-lhe uma arma na cabeça para que ele não publicasse as fotos de um "sicário"." E o que é que ele fez? "Não publicou. Mas normalmente publicamos."
Numa cidade assim, o jornalismo torna-se colectivo. "Agora chegamos todos juntos ao local de uma execução. Somos uns 20 a 25 repórteres sempre em contacto. Já não há exclusivos." E o narco joga com os media. "Aproveitam o horário das notícias. Utilizam-nas para comunicar baixas ao inimigo."
Chega o repórter Ricardo, do El Diário. "Não fiz denúncia dos federais. Estava um deles morto no chão e sentiam-se impotentes. Posso compreender." E a relação com eles, em geral? "É tensa." Mas pior é o medo, em geral. "Porque não sabemos quem são os maus, realmente. Não sei quem vai estar por trás daquela pessoa, se um malandro ou um narco. E a forma de matar é cada vez mais sanguinária. Partem os corpos, cortam-nos, exibem-nos, fazem-lhes desenhos, metem-se com as famílias."
Impunidade, outra palavra para Juárez.
9.Os agentes da lei
"Ainda agora detivemos El Camello, um dos principais líderes dos "aztecas"", diz o cordial porta-voz da Polícia Federal, José Salinas Frías, sentado na sede de Juárez. "Mas se neste momento houver três homicídios, as pessoas dirão: "De que serve, se as execuções continuam?" Posso dizer que, desde 9 Abril, detivemos três grupos de sequestradores, com mais de 30 detidos e 20 sequestrados libertados."O problema é que entretanto centenas de pessoas foram mortas e milhares de homicídios para trás continuam sem responsáveis. E parte dessa impunidade é atribuída à ligação entre o narco e a polícia.
"É uma questão de dinheiro, há muitos interesses, e procuram comprar autoridades locais, municipais", reconhece este porta-voz. "E é por isso que atacam a Polícia Federal, encontraram resistência em nós." Está a dizer que não há federais envolvidos? "Há federais que definitivamente se esquecem de que vêm servir e se servem a eles. Até agora temos 19 federais julgados e presos por se desviarem das suas responsabilidades. Temos de dar esse exemplo."
Os polícias locais ganham mal, e é assim que o narco os apanha. A regra dos federais é rodarem de três em três meses e terem salários mais altos: "Somando tudo, 18 mil pesos [um pouco acima de mil euros], mais refeições e estadia todas pagas." Muito acima da média no México.
Ao contrário do Exército, que misteriosamente parece imune, os federais têm sido de facto alvejados. E no começo de Julho, quando já estivermos noutra parte do México, serão atacados com um carro-bomba. Vários observadores alertam para o que parece uma nova etapa da violência: narcoterrorismo. Mas os políticos rejeitam a ideia.
Outro alvo frequente: a Procuradoria. Há quase seis anos que a mais alta autoridade judicial do Estado, a procuradora Patrícia Gonzalez, aqui está baseada. "Houve um grande abandono de todos os governos nesta parte da fronteira", começa por dizer. É uma mulher acima dos 50, coquete e nervosa. Quando perguntamos quantos anos tem, sorri: "Muitos." Chega de casaquinho e mala de folhos, perfeitamente maquilhada. Não traz guarda-costas. E na sala, durante a entrevista, fica só o assessor de imprensa.
"Claro que há impunidade. Cometeram-se milhares de homicídios. Mas neste momento temos já 1500 casos em Juárez esclarecidos nos últimos dois anos." Houve um reforço de 50 por cento de investigadores, anuncia.
"Sim, o narcotráfico está dentro de grande parte do sistema social. Houve uma penetração muito forte de décadas. E obviamente há infiltração nas polícias, nos organismos que têm a ver com segurança. E na sociedade. Há uma grande dissimulação social quanto ao narco." Mas a mudança de sistema de justiça, crê a senhora González, vai combater isto. É o seu grande orgulho, a passagem para um sistema acusatório neste estado: cabe à acusação provar a culpabilidade, deixa de haver espaço para extrair confissões.
Entretanto, vários funcionários seus foram mortos. Não tem medo? "Nenhum, sou uma profissional." E volta à revolução que levou a cabo, com os modernos laboratórios forenses.
10. Os mortos vivos
Então daí a meia hora, estamos noutra ponta da cidade, na sala onde se guardam as balas apanhadas desde 2008, na sala onde se comparam disparos, na sala da supermáquina doada pelos EUA que faz um mapa genético de cada bala. Daí seguimos para a morgue, onde a doutora Alma Rosa tomará conta de nós. E, finalmente, o orgulho do orgulho do novo sistema judicial de Juárez, Alejandro Hernández Cardenas, 53 anos.É um pequeno homem moreno, de bata branca, óculos, gravata e bigode, saído dum filme de Woody Allen dos anos 70. Um homem - vê-se - que vive para a ciência. Filho da cidade, odontologista, mestre forense.
