Prince magnífico num festival parado no trânsito
Musicalmente, o Super Bock Super Rock encerrou com um concerto deslumbrante de Prince. Extra música, acentuaram-se os problemas logísticos, com filas imensas de trânsito e parques de estacionamento sobrelotados. Um bom cartaz, uma organização a precisar de afinações urgentes. O rescaldo do Super Bock Super Rock no Meco
a Prince já chegara. Com 15 minutos de atraso relativamente à hora programada, que o artista sabe fazer render a ansiedade do público, subiu ao palco à meia-noite de domingo. Deu corpo ao símbolo que víamos no ecrã e não perdeu tempo. Pegou na guitarra como Jimi Hendrix, liderou a New Power Generation como irrepreensível mestre-de-cerimónias funk e, pouco depois, já não tínhamos dúvidas. Entrou a matar, atravessando o passado de 1999, representado por Delirious, pelo tema título do álbum de 1982 e por Little red Corvette, e saltou até ao presente de Guitar, uma das canções de Planet Earth, o seu penúltimo álbum.
Depois daquilo, de vermos um homem que não só concentra em si toda a história da música negra, como a transforma em algo de indiscutivelmente seu (é essa a marca do seu génio), já não tínhamos dúvidas que aquele seria o momento alto do Super Bock Super Rock este ano transferido para o Meco.
Acontece que, a essa hora, ainda entrava público, preso durante as horas anteriores nas intermináveis filas de trânsito que enchiam as poucas estradas de acesso ao recinto. Essa ficará como uma das marcas do festival: ao longo dos três dias, à medida que chegava mais público, a entrada no Super Bock Super Rock tornou-se cada vez mais difícil, culminando numa noite de domingo, a mais concorrida, em que os parques de estacionamento sobrelotaram e muito público, imobilizado nos automóveis, perdeu os concertos que pagara para ver.
Muitos foram obrigados a estacionar a longa distância, percorrendo o caminho na berma da estrada, sem iluminação. Entre quem vinha de Lisboa, houve quem acabasse mesmo por desistir depois de horas parado. Fazer os cinco quilómetros que separam a localidade mais próxima, Alfarim, da Herdade do Cabeço da Flauta, onde teve lugar o festival, chegou a demorar longuíssimas duas horas - no final, a saída dos parques de estacionamento revelar-se-ia igualmente tortuosa.
Juntamente com as incomodativas nuvens de pó e com a exiguidade e falta de organização e iluminação da zona de campismo - queixa que fomos ouvindo ao longo dos dias àqueles com tenda montada no local -, foi esse o grande sinal menos de um Super Bock Super Rock a precisar de afinação logística urgente numa próxima edição naquele mesmo local. O P2 tentou contactar a promotora Música No Coração para um balanço, mas, até ao fecho desta edição, tal não foi possível.
No que à música diz respeito, apresentando aquele que foi provavelmente o melhor cartaz dos festivais de Verão deste ano, pouco há a apontar. Esteve recheado de óptimos momentos. Sexta-feira e sábado, Mayer Hawthorne, Grizzly Bear e Vampire Weekend deram grandes concertos, com destaque maior para os autores de Contra, e os Pet Shop Boys e os Hot Chip, eficientes, contagiaram a multidão. Domingo, destacaram-se os National, que congregaram uma multidão hipnotizada por canções onde o existencialismo dos Tindersticks ganha poder rock"n"roll, onde Matt Berninger transforma as angústias de uma vida normal em matéria poética que o público sorve como se fosse sua aquela catarse, aquele ensombrado turbilhão emotivo. Concerto após concerto, os National, com canções como Afraid of everyone ou About today, duas das interpretadas ontem, mostram ser uma das bandas por quem o público português mostra maior devoção.
