Selvagem Grande, a ilha das cagarras

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Mais de 70 cientistas estiveram na maior expedição de sempre às ilhas Selvagens DR

Agora que acabaram de tomar o pequeno-almoço no alpendre da casa encravada no sopé da Selvagem Grande, com vista para a baía das Cagarras, estão preparados para subir a encosta quase a pique da ilha e continuar o trabalho que os trouxe até aqui.

Avançam escarpa acima, uma parede castanha árida que, num repente, brota mais de 100 metros do mar como o dorso de um animal marinho, com cabeça e cauda mergulhadas na água. Paulo Catry segue na dianteira, chapéu e mochila às costas, Ana Almeida de lenço na cabeça e também mochila, e pelo trilho íngreme delimitado por pedras, ziguezagueando como equilibristas, cruzam-se a cada passo com os principais habitantes da ilha - as cagarras, aves marinhas, migradoras admiráveis.

Daqui elas têm vista privilegiada: os ninhos que fizeram nos buracos na escarpa escancaram-se para um azul imenso. Ao longe, a 11 milhas, podem aperceber-se de um pedaço de terra tão esborratado que mal se distingue entre o mar e o céu, a Selvagem Pequena, apenas com 20 hectares e 49 metros de altitude máxima. Ao lado, mais pequeno ainda, fica o ilhéu de Fora.

E lá em baixo, deparam-se com a rampa que permite o desembarque de botes entre os rochedos na Selvagem Grande, com a casa dos dois vigilantes da natureza sempre presentes, os únicos habitantes humanos, mais a única casa privada da ilha uns metros acima na falésia - e, nos últimos dias, com um cenário nunca antes presenciado.

Há agora um colorido de tendas no terreiro em frente à casa dos vigilantes e no pátio da casa privada, além de estendais com roupa dos 19 recém-chegados à Selvagem Grande, ilha do arquipélago da Madeira. Desembarcaram no fim de Junho por uma semana para inventariar a fauna e a flora marinhas (na semana anterior, fizeram o mesmo na Selvagem Pequena).

Sem telemóveis, sem Internet, sem água doce para tomar banho ou uma praia, e sem um produto muito desejado por quase todos - queijo, que viria a protagonizar uma peripécia -, os cientistas vieram vasculhar a ilha, desde o topo do planalto até aos cinco metros de profundidade, passando pela zona entre marés. Podem sempre contentar-se em pôr um postal no marco de correio no alpendre da casa dos vigilantes, com carimbo das "Selvagens, Portugal" (vai é demorar até ao destino, uma vez que os vigilantes são rendidos a cada três semanas e é nessa altura que levam a correspondência num navio-patrulha até ao Funchal).

Indiferentes aos passos de Paulo Catry e Ana Almeida, as cagarras chocam os ovos. Enquanto um dos elementos do casal permanece no ninho, o outro viaja durante uma semana no mar alto à procura de alimento. Depois ficam juntos alguns dias e revezam-se.

É pelas cagarras que os cientistas caminham pela encosta abrupta - esta manhã, mais uma vez. Sem se deterem nos ninhos do varandim panorâmico, dirigem-se para as que optaram por se instalar no topo da ilha, mesmo no centro.

Nova paragem, agora numa parte mais plana do trilho, quase, quase no topo, uff. Avistam-se os três navios da expedição que assentaram arraiais ao largo deste pedaço de terra, e que representam três tempos da descoberta e exploração dos oceanos pelos portugueses: a Vera Cruz, réplica das caravelas dos Descobrimentos, da Associação Portuguesa de Treino de Vela; o veleiro Creoula, construído nos anos 30 como bacalhoeiro na Terra Nova e agora ao serviço da Marinha; e o navio oceanográfico Almirante Gago Coutinho, também da Marinha, equipado com tecnologias do século XXI, de que o Luso, veículo não tripulado que mergulha até aos seis mil metros, é a estrela principal.

O que faz tanta gente nesta ilha e à sua volta? Em terra e no mar, mais de 70 cientistas inventariam a biodiversidade marinha, naquela que é a maior expedição científica às ilhas Selvagens, 163 milhas náuticas a sul da Madeira e apenas 82 a norte das Canárias. O extremo sul de Portugal é aqui. A pergunta é: porquê uma expedição às Selvagens e não a outro sítio qualquer?

