O gosto de viver devagar
“Gosto de viver devagar. De saborear o tempo, o fluir vagaroso do tempo nas pequenas coisas, nos pequenos gestos”, diz. “Houve uma altura da minha vida em que não punha sequer data nas cartas, nos textos que escrevia, como se ele não existisse. Aliás, a época do ter, ter pressa, ter bens, ter poder, vai passar. Tudo cansa. As pessoas vão querer outras coisas, outros valores, vão recuperar o ser. Está a surgir uma espécie de fome do solidário, do espiritual, do humano, do afectivo. As pessoas não aguentam o vazio. O vazio fá-las sentir pobres. Há muita pobreza e muito exibicionismo de riqueza à nossa volta, muita barraca, muito pedinte, muito abandonado.”
Ímpar na dignidade e na discrição, Matilde Rosa Araújo, nascida em Lisboa há 73 anos, tornou-se uma referência na história do ensino e da criação literária infantil deste século.
“O Livro da Tila” e “Cantar da Tila” (crianças), “A Garrena”, “Estado sem Nome” e “Praia Nova” (adultos), “Voz Nua” (poesia) são-lhe, entre outras, obras marcantes.
Formadora de professores e alunos, despertou várias gerações para os valores da modernidade artística e literária (“Presença” , “Orfeu”), da ética, da democracia, da solidariedade, da liberdade.
Sem ilusões nem desilusões excessivas — nos outros e em si, nas ideias e nos sentimentos —, atravessou a vida acrescentando-a, acrescentando-se sempre. Hoje é um grande mulher silenciosa, de olhares, de ironias ondeantes e apaziguadas.
Tem sempre paciência para as pessoas?Tenho. [Ri.] Elas é que podem não ter sempre paciência para mim. Às vezes chegam a ser menos amáveis...
Estão a perder a amabilidade?
Os adultos sim, não as crianças. Talvez por uma questão de defesa, de pouca disponibilidade, de impaciência. Esquecem com facilidade que problemas sempre houve, problemas de toda a ordem, de sentido de vida, de afectividade, de afirmação, de insegurança.
Hoje esses problemas são maiores?
Não sei. As pessoas estão é mais conscientes deles. Isso torna-as interiormente mais vulneráveis, mais crispadas. Sabem mais o que deviam ter e não têm. Não por ambição, mas por sentido de justiça. Hoje há mais consciência das injustiças do que havia no passado.
Apesar de elas serem, no passado, maiores?
Sim. Antes havia nas camadas populares mais conformismo.
Quando pensava no futuro, pensava que era este o futuro que ia ter?
Eu tinha uma ideia de futuro como o de uma época de entendimento, de equilíbrio, de alguma felicidade.
O que era alguma felicidade?
Era as pessoas poderem ser aquilo que são. Aquilo que podem ser, dentro dos seus sonhos, das suas generosidades.
Vê muitos sonhos, muitas generosidades à sua volta?
Vejo, tenho visto mesmo muito altruísmo. Chego a pensar: que sorte tive por ter vivido este tempo, já tão longo, que me coube. Que sorte tive por haver conhecido as pessoas que conheci. Pessoas que sentiram pela vida, e pelos outros, muito, muito amor.
Caso de...
Caso de uma Maria Lamas, de uma Irene Lisboa, de um Agostinho da Silva, de um Gomes Ferreira, de um Ferreira de Castro, de um Assis Esperança, de um Cochofel, de uma Vergínia Lopes de Mendonça, de um Manuel da Fonseca, de um Sidónio Muralha, de um Ruy Cinatti, de tantos, oh, tantos outros!
Solidão, tem?
Todos temos. Precisamos é de aprender a dar golpes de rins para lhe escapar, para a enfrentar. A solidão acompanha-nos pela vida fora, faz parte de nós, tão profundamente que não existe, não existe uma verdadeira solidão...
O contrário também é verdade!
Também. Mas eu nunca me senti muito isolada. Sempre tive o afecto das crianças e dos amigos, e quando se tem afecto o resto torna-se secundário.
As crianças sofrem muito de solidão?
Muito. Há imensas crianças abandonadas, desprezadas...
Por que será que as tratamos tão mal?
Não sei. Somos de costumes brandos para todos menos para elas.
Será por serem um desperdício, por virem sem ser desejadas, por terem o tempo que nós já não temos?
