A intangível
A Constituição, para lá de muita ideologia, tem parágrafos de programa de Governo. E isso, sim, é um problema. E grande
A proposta de revisão constitucional causou um sobressalto num país farto de crises e casos e que, da esquerda à direita, tem uma crença no poder genesíaco das leis que só encontra paralelo no fervor que os fundamentalistas islâmicos devotam ao Corão, enquanto verdade revelada. Não por acaso o PSD acha que, mudando a Constituição, nos mudaria a vida e muito menos por acaso, entre os indignados com a proposta de rever a constituição, se reage como se nos idos de 1976 uma qualquer divindade tivesse ditado todo aquele articulado aos deputados da Constituinte. Mudá-lo cai, portanto, no domínio da heresia ou, politicamente falando, no campo do golpe de Estado. Desde a primeira revisão constitucional, que teve lugar em 1982, que a acusação de golpe de Estado se abate sobre os autores das propostas de revisão. Esta acusação teve mesmo um lado institucional com o Comité Central do PCP a produzir um comunicado em que acusava a AD de orquestrar um golpe de Estado através da revisão constitucional. Note-se que até 1982 o Conselho da Revolução (CR) funcionava como Tribunal Constitucional e exercia uma tutela sobre o Governo, a Assembleia da República e sobre o próprio Presidente da República, cujos poderes eram maiores do que os actuais mas sempre em articulação com o CR. Até 1989 não podia existir televisão privada em Portugal e ainda hoje a Constituição nos impõe não apenas o socialismo mas também que combatamos os latifúndios. É claro que agora ninguém se preocupa com o golpe de Estado contra o Conselho da Revolução mas imediatamente se ouviu falar do dito golpe a propósito do proposta social-democrata do fim da gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde.
Num primeiro olhar, a Constituição portuguesa é uma prova do que pode ser um país preso na retórica revolucionária: apesar de o PCP ter sido o grande derrotado das eleições de 1975, o texto da Constituição assegurou por via legal aquilo que o PCP não impôs por via revolucionária. Mas o problema da Constituição não são as sobras daquilo que bondosamente se define como folclore do PREC e tiques de bloco central subjacentes às revisões de 1982 e 1989. A questão é muito mais profunda e muito mais transversal politicamente falando, pois a Constituição, para lá de muita ideologia, tem parágrafos de programa de Governo. E isso, sim, é um problema. E grande.
Andamos, por exemplo, todos muito animados a discutir se na Constituição o despedimento deve ser permitido por "razão atendível" ou por "justa causa" mas cabe perguntar se este detalhe deve ser inscrito numa Constituição. Não deve. Essa é matéria para os programas dos partidos e sobre a qual os próprios partidos vão actualizando o seu discurso e as suas propostas em função da realidade, pois aquilo que é possível ou válido numa década já está desactualizado na seguinte.
Dir-se-á que a realidade acaba por se impor. Tal como aconteceu em 1989, quando, perante a evidência de que nas aldeias da raia já ninguém via a RTP mas sim os canais espanhóis e que os telhados das cidades se enchiam de parabólicas, se revogou finalmente o artigo da Constituição que proibia a televisão privada, também no século XXI acabaremos a constatar que num país em que há mais velhos do que crianças não é possível manter um SNS gratuito. Como se percebe, este lado executivo da nossa Constituição - que a leva a definir custos ou ausência deles para os serviços de saúde e ensino - tem consequências muito mais danosas na vida dos portugueses do que aquelas disposições anedóticas do tempo do PREC sobre a televisão privada, pois é óbvio que ser colocado perante a evidência da falta de financiamento para a segurança social ou para o SNS é muito mais grave do que ter apenas televisão pública.
O lado ideológico da Constituição atrasa-nos a vida. O lado executivo da Constituição complica-nos a vida. Mas não só. E aqui chegamos ao que é realmente preocupante: este lado executivo da Constituição acentua a ruptura entre as gerações que viram constitucionalmente garantidos serviços universais e gratuitos ou empregos para toda a vida e os jovens que pagam e sofrem o reverso de todo esse garantismo. Os "recibos verdes", a dívida do país que terá de ser paga, os seguros de saúde, os planos poupança-reforma, a subcontratação que fazem parte da vida das gerações mais novas são o reverso dos garantismos constitucionais usufruídos pelos mais velhos.
Houve uma geração que se sentou em 1976 na Constituinte e que fez as revisões de 1982 e 1989. Essa geração achou que a nossa Constituição devia ser uma espécie de programa governamental virtuoso vertido sob a forma de lei fundamental. Da esquerda à direita não pareceu nem parece incomodar que a Constituição faça de programa de Governo. A factura social e económica dessa parte executiva da Constituição foi endossada às gerações futuras. Será delas e não de nós que virá o grande julgamento sobre esta Constituição.
P.S. 1: Se o PSD quer fazer respeitar a sua proposta de revisão constitucional, então deveria apresentá-la enquanto tal e não colocar umas fontes a esquartejá-la em sound bytes para jornalista ouvir.
P.S. 2: Foram necessários mais de 20 anos para que voltássemos a falar da Constituição, pois as revisões de 1992, 2001, 2004 e 2005 surgiram-nos como acertos impostos pela nossa integração europeia. Lastimavelmente já nem recordamos que a revisão de 2005 se prendia com o referendo ao Tratado de Lisboa que depois acabámos por não poder votar porque era muito urgente e muito complicado. (Esta decisão foi um erro profundo e que a UE pagará caríssimo, pois o pior que pode acontecer a uma Constituição não é ter um percurso difícil, é, sim, ser ignorada.) Convém também não esquecer que em 2008 aconteceu em Portugal uma revisão constitucional. É certo que não aconteceu como devia, mas aconteceu. Refiro-me à aprovação do Estatuto dos Açores, que implicou a diminuição dos poderes do Presidente da República e da Assembleia da República e o aumento dos poderes da Assembleia Legislativa dos Açores. Ensaísta