As cagarras são a expressão mais visível da biodiversidade das Selvagens (e audível, dirá quem dorme nas tendas). Ou não albergasse a Selvagem Grande a maior colónia mundial desta ave do tamanho de uma gaivota - desde o final de Fevereiro, quando chegam as primeiras para a época de nidificação, até Novembro, quando partem as últimas.

A equipa de Paulo Catry, de 42 anos, ornitólogo do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), em Lisboa, estuda-as há cerca de sete anos. Por vezes, vira-se na escarpa e explica o seu trabalho, uma oportunidade para quem o acompanha recuperar o fôlego. "Há cinco anos contámos todos os ninhos de cagarras, por isso sabemos que os casais que nidificam na ilha são 30 mil."

É também possível saber o número aproximado de cagarras na Selvagem Grande porque lhes têm posto anilhas (serão, assim, mais de 60 mil). "Como têm uma taxa de sobrevivência elevada, a maior parte já foi anilhada. Há aves cuja idade é superior a 30 anos."

Nesta história há um nome incontornável: Paul Alexander Zino, ornitólogo de origem inglesa natural da Madeira, que luta pela preservação das cagarras das Selvagens. Participa na primeira expedição científica multidisciplinar: em Julho de 1963, o director do Museu Municipal do Funchal traz às Selvagens um grupo de cientistas europeus e, quando regressa ao Funchal, Zino quer salvar as cagarras.

Nesses tempos, são um pitéu: apreciadas na Madeira pelos pescadores, organizam-se campanhas sazonais de recolha das crias na Selvagem Grande. Espalmadas, salgadas e secas ao sol, armazenam-nas em barricas que seguem para a Madeira. Numa campanha anual, podem matar-se 20 mil juvenis. Os adultos são poupados, senão esta actividade económica acabaria. Nada se desperdiça: das penas fazem-se colchões e até os excrementos se aproveitam como adubo.

As Selvagens são na altura propriedade privada: concedidas a quem se distinguiu nas conquistas além-mar, em 1904 acabam por ser vendidas pelos herdeiros ao banqueiro madeirense Luiz da Rocha Machado. Por oito mil escudos, ou 40 euros.

Na última caçada, que parte do Funchal em Setembro de 1967, o declínio das cagarras é tal que já só se apanham 13 mil. Nesse ano, Zino compra a licença de caça por alguns anos, quer que a colónia recupere. Tem também autorização do proprietário para construir a primeira casa da Selvagem Grande, como apoio ao estudo das cagarras, que o filho de Zino, médico e ornitólogo, ainda mantém.

As anilhagens começam a partir de 1968, com Zino, entre outros ornitólogos portugueses e franceses. Ele defende que as Selvagens sejam uma reserva natural e, em 1970, negoceia a sua compra pelo Fundo Mundial para a Vida Selvagem (WWF), associação internacional de defesa da natureza. Mas, em 1971, o Estado português prefere comprá-las - por 1500 contos, ou 7500 euros (450 mil euros, no valor actual). Nesse ano, são classificadas como reserva natural.

Não restam muitas aves anilhadas nos primeiros tempos, porque em 1976, na ilha até aí sem vigilantes, há uma matança indiscriminada de adultos e crias. "Alguém veio anilhar cagarras em 1976 e, em vez de milhares, encontrou menos de uma centena", recorda Paulo Catry.

Anos sem pisar terra

Vinte minutos de escalada e está-se finalmente no planalto. Não há uma árvore. A vegetação é rasteira ou limitada a tufos, o terreno pedregoso. O ponto mais elevado, o pico da Atalaia, a 163 metros, ostenta o farol. Tudo o que se ouve é o vento que assobia.

Mas encontra-se gente aqui - que tinha até agora os 245 hectares do planalto só para si. Hany Alonso, de 27 anos (do ISPA), e João Pedro Pio, de 22 (colaborador do Museu Nacional de História Natural de Lisboa), ornitólogo e biólogo, andam absortos com os ninhos.