Os seus domínios começam ao lado das autópsias. Na porta está escrito: "Área de Re-hidratação de Tecidos." Entramos e ele abre as luzes. Tudo reluz de limpeza. Prateleiras com uma espécie de tupperwares de vários tamanhos. "Estes são para dedos, estes para mãos, estes para cabeças e estes para braços", explica. "Comecei com dedos, para recuperar a impressão digital, e depois continuei."
Recua para apontar o recipiente de acrílico ao centro, grande como um caixão. "Julgamos que este é o primeiro laboratório no mundo para a re-hidratação de tecidos, e já podemos reconstruir um corpo completo." Morto há quanto? "O mais antigo que trabalhei tinha morrido há dez anos. Mas creio que vai funcionar em cadáveres de há 200 ou 300 anos."
Em suma, o que o doutor Cardenas inventou foi uma solução química para mergulhar tecidos mumificados. Ficam quase como quem acaba de morrer.
E aquele duche verde na parede? "As soluções são agressivas, e se me salpicar tenho de tomar um duche logo."
Agora vamos ver imagens. Todas as experiências, desde os primeiros dedos, foram filmadas, e a Procuradoria produziu um vídeo. "Nos cadáveres deixados no deserto, a pele fica a parecer cartão, não se conseguem ver as características da cara, a pele muda de cor", explica o doutor Cardenas enquanto põe o filme no computador.
"Você será testemunha de um mundo mágico...", anunciam as letras no ecrã. "De algo muito especial.... Um feito surpreendente..."
O surrealista Breton disse que o México era o país mais surrealista do mundo, e nem sequer foi a Juárez. Em Juárez pensamos nisso, e em Tarantino, mas um Tarantino que nunca existirá. Quando a arte tocar nesta realidade, a realidade já estará longe.
"Vê estes dedos?", pergunta o doutor Cardenas. "Comecei com eles há sete anos, os resultados são bons, mas não ideais." Vê-se um dedo encarquilhado e a seguir um pouco rejuvenescido. "Depois, os antropólogos do laboratório encontraram uma orelha numa exumação, e a orelha é uma parte muito característica, não há duas iguais." Vê-se a orelha re-hidratada, mais carnuda, com vestígios de brincos. "Depois, os antropólogos encontraram esta pele que estava há dois anos no deserto." Vê-se o que parece pergaminho. "Os ossos estavam dispersos e a pele ali ficou, talvez os animais a tenham arrancado. Re-hidratámo-la." Vê-se o que parece pele de porco com cortes. "Está a ver? A pele demonstra como a morte foi violenta. E que ela tinha sardas nas costas. E aqui o umbigo. E, como se fez uma identificação mais rápida, conseguiu deter-se o indivíduo. Fomos ver quem andava à procura de desaparecidas."
Correu bem. Muita gente nem faz queixa.
"Então, depois de re-hidratar tudo isto, eu queria re-hidratar um corpo inteiro. Está a ver esta mulher?" Primeiro, vê-se uma autêntica múmia do Egipto. Depois, uma mexicana com lábios de contorno tatuado e sobrancelhas depiladas. "Era uma mulher que se cuidava." E ainda mostra órgãos re-hidratados: "Vê aqui o fígado? Se a pessoa morreu de cirrose, percebe-se ao re-hidratar. Isto é um pulmão, isto o baço, isto é sangue." Ver o que resta de um desaparecido é terrível, mas acaba com a dúvida. "A senhora procuradora disse-me para fazer o processo de patente." O doutor Cardenas acredita que a sua fórmula ajudará a dor de Juárez. Talvez mesmo a História. "Em Guanajuato há umas múmias, interessar-me-ia trabalhar lá. E do Egipto, bastava que me emprestassem um dedo do pé."
Isto é a realidade em Juárez, e de certa forma a sua própria ficção, para conseguir aguentar um dia após outro.
Regressamos com noite escura à Procuradoria, onde Julián deixou o carro. Passa das 21h. Pelas 22h30, um grupo de "sicários" intercepta o carro da subprocuradora Sandra Ivonne Salas. Mais de cem balas são disparadas. Morrem ela e um guarda-costas. São os 16.º e 17.º cadáveres do dia. a
alcoelho@publico.pt
Esta reportagem é o início de uma travessia pelo México, de norte a sul. Continua no P2, diariamente. Amanhã, "Batallones Femininos, circo e rap em Juárez".