O criado
O Criado/The Servant (1963) é considerado um filme sobre a "luta de classes". Não discordo dessa definição, mas acho mais proveitoso descrever a obra de Losey, em linguagem igualmente marxista, como um estudo da "exploração do homem pelo homem". É verdade que existe diferença de classes, até luta, e que a classe alta não sai bem do retrato; mas o criado é uma figura muito atípica enquanto representante da classe baixa, com os seus gostos refinados e o seu maquiavelismo aristocrático, e é francamente uma personagem demoníaca, bem longe da exaltação maniqueísta que algum marxismo faz dos "trabalhadores".
Joseph Losey, é claro, tinha simpatias comunistas, e fugiu dos Estados Unidos em plena histeria mccartista. Encontrou em Inglaterra a sociedade ocidental mais socialmente estratificada, e vários dos seus filmes dissecam esse estado de coisas. Mas não fez panfletos: optou por autópsias subtis e perversas, nomeadamente aquelas em que trabalhou com um dramaturgo emergente e notável: Harold Pinter.
O Criado é uma adaptação de uma novela de Robin Maugham (sobrinho de Somerset Maugham). Nunca li o livro, mas quem o leu diz que se trata de uma obra mais bem comportada, mais moralista, mais chocada com a "inversão de papéis" que está no centro do enredo. Porque O Criado é sobre um patrão que se torna criado e um criado que se torna patrão. Há aliás um espelho oval que aparece várias vezes e que dá conta dessa inversão.
Não é um tema novo. Desde a Idade Média que se permitia, em registo lúdico, essa troca temporária, carnavalesca, mas com a noção de que tudo voltava ao normal num ápice. Depois, a situação foi-se alterando, e sobretudo depois do marxismo tivemos exemplos maiores como As