Torne-se perito

Entramos por uma fenda e temos um auroque à espera

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As estrelas do museu são os desenhos NUNO OLIVEIRA

As gravuras paleolíticas "não eram arte pela arte, eram uma forma de comunicação". Para nós são ainda um mistério

a Deixamos a luz e entramos na escuridão. A rampa que nos leva ao interior do Museu do Côa parece conduzir-nos ao coração de uma imensa pedra - lá dentro é fresco, e escuro. Ao fundo, numa parede, vemos a cabeça de um auroque, um bovino já extinto, a olhar para nós. O olhar é triste, expressivo. Ele já nos viu antes de nós o vermos. Avançamos e vamos descobrindo o resto do corpo.

Este auroque que nos recebe (pensará que somos ainda caçadores paleolíticos?) foi desenhado talvez há 20 mil anos, numa pedra, por um habitante do Vale do Côa. Agora a réplica do desenho, aumentada e desenhada em tinta fluorescente na parede escura, é o princípio da história que este museu quer contar.

"A ideia foi cruzar a arte paleolítica com outras formas de expressão", explica a engenheira Lúcia Brito, que coordena o grupo de trabalho responsável pela musealização e que envolveu para a criação de conteúdos a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Universidade do Minho, e a Universidade Nova de Lisboa. Daí que logo na primeira sala, num grande painel onde cores, palavras e desenhos se misturam, apareça, por exemplo, de cachimbo na boca, a figura inconfundível do Monsieur Hulot, de Jacques Tati, junto a um desenho paleolítico, e a uma frase de Florence Mèredieu: "Uma forma insistente, um objecto nomeável capaz de atravessar os séculos."

Como fazer um museu - o que aqui temos não é um simples centro de interpretação -, quando as obras de arte estão lá fora, no vale do rio Côa, onde podem ser vistas debaixo de um sol muitas vezes inclemente? A opção foi ter um museu que se apoia muito em material audiovisual - ecrãs tácteis e interactivos, filmes, material gráfico. Mas que mostra também peças autênticas: placas soltas gravadas com desenhos pelos homens do Paleolítico (que podem ser vistas com a ajuda de enormes lupas) e materiais encontrados nas escavações do Côa e que ajudam a perceber o ambiente e o estilo de vida dos homens que habitaram o vale há 20 mil anos.

Há ainda réplicas em tamanho natural das rochas mais significativas. E aí, quem não puder ou não quiser ir de jipe até ao vale (actualmente o Côa tem 17 quilómetros classificados, mas conhecem-se gravuras numa extensão de 24 quilómetros, e há três núcleos visitáveis), pode ver uma cópia exacta do que os homens do Paleolítico ali deixaram gravado.

E por que é que eles desenhavam sempre animais de caça, de grande porte, e em muitos casos, sobrepostos, na mesma pedra, numa confusão de dorsos, cabeças e patas, quando, mesmo ao lado, tinham uma pedra lisa e perfeita para ser gravada? "Não é arte pela arte. É uma forma de comunicação", afirma Dalila Correia, arquitecta do Parque, que nos acompanha na visita ao museu. A rocha escolhida para ser gravada tinha por si mesma um significado, que hoje desconhecemos.

"Não se pode dizer que seja uma sinalética, mas não há dúvida de que eles olhavam para estas representações e percebiam todo o contexto por detrás delas." Gravar era uma tarefa importante. "Não era qualquer pessoa que gravava, tinha que ser alguém com determinado estatuto dentro do bando", sublinha Dalila.

O que se sabe é que este tipo de arte surge quando o homo sapienssapiens entra na Europa, vindo originalmente de África mas através da Ásia. Grupos diferentes começam a desenhar, em diferentes pontos da Europa, animais muito semelhantes. "A arte paleolítica tem exactamente as mesmas características, tanto temáticas como estilísticas", continua Dalila Correia, "e isso prova que há contactos entre os diferentes grupos e que é uma espécie de mensagem a um nível europeu."

Guerreiros do Ferro

É tudo isso que o museu quer mostrar nos painéis que se sucedem nas várias salas - como era a vida no Paleolítico, como caçavam, como se vestiam, como se abrigavam estas comunidades; que outros núcleos paleolíticos existem na Europa; como se percebem as semelhanças estilísticas para definir uma "escola" (como se faz com outros movimentos artísticos mais recentes); como é que os arqueólogos estudam o contexto e o interpretam (haverá também um serviço educativo e oficinas para quem queira perceber na prática o que é a arqueologia).

Além disso - e na lógica de que esta é também uma história da comunicação humana -, o museu integra outras intervenções que ao longo do tempo foram sendo feitas no Vale do Côa, desde os guerreiros da Idade do Ferro, com grandes falos, lanças na mão e cabeças de pássaro ("o Côa tem a maior colecção de arte da Idade do Ferro da Península Ibérica", lembra Dalila Correia e os desenhos correspondem exactamente às descrições dos lusitanos feitas por Estrabão), até aos pastores contemporâneos, passando pelas representações antropomórficas (figuras a cheio, de longas pernas, pintadas a vermelho) do período do início da sedentarização. E ainda, numa caixa de madeira "à Indiana Jones", um esqueleto com cerca de cinco mil anos que os arqueólogos baptizaram carinhosamente como "senhor Lopes".

Há, por fim, arte contemporânea - intervenções de dois artistas convidados, Alberto Carneiro e Ângelo de Sousa, e, na sala de exposições temporárias, a exposição Gesto e Inscrição (até Janeiro de 2011), com obras de artistas portugueses pertencentes à colecção da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, que mostram "aspectos que se aproximam nas formas de expressão na arte contemporânea e na arte pré-histórica".

Mas as verdadeiras estrelas do museu são os desenhos que a luz negra faz saltar das paredes: a figura humana (uma das raras representações que se conhecem) que parece uma mulher; a cabra de duas cabeças (que mostra como os gravadores paleolíticos já tinham a noção do movimento), os guerreiros-pássaros da Idade do Ferro, ou o auroque de olhos tristes. Imagens gravadas na rocha há milhares de anos e que não se perderam no tempo.

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