Talvez. Elas não são vistas como seres autónomos. Desde pequeninas que procuramos deformá-las, desde pequeninas que elas ouvem dizer: “Cresce e aparece, já a formiga tem catarro...”
E isso afecta-as?
Pois afecta. É horrível!
Dá muita importância ao passado?
Dou. É o meu património interior. Graças a ele atingi uma certa serenidade. Há mesmo coisas dele que me custaria muito perder...
Por exemplo?
Por exemplo, a nossa língua, a nossa literatura.
Receia pelo seu futuro?
Um pouco. Algumas línguas, algumas literaturas estrangeiras estão a exercer uma influência muito negativa sobre elas. Vamos a ver se resistem. Felizmente que os brasileiros estão a fazer força na sua defesa e na sua expansão.
Nunca se achou vítima, mal amada...?
Não, pelo contrário. Não conservo memória de mágoa de coisa nenhuma. Como se houvesse dentro de mim um mecanismo que o impedisse. Ninguém recebe aquilo que não dá.
Está mais do lado de dar do que do receber, como dizia Agostinho da Silva?
Oh, o nosso Agostinho! Esse sim, esse esteve sempre do lado de dar. Escrever e ensinar são a minha maneira de o fazer. O que é curioso é que quando comecei a ensinar não queria ser professora. Apetecia-me era continuar na faculdade, era tudo tão bom lá, os professores, os colegas, o Mário Soares, a Maria Barroso, a Maria Judite de Carvalho, a Luísa Dacosta, o Sebastião da Gama, o Lindley Cintra, o Urbano, o David, a Lurdes Belchior, o Joel Serrão, a Natércia Rocha, o Eurico Lisboa foram meus colegas. Sou uma espécie de dinossauro de uma geração.
Uma geração de notáveis...
Sim. Foi um tempo muito feliz, esse. Eu estudava por prazer. Quem não se sentiria maravilhado com mestres como Delfim Santos, Hernâni Cidade, Jacinto Prado Coelho, Vitorino Nemésio? Hoje a meta é tirar cursos, ter canudos que garantam empregos.
Já não garantem...
Pois não. Quando acabei Românicas pôs-se-me o problema do que fazer. Colocaram-me então numa escola técnica a dar Geografia Económica. Envergonhada e aflita por não saber nada da matéria, pus-me a estudá-la. Lá reagi. Nunca desisto, nunca tive tendências suicidas.
Nunca?
Não. Tenho muita pena que existam condições que propiciem o suicídio, cargas que o provoquem. É um gesto que respeito, às vezes é uma libertação. Preferia, no entanto, que todos conseguissem amar a vida.
Esteve muito tempo em escolas técnicas?
Eu estive sempre em escolas técnicas, por todo o país. Fui para a província, logo após o estágio, e por lá andei muitos anos, como uma nau Catrineta, de terra em terra, Almada, Barreiro, Elvas, Portalegre, em Portalegre conheci o José Régio, dava aulas no liceu, foi maravilhoso tê-lo encontrado.
Diziam que era uma pessoa um bocado complicada...
Pois diziam. Mas para mim não, para mim foi sempre muito generoso, demo-nos sempre muito bem. Depois do Alentejo fui para o Norte, para o Porto. A seguir ao 25 de Abril colocaram-me na Escola do Magistério Primário de Lisboa a dar aulas de Literatura Infantil aos professores.
Foi uma promoção?
Creio que não. Creio que se tratou apenas de uma mudança surgida na sequência da criação dessa cadeira. Foi a Dulce Rebelo e eu que fizemos o programa da disciplina.
Ah, é devido a si que as pobres das criancinhas têm de gramar as estuchas literárias que lhes dão...
Engana-se redondamente! Redondamente! Elas aceitam muito bem, muitíssimo bem a literatura. Em França, na Espanha, na Inglaterra, passa-se o mesmo. Os livros para as crianças e jovens são, não o esqueçamos, cada vez mais interessantes, mais variados. Alguns professores têm desenvolvido um trabalho de sensibilização para a leitura deveras notável. Trabalho que já vem de trás, que tem raízes profundas. O António Sérgio, o Jaime Cortezão, o Aquilino, a Ana de Castro Osório dedicaram-lhe grande atenção. Sabiam que escrever para crianças não era escrever para leitores menores.
E a Matilde, como começou?
A escrever? Comecei sem dar por isso. O contacto com as pessoas dos locais por onde andava fez-me apetecer ficcionar sobre elas.
