No cinema actual (americano, mas para além dele) não deve haver coisa mais estereotipada do que o olhar sobre a infância, sobre as crianças, sobre as relações entre pais e filhos pequenos. Neste panorama, é refrescante encontrar um filme que, como "Vão-me Buscar Alecrim", seja capaz de filmar a história (disfuncional) de um pai divorciado (um "pai solteiro") e dos seus dois filhos desta maneira: caos total, a linha da irresponsabilidade cruzada mais do que uma vez, e no entanto... E no entanto, a relação entre aqueles três exala uma autenticidade sentimental comovente, uma espécie de felicidade acossada menos pelos sucessivos desastres do que pela maneira condenatória como o mundo (os "outros") olha para os desastres. Quer dizer, "Vão-me Buscar Alecrim" é a história de um "pai-herói", mas cuja heroicidade só é (só será, um dia) reconhecida pelos filhos. Toda a gente, todos os adultos, dos professores da escola à mãe das crianças, vê naquele homem apenas um irresponsável eventualmente perigoso; mas aqueles dois miúdos, Sage e Frey, quando crescerem, farão muito provavelmente um filme sobre o pai (que até é projeccionista e lhes mostra filmes, em película e tudo). Assim o fizeram, pelo menos, Joshua e Benny Safdie, dois nova-iorquinos de vinte e poucos anos: "Vão-me Buscar Alecrim" é a autobiográfica homenagem ao pai de ambos.
Podemos acreditar facilmente nesta Manhattan de "hot-dogs" e jardins, apartamentos atravancados, tascas e lojinhas - podemos acreditar que é nesta Manhattan que as pessoas, de facto vivem. Há uma cena em que se evoca directamente aquela célebre foto a preto-e-branco de Weegee com os miúdos a tomarem banho de mangueira na rua (a mesma foto que, no "Padrinho", Coppola também "reconstituiu", e pouco importa que ela tenha sido tirada, salvo erro, em Brooklyn), o que faz todo o sentido porque é a "rua", em sentido lato, que os Safdie querem filmar. E, no entanto, reconhecendo embora a pertinência do enquadramento de "Vão-me Buscar Alecrim" na nobre linhagem do "realismo independente nova-iorquino" (Cassavetes ''et al''), os outros emparceiramentos que o filme dos Safdie nos sugere estão um pouco longe de Manhattan: aquele belo filme do georgiano Otar Iosseliani, "Era uma vez um Melro Cantor", e o seu protagonista, sobre-comprometido como o pai dos Safdie, a lutar contra o tempo e contra o espaço para conseguir estar aonde tem de estar à hora a que tem de estar, o seu voluntarismo e entusiasmo sempre a jogarem contra ele; e, claro, o sítio de onde têm vindo sistematicamente os mais espantosos e "irregulares" retratos da infância e da família, o Irão: reparem na maneira como os Safdie conseguem criar um sentimento de angústia profunda a partir dos mais anódinos acontecimentos domésticos e, num ápice, dar o salto para o acontecimento extraordinário e extraordinariamente angustiante (toda a sequência, semi-absurda, com os miúdos adormecidos por um excesso de sedativos, é "cinema iraniano made in Manhatan", e não o dizemos com nenhuma espécie de provocação).
Longe de Manhattan: o plano final, supra-sumo da melancolia desafectada com que os Safdie filmam esta história, sugere que talvez do outro lado do rio, não muito longe mas suficientemente longe dali, o pai e os dois filhos encontrem o que lhes falta, o tempo e o espaço.