No centro do planalto dispõem-se quatro muros de pedra, com ninhos numerados. Quando chegam Paulo Catry e Ana Almeida, de 30 anos, bióloga marinha, eles já vão no buraco 52 de um dos muros.

Os quatro, a equipa das aves na Selvagem Grande, continuam a ronda pelos ninhos. Há anos que acompanham perto de 400. "Verificamos se estão ocupados e por quem", explica Catry. "Estes muros são quase de certeza anteriores ao século XX. Não se sabe quem os fez, nem quando. Mas deixaram buracos para recolher os pintos."

Como um ritual, passam em revista cada ninho. Ajoelham-se, retiram a cagarra que choca um único ovo, tomam nota do número da anilha, verificam se é o macho ou a fêmea, cortam o pedaço de uma pena e marcam a ave com tinta. Na próxima ronda podem identificar logo se o ocupante é o mesmo e, se for o outro, repetir o ritual.

Querem saber tudo da vida dos bichos. "A sobrevivência, o sucesso reprodutivo, a fidelidade entre casais, a taxa de divórcio - esse tipo de trabalho", acrescenta Alonso.

O casal mantém-se junto para a vida? "Acasalam quase sempre com o parceiro do ano anterior. Há divórcios, mas a taxa é baixa, talvez da ordem dos três a quatro por cento ao ano", diz Catry. Para que querem a pena? "Para análise da composição química e de isótopos." Através da análise de formas de carbono e azoto, pode saber-se onde comem e o quê durante o Inverno. "Não é possível ter informação directa sobre a alimentação nas zonas de invernada, porque elas estão no mar alto", explica Alonso, que faz o doutoramento sobre a ecologia alimentar das cagarras, co-orientado por Catry.

Descobriu-se, através de receptores GPS nas costas das cagarras, que as das Selvagens vão alimentar-se muito longe durante a nidificação. "A maior parte vai à costa de Marrocos, a 400 quilómetros", diz Catry.

Terminada a época de nidificação, os adultos abandonam as Selvagens em Outubro, as crias em Novembro. As ilhas ficam então desertas de cagarras. Os adultos regressam no ano seguinte, mas os juvenis ficam no mar alto. "Só voltam a pôr o pé em terra firme ao fim de três ou quatro anos. Mesmo passados esses anos, estão aqui uma semana, a socializar e a conhecer o sítio, e vão-se embora. Só nidificam em média aos nove anos." Seleccionado o local de reprodução, é raro mudarem.

No Inverno, as cagarras das Selvagens vão até ao largo da África do Sul, mas podem ir até Moçambique e Madagáscar. Algumas, porém, ficam no Atlântico Noroeste, entre os Açores e os EUA.

A equipa de Catry seguiu a migração de 70 cagarras das Selvagens, com um aparelho na pata, e concluiu que têm seis áreas de invernada (além do Atlântico Noroeste, dirigem-se ao meio do Atlântico Sul e às correntes de Agulhas, de Benguela, do Brasil e das Canárias). Um dos juvenis fez algo extraordinário: "Em dois anos, visitou as seis áreas. Andou a explorar o mundo. Voou mais de 30 mil quilómetros por ano."

Nisto tudo, é hora de almoço. É a vez de o grupo das aves cozinhar para os 19 cientistas na ilha, mais aqueles que vêm e vão para os navios, e, por isso, há que descer à casa dos vigilantes. À noite, os quatro tencionam voltar a subir. Querem ter informação directa sobre a alimentação das cagarras. A coisa promete.

Caravelas da descoberta

Há que ter cuidado a atravessar o planalto. "A partir daqui é a colónia de calcamares." Zona interdita aos caminhantes incautos portanto, porque estas aves marinhas que andam sobre o mar, daí o nome, escavam os ninhos no chão arenoso. Só há esta subespécie nas Selvagens.

Desde a erradicação dos coelhos na Selvagem Grande, proliferam também os tufos acinzentados da Schizogyne sericea, planta endémica destas ilhas e das Canárias.