Não era duro para uma jovem ser atirada, assim, sem condições, de terra para terra?
Era, era muito duro esse flutuar ora pelas planícies, ora pelas serras, de quarto alugado em quarto alugado...
Gostava de viver em quartos alugados?
Gostei. Eu vinha, porém, muitas vezes a Lisboa, para estar com os meus, conviver com os amigos. Um dos meus pequenos prazeres era andar de eléctrico. O eléctrico é um transporte muito simpático! É estável, é lento, é alegre. Conheci muita gente, ouvi muitas confidências nessas deambulações. Hoje quase não existem. Lisboa perdeu qualidade de vida, está uma cidade agressiva. Mas continuo a gostar dela. Continuo a gostar dos cafés que ainda existem, dos teatros, sempre amei o teatro. Fiz até bastante teatro na faculdade.
Escreveu?
Não, não, representei. Representei inclusive no Parque Mayer...
Andou a dar à perna no Parque Mayer?!
Ah, ah! Foi uma revista que fizemos lá. Era uma alegria. Representámos Molière, Torga, o David Mourão Ferreira também entrava. Essas experiências foram muito enriquecedoras. Se as não tivesse vivido, talvez não me tivesse encontrado. Nem escrito. Um dia dei comigo a redigir poemas. Fiquei surpresa. Quando vim a Lisboa, mostrei-os à Maria Lúcia Namorado, que dirigia então a revista “Os Nossos Filhos”. Ela publicou-os em livro, com a chancela da revista, ilustrados por crianças. O Calvet de Magalhães, o professor, ajudou no grafismo. Mais tarde, o Lopes Graça musicou os versos. Gostei muito dessa experiência, deu-me uma grande alegria. Deu-me também uma grande alegria a tese que fiz sobre jornalismo. Lamentavelmente perdi-a. Deve haver um exemplar na Biblioteca Nacional. Comecei pelo Fernão Mendes Pinto, pelo Fernão Lopes, por esses grandes cronistas repórteres. Fi-la com muito entusiasmo. Aliás, o jornalismo interessou-me primeiro que a literatura infantil. Colaborei muito em jornais e revistas.
E já não colabora?
Não. A imprensa tinha um papel muito importante a cumprir. Não devia limitar-se a ser, como sucede actualmente, um mero reflexo do que acontece. Devia ir mais longe, mais fundo, ser mais rica, sobretudo a televisão, para valorizar o público. Público infantil e não infantil. Ninguém vive separado do meio que o rodeia. Ninguém vive longe das palavras, dos gestos, das pressas, da poluição, da violência que existem à sua volta. Como não vive, acaba por confundir, às vezes de forma trágica, a realidade e a ficção. Com as crianças passa-se muito isso, não por menoridade, mas por excesso de imaginação. Por necessidade de sonho, de poesia. A poesia é muito necessária à criança, está-lhe muito presente. Ela tem uma linguagem muito poética, diz coisas maravilhosas sem ter consciência de que as diz.
O regime, a censura, a polícia, essas coisas todas não lhe saíram ao caminho?
Directamente, não. Eu fui sempre dizendo o que sentia de uma maneira honesta, suave, não agressiva. Por outro lado, a literatura infantil era pouco considerada, pouco importante para o poder. Houve sempre, continua a haver, preconceitos em relação a ela. O horrível surgiu quando a PIDE assaltou e fechou a Sociedade Portuguesa de Escritores, a cuja direcção eu pertencia, por termos dado o prémio ao Luandino Vieira. Estragaram a sede que tínhamos na Rua da Escola Politécnica.
Fazia militância política?
Militância política? Prefiro chamar-lhe participação política. Não possuía resistência para ir além disso...
Para ir além disso é preciso ter ressentimento?
Não necessariamente. Sou, aliás, incapaz de guardar ressentimentos.
Quer dizer que se o Salazar a convidasse para tomar chá...
Tomar chá?! Não ia!
Não ia? Mas diz-se que ele era uma pessoa encantadora...
Ah, ah! Não ia. Achava que ele se tinha enganado. Dizia-lho e não ia.
Dizia?
Dizia. Tinha a lealdade de lho dizer.
Dá-se bem com políticos?
Se são amigos pessoais, dou.
Mas não é uma entusiástica do poder...
Não, não sou. Nunca quis o poder. Nem dentro dos meus pequenos círculos. Já dá tanto trabalho mandarmos em nós próprios, quanto mais nos outros.
