Hoje é o "dia D" para o ambicioso projecto anunciado no início do mês pelo YouTube e pelos realizadores britânicos Ridley Scott e Kevin Macdonald: contar a história de um dia na vida do mundo inteiramente através de filmes feitos por gente normal,
A partir de hoje e até ao próximo dia 31, o site está aberto a receber todo o tipo de vídeos, rodados ao longo das 24 horas do dia (consoante, evidentemente, o fuso horário em que se encontrar), que retratem um momento da vida dos seus utilizadores/autores. As imagens serão enviadas através de uma página especialmente criada pelo site (www.youtube.com/lifeinaday), destinado ao envio e posterior visionamento das imagens.
Seguir-se-á um processo de triagem e selecção que Macdonald, o documentarista britânico vencedor de um Óscar por One Day in September e realizador de O Último Rei da Escócia e Ligações Perigosas, irá montar numa longa-metragem com estreia mundial no festival de Sundance em 2011. Durante este processo, todos os vídeos enviados poderão ser vistos na página do filme, uma ideia do fotógrafo Rick Smolan, especializado neste tipo de eventos globais e criador da série de livros de fotografia A Day in the Life, que agrupam fotografias tiradas num mesmo estado durante as 24 horas de um só dia.
Este não é o primeiro exemplo de um filme criado através do crowdsourcing, designação dada ao processo de concentrar a multidão de utilizadores da Internet num objectivo comum (ver texto ao lado).
Sinfonias dos anos 20
Mas o que há de mais interessante no projecto de Life in a Day, ao qual Ridley Scott, o realizador de Alien, Blade Runner, Gladiador e do recente Robin dos Bosques, deu o seu apadrinhamento como produtor, é o modo como invoca uma era pioneira e esquecida do cinema. A sua ambição de construir um mosaico audiovisual de um dia na aldeia global remete directamente para as "sinfonias citadinas" dos anos 1920 - filmes que procuravam mostrar um dia na vida de uma cidade, documentários narrativos quase abstractos onde a cidade era protagonista e as imagens eram montadas na sequência dos acontecimentos de um dia.
O mais célebre desses filmes, o verdadeiro iniciador do género, foi A Sinfonia de Uma Capital (1927), um dia na vida de Berlim rodado por Walter Ruttmann. Mas está longe de ser caso único, já que outras cidades tiveram direito às suas sinfonias (Nova Iorque ou Moscovo, entre outras) e um clássico como O Homem da Câmara de Filmar (1929), de Dziga Vertov, tem muito em comum com essa estética.
Esses filmes, provenientes de uma época em que não existia ainda uma "divisão" entre o cinema "popular" e o cinema "de arte", são hoje mais recordados como experiências formais, meras curiosidades de valor essencialmente histórico, embora seja profundamente redutor vê-los apenas como tal (a sua influência pode, por exemplo, ser sentida no teledisco que Jonas Akerlund dirigiu para o tema de Madonna Ray of light, onde um dia na vida de uma metrópole global é compactado em apenas cinco minutos de imagens aceleradas). E não são poucos os observadores - sobretudo provenientes da escola teórica francesa - que vêem as novas tecnologias como uma possibilidade de reencontrar a inocência criativa e o embalo original do cinema, tal como os irmãos Lumière o fizeram nos primeiros dias da imagem em movimento.
O velho sonho da democratização das imagens dá por si reacordado através da democratização da tecnologia - desde as pequenas câmaras incorporadas em grande parte dos computadores actuais até câmaras vídeo (como a Flip Mino) desenvolvidas propositadamente para facilitar a disponibilização de imagens on-line, passando por câmaras fotográficas semiprofissionais e telemóveis de gama média que já permitem fazer vídeos de boa qualidade. O francês Quentin Dupieux rodou todo um filme, Rubber, com a câmara Canon EOS 5D Mk II, e o encenador Pippo Delbono rodou La Paura num telemóvel...
Muitas destas experiências estão a ser feitas no âmbito de um cinema mais experimental, mas convirá, por exemplo, recordar aqui o exercício pioneiro do veterano Brian de Palma (Vestida para Matar, Os Intocáveis), que, em 2007, assinou com Censurado uma ficção sobre o conflito do Iraque inspirada directamente no modo como as imagens "não oficiais" colocadas on-line revelavam o outro lado da guerra. De Palma admitia que o filme nascera da Internet e não precisava de ser visto em grande ecrã para manter todo o seu impacto.
Triagem complicada
O que não deixa de levantar questões interessantes sobre o que vai sair deste projecto. No documento on-line onde o YouTube publica as regras do envio de imagens, as únicas referências são à estreia mundial no festival de Sundance em Janeiro de 2011 e à "publicação" do projecto no YouTube - fica por esclarecer se está prevista uma exploração comercial em salas, na televisão ou em home video.
O que fica bem explícito, pelo contrário, é que não existirá nenhum tipo de retribuição financeira para os autores das imagens seleccionadas, e que todos os direitos de exploração mediática dessas imagens no contexto do filme ficarão perpetuamente em posse da Life In a Day Films. Todos terão direito ao seu "momento de glória" através de um crédito no genérico final, e os 20 colaboradores com mais material incluído na montagem final serão convidados pela produção a assistir à estreia em Sundance.
Promete ser uma triagem complicada - com mais de três milhões de visitas ao canal oficial desde que o projecto foi anunciado no início do mês, tudo aponta para que sejam precisos muitos dias de trabalho para condensar "a vida num só dia"...