Pouco depois da descoberta das ilhas no século XV, os coelhos e as cabras são introduzidos na Selvagem Grande como fonte de alimento de quem a visita. O navegador português Diogo Gomes é o descobridor oficial, pensa-se que em 1438. Encontra-as com as suas caravelas quando regressa de uma viagem à costa africana, ao serviço do Infante D. Henrique.

Cedo começa a recolher-se urzela, um líquen que cresce nas escarpas, para tingir de púrpura tecidos e papel. Além das cagarras, a pesca e a salga de peixe são fontes de rendimento. Sobrevivem vestígios das tentativas de colonização humana, de que são exemplo os muros de pedra. A inexistência de água doce na ilha ditou o seu falhanço.

As cabras extinguem-se devido à caça no século XIX, mas os coelhos persistem até ao início do século XXI. No fim do século XIX também é introduzida a planta tabaqueira para lenha, mas atinge uma área tal que prejudica as aves marinhas. Está a ser erradicada (desde 2001, pelo que restam poucas), tal como uma outra planta invasora, a Conyza bonariensis.

O Serviço do Parque Natural da Madeira quer preservar os tesouros biológicos das Selvagens, de que é outro exemplo a osga Tarentola boettgeri bischoffi, subespécie que ocorre só nestas ilhas vulcânicas. O Governo Regional da Madeira tenciona recandidatar as Selvagens a património mundial natural da UNESCO (depois de a candidatura de 2002 ter sido retirada por falta de informação sobre a biodiversidade marinha) e esta expedição pode facilitar o processo.

Se até há muita informação sobre a biodiversidade em terra, com as cagarras entre as espécies mais estudadas, a vida neste mar mantém-se bastante desconhecida. Por isso, os cientistas têm batido as costas da Selvagem Grande na zona entre marés, à procura de algas, cracas, peixes nas poças...

Ao mesmo tempo, no Creoula, equipas de mergulhadores vão até aos 25 metros de profundidade recolher exemplares de fauna e flora, fotografar e filmar. Entre os afazeres obrigatórios para todos - limpar o navio ou ajudar na cozinha a escamar douradas e a lavar panelões -, cumprem-se cinco mergulhos por dia. Dispostos em tabuleiros no convés, os exemplares recolhidos são triados, identificados, preservados em frascos.

Entretanto, o Luso, da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC), também tem mergulhado até aos dois mil metros e trazido amostras biológicas, rochas e água.

Todos os dados, das equipas em terra e nos navios, vão sendo inseridos no M@rbis - Sistema de Informação para a Biodiversidade Marinha, desenvolvido pela EMEPC e o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade. O projecto pretende inventariar de forma exaustiva as espécies marinhas em Portugal.

Da passagem pela Selvagem Pequena, antes portanto de a expedição se mudar para a Selvagem Grande, encontram-se ecos no diário pessoal de Mónica Albuquerque, bióloga da EMEPC. "O dia promete ser animado, porque vem muita gente a terra e há o jogo de Portugal [com a Costa do Marfim]", escreve a 15 de Junho, acrescentando que, após o pequeno-almoço, as visitas começam a chegar para ajudar nas saídas entre marés e na recolha de lixo. "Chocou-me o facto de serem ilhas desabitadas, mas com muito lixo provocado pelo homem e que é lançado no mar chegando a destinos tão longínquos como este", anota. "De tarde, a vida em terra foi abalada com a chegada de 30 ou 40 pessoas para verem o jogo. Conseguiram mesmo trazer do Creoula uma televisão maior."

A noite dos vómitos

Voltando ao almoço preparado pelo grupo das aves, atum com batatas e ovo cozido vai ser servido numa mesa ao correr do alpendre na casa dos vigilantes. Por esta altura, já muitos andam desejosos de queijo.

A saga das bolas de queijo começou uns dias antes entre Mónica Albuquerque, em terra, e Manuel Pinto de Abreu, o responsável pela EMEPC, a bordo do Almirante Gago Coutinho. Quem estava no Creoula e na caravela Vera Cruz, que transportou cientistas até às Selvagens, também ouviu.

"Professor, do Gago Coutinho preciso de queijo", disse Mónica Albuquerque via rádio.

"Tenho aqui cinco testemunhas que carregaram as bolas de queijo. Não há mais queijo!", respondeu Pinto de Abreu.