Por que se fartou da província?
Não fartei nada, que ideia! Efectivei-me e fui mandada para Lisboa. Eu era mandada, era um soldado...
Ora, com o prestígio que tinha facilmente arranjava cunhas para a colocarem onde quisesse.
Não é verdade. Eu não podia interferir nessas decisões.
Nunca teve alunos que se rebelaram contra si?
Contra mim? Não dei por isso!
Continua a ir todos os dias à escola?
Não. Agora vou só duas vezes por semana. Dou aulas a professores e educadores no Jardim-Escola João de Deus. Aulas de Literatura para a Infância e Juventude. Vou também muito a outras escolas falar de literatura, faço conferências, colóquios, essas coisas.
Os alunos gostam?
Gostam. As pessoas de uma maneira geral, e ao contrário do que se diz, gostam de ler, gostam de livros, gostam de conversar sobre livros.
A ideia de que se lê menos não corresponde, então, à verdade?
Corresponde só até certo ponto. Desde que sejam motivadas, as pessoas lêem. A leitura é uma troca de afectos... eu comecei a ler desde muito nova. A ler tudo. E compreendia tudo. Sempre tive, aliás, sensação de ser mais velha do que era. Mesmo em pequena. Às vezes fico com a sensação de que nunca fui criança. De não ter memória de criança.
Não foi feliz em criança?
Fui, fui até muito feliz. Mas tive sempre a ideia de ter esta idade. Talvez por isso encarei, desde jovem, o envelhecimento com serenidade, como um percurso a fazer amenamente. Desejava era não perder faculdades, estar plenamente viva enquanto viva. O trágico é que nós não somos preparados, não nos preparamos para essa caminhada. Pelo contrário, fugimos dela, recusamo-la, enaltecemos pateticamente o efémero...
A moda, a publicidade são terríveis nisso...
Pois são. Criam muito medo, muita violência nas pessoas. Medo delas próprias e dos outros. De que os outros não as aceitem.
E aceitam?
Por vezes não. O julgamento dos outros é, sob esse aspecto, cruel, muitíssimo cruel. Preocupei-me sempre em abordar o fenómeno do envelhecimento nos meus livros. As crianças precisam de o encarar com naturalidade, precisam de não ter receio do tempo. E à partida não têm. Veja-se a relação privilegiada que existe entre as crianças e os avós. É preciso preservá-la, recuperá-la. O prof. João dos Santos dizia que o homem é a sua infância. Foi ele, aliás, que inspirou a criação do Instituto de Apoio à Criança, presidido pela Manuela Eanes, onde se desenvolve um trabalho muito sério. Eu própria colaborei no seu lançamento. É uma pena não se poder fazer mais neste campo.
As crianças não votam...
Pois não. Só de dedinho no ar! Também se votassem já não eram crianças. Mas olhe que elas sabem bem o que querem.
São manhosas, não?
Ah, ah! Algumas são bem manhosas, de facto. São tão engraçadas com os seus subterfúgios. Com as suas argúcias, os seus mistérios. No outro dia, a neta da Maria Alberta Menéres disse-nos: “A vida está mal feita. Devia ser ao contrário. As pessoas deviam nascer velhinhas, muito velhinhas, depois ficavam novas, cada vez mais novas até que se metiam outra vez na barriga das mães.” Não é tão bonito?
Gostava que fosse assim?
Penso que não. Se fosse assim, já sabíamos tudo à partida, não fazia sentido viver. Era como ver um filme ao contrário, ler um livro do fim para o princípio. É tudo tão complicado, tão contraditório. Daí que seja cada vez mais necessário encontrar o outro lado, o lado bom das coisas, das pessoas.
Para não desanimar?
Sim. Desde cedo aprendi a não desanimar, a contar comigo, a ir andando, a não fugir, apesar das fraquezas todas.
Tem crenças religiosas?
É difícil responder. Há uma coisa de que estou certa: tenho uma religiosidade da vida. Tenho um desejo profundo de que haja algum sentido nela. Por isso admiro muito os que têm certezas e lutam por elas, com fidelidade, com honestidade.
Em qualquer campo?
Sim, em qualquer campo. Queria muito acreditar que a vida evolui, que não é em vão que as coisas sucedem, que não foi em vão que vi, que vivi tanta coisa. Que sofremos todos tanta coisa.