Ao mesmo tempo que a banda de High Violet (o seu último álbum) actuava no palco principal, o secundário assistia a um festim irresistível. A veterana Sharon Jones, acompanhada pelos irrepreensíveis Dap Kings, reunia no mesmo corpo a electrizante Tina Turner dos tempos de Ike e o imparável James Brown de todos os tempos e oferecia uma incrível lição soul ao Super Bock Super Rock. Dançou e rastejou pelo palco, cantou como soul woman ora de coração desfeito, ora altiva perante o seu man, e protagonizou um dos grandes momentos do festival - ouvir A child no more ou 100 days 100 nights é como ouvir perante nós o mítico legado da Stax, vivo e sem marcas da passagem do tempo.
Mas claro que, no domingo em que os Spoon também deram um bom concerto e em que se ouviram os Stereophonics ou os Wild Beasts, o melhor, o melhor de todo o festival, estava reservado para mais tarde. Prince, inspiradíssimo, entregou o concerto a um mote, "get funky!", e provou que, em palco, dificilmente encontraremos um performer mais contagiante.
Num concerto de uma hora e meia em formato best of, a estrela - desde há alguns anos Testemunha de Jeová - filtrou toda a sua obra pelo groove da soul e o resultado foi um concentrado libidinoso irresistível: Cream, U got the look e uma magnífica passagem pelo funk sintético de Controversy. Antes dela, tocara a Nothing compares 2 U que Sinead O"Connor celebrizou. E depois, porque Prince tem a pose, os passos de dança e os talentos na guitarra de uma estrela, mas há nele um melómano desejoso de partilhar e celebrar os seus fascínios, ouviu-se a uma versão de Le freak (c"est Chic) que soou perfeita no contexto "get funky!" do concerto.
Minutos depois da primeira saída de palco, a grande surpresa da noite. Regressado com novo fato, branco substituído por casaco amarelo e calças pretas, apresentou-nos um brother, o pianista Renato Neto, e uma sister, Ana Moura. A surpresa não foi a presença da fadista, anunciada antes do início do festival. A surpresa foi ver Prince, cedendo-lhe o protagonismo, a acompanhá-la à guitarra em A sós com a noite e a oferecer trinados eléctricos à Casa da Mariquinhas.
Depois do fado bem "psicadelizado", regressou. Ele sabia o que Portugal queria - foi o que disse - e não teve contemplações. Kiss, o seu falsete mágico e uma subtil alteração de letra ("you don"t have to watch Sex and the City") e uma Purple Rain que pôs pelo menos duas raparigas a chorar nas filas da frente. Com ela houve o momento Igreja-gospel do concerto ("I love you, you love me, we all love God") e com ela abandonou de novo o palco, de guitarra às costas como saltimbanco da pop.
O concerto em que não se cansou de elogiar o país em que estava - coisa habitual nestes contextos, mas que pareceu sincera - terminaria pouco depois. Igreja profana: uma versão festiva, infernizada de Dance (Disco heat) de Sylvester. Depois do segundo encore, o público, electrizado pelo que vira, ainda tinha esperança num novo regresso. Dezenas de milhares em cântico organizado, repetindo uma vez, e outra e outra: "Woooooow! Get funky!" Prince não voltaria, mas não havia lugar a desilusão. A hora e meia anterior fora preenchida com um dos grandes concertos dos últimos anos em palcos portugueses.
Aos 52 anos, sem marcas de envelhecimento (não foi certamente pelo receio de que fossem expostas rugas indesejadas que proibiu o registo fotográfico do concerto), mostrou intacta a vitalidade. Em palco, é ainda um dos mais impressionantes músicos da história da música popular urbana.
Faltava ainda actuar uma banda no palco principal, mas perante aquele que a antecedera, o aparato cénico, as muitas bailarinas, os fatos de personagens de uma versão mangá de He-Man e a pop electrónica dos Empire Of The Sun pareceram ainda mais artifício sem substância do que são realmente. Prince deixara um sorriso em todos, mas algum tempo depois muitos já o tinham perdido, trancados nos carros nas intermináveis filas para sair do estacionamento.
Mário Lopes é crítico de música