"Vou pôr toda a gente à procura do queijo perdido", devolve a bióloga, que voltará ao assunto. "Professor, queremos queijo!"

"Vou telefonar para o Funchal para termos queijo à nossa espera", brinca.

Inglaterra vai jogar com a Eslovénia, e na televisão na sala ao lado da kitchenette na casa dos vigilantes vai poder ver-se o jogo, até porque aqui há painéis solares. Os cadeirões convidam.

Numa estante da sala guardam-se os diários da Selvagem Grande onde os vigilantes registam os pequenos nadas. "Terça-feira, 8 de Junho de 2010: dia dedicado a limpezas na estação, visto que amanhã está prevista a chegada de três embarcações com cientistas e outras pessoas para ficarem cá cerca de 20 dias. Ao fim do dia foi efectuada uma subida ao topo para ver se estava tudo bem e ainda arrancámos alguns pés de Conyza."

Cinco dias depois, a 13 de Junho: "[Na comunicação via rádio com a Selvagem Pequena] ficámos a saber que o [Almirante Gago Coutinho] ia para o Funchal reparar o robô submersível que tinha avariado."

Tinha-se partido a peça que permite determinar a posição do Luso em relação ao navio. Era um percalço menor face ao que viria a acontecer.

Depois do jantar, pelas dez da noite, a equipa das aves volta a subir a encosta para descobrir o que jantaram as cagarras. Na escarpa e no planalto, o sossego do dia deu lugar a uma chinfrineira desde as sete da tarde, quando as cagarras começam a regressar do mar. Fazem voos rasantes e ouvem-se entrecruzados os característicos gritos dos machos "au, au, au, hã".

Com uma lanterna no chapéu, Paulo Catry avança pelo escuro e apanha uma cagarra, que encandeou e que não pára de gritar. "Este, em princípio, é um novo reprodutor que veio do mar", diz Hany Alonso quando o recebe.

João Pedro Pio: "Como sabes que é um novo reprodutor?"

Paulo Catry: "Um macho adulto em reprodução não anda armado em parvo a meio da noite. Tem mais que fazer do que andar nas coboiadas da juventude. Os reprodutores podem dar dois gritos à entrada do ninho e vão lá para dentro."

Sentado no chão, com um tabuleiro e um garrafão de água salgada à frente, Alonso empurra um tubo pela boca da ave. Ana Almeida bombeia a água, até que o bicho vomita no tabuleiro o que parece um pedaço de lula. Com uma pinça, coloca-o num frasco com álcool, enquanto João Pedro Pio toma notas de tudo.

"Pronto, já passou", diz Alonso, enquanto submete outra cagarra ao mesmo procedimento.

Seis cagarras depois, finalmente uma lavagem ao estômago dá um resultado de jeito. "Há ali uma espinha", avisa Ana Almeida. "Olha, talvez carapau, talvez...", diz Alonso, que observa melhor. "É carapau quase de certeza."

Nesta ilha não há sossego? "Não!", atira Ana Almeida. "Há no Inverno. Deve ser uma tristeza", e ri-se.

"Uau, uma lula inteira", diz a bióloga marinha. "A pota-voadora é a espécie que mais aparece na dieta", explica Alonso sobre a lula em questão. "Disseste pota-voadora?! Que espectáculo!", comenta João Pedro Pio.

Doze cagarras depois, os vómitos forçados terminam. "Queremos perceber melhor o ecossistema deste mar profundo e pouco produtivo. Há pouca pesca, só ao atum", explica Catry.

Encosta abaixo à meia-noite, a iluminação do Almirante Cago Coutinho sinaliza que o Luso se encontra em operação. Está a terminar um mergulho a 615 metros, saber-se-ia depois, o quinto ao largo das Selvagens.

Na manhã seguinte, dia da visita já programada de Marcos Perestrello e Humberto Rosa, secretários de Estado da Defesa Nacional e do Ambiente, chega à Selvagem Grande a má notícia. O cabo de ligação do Luso ao navio cortou-se, perto das 11 da noite. O veículo, que já estava a 130 metros de profundidade, voltou ao fundo. Seria montada mais tarde uma operação de resgate (o que já ocorreu com sucesso).

Acto de soberania

Mesmo com este revés, vai começar um frenesim mediático. Ao início da tarde, aproxima-se da ilha das aves um helicóptero militar, que levanta uma nuvem de poeira no planalto onde pousa. Dele desembarcam também os chefes de Estado-Maior da Armada e da Força Aérea, o almirante Fernando Melo Gomes e o general Luís Araújo, e um batalhão de jornalistas. Da ilha seguem de bote para o Creoula, depois para o Almirante Gago Coutinho, há declarações de circunstância, sublinha-se a dimensão da expedição da EMEPC e a cooperação entre muitas instituições científicas, quer dar-se visibilidade política à missão, e ao fim da tarde quase todos os que vieram partem na ave metálica.

Expedição e visitas podem também interpretar-se como um acto de soberania. "Não foi essa a razão por que pensámos ir às Selvagens, mas não podemos dizer que o que estivemos a fazer não teve importância na afirmação da soberania. Teve com certeza", reconhece Pinto de Abreu. Entre os motivos principais da expedição está o M@rbis, acrescenta, que precisava de ser testado no terreno.

Aliás, em Julho de 2008, o El País publicava uma reportagem nas Selvagens, com o título O maior litígio, referindo-se aos cinco séculos de disputa por estes pedaços de terra. Apenas em 1997 Espanha reconheceu a soberania portuguesa, mas o conflito, lembrava o jornal espanhol, mantém-se quanto à delimitação da zona económica exclusiva (ZEE).

Em causa está a natureza das Selvagens. São meros rochedos, incapazes de suportarem habitantes humanos e uma actividade económica, como diz Espanha? Ou são ilhas, como defende Portugal? Como rochedos, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, estabelece que o Estado apenas tem direito às 12 milhas do mar territorial e a uma zona contígua, até às 24 milhas. Como ilhas, o Estado tem por exemplo direito a uma ZEE, que pode chegar às 200 milhas.

A distância entre as Selvagens e as Canárias é de 82 milhas, por isso Portugal defende que a delimitação da ZEE se trace a meio das duas - ou seja, a 40 milhas de cada uma. Esta proposta empurra a ZEE portuguesa cerca de 80 milhas mais a sul do que Espanha quer, refere o El País. Espanha quer que a linha seja traçada entre as Canárias e a Madeira, separadas por cerca de 245 milhas, o que traria a delimitação mais para norte. A pouco mais de 120 milhas da Madeira, que, recorde-se, fica a 163 das Selvagens.

"As Selvagens são ilhas de facto", afirma Pinto de Abreu. "Em determinada altura, eram fonte de alimento para a população da Madeira e havia um comércio associado às cagarras."

Só por motivos de protecção ambiental se acabou com esse comércio e estão habitadas pelos vigilantes, escrevia o jornal espanhol sobre os argumentos portugueses: "No dia em que se decidir povoá-las, poderia desenvolver-se uma actividade económica baseada no turismo ecológico. Se dúvidas restassem, pregaram uma caixa de correio na maior ilha para deixar clara a sua soberania."

Por agora, as Selvagens recebem 500 visitantes por ano, vindos sobretudo nos seus iates, e a ida a terra requer autorização do Serviço do Parque Natural da Madeira.

Afirmação ou não da soberania, na expedição na Selvagem Pequena e na Selvagem Grande os biólogos fizeram 100 mergulhos, houve 25 saídas de campo, apanharam-se mais de 3300 exemplares de fauna e flora,identificaram-se 900 espécies, há outras 700 por triar e uma imensidão de fotografias e vídeos. E, com as visitas governamentais, pôs-se fim a pelo menos um problema imediato. Mónica Albuquerque pediu um favor. As visitas não se esqueceram e trouxeram duas bolas de queijo.

No Ano Internacional da Biodiversidade, vamos publicar quinzenalmente, e até Novembro, reportagens sobre os trabalhos que investigadores portugueses desenvolvem em Portugal e no estrangeiro na conservação da natureza. Os conteúdos são da inteira responsabilidade do P2.A série Biodiversidade é patrocinada pelo Banco Espírito de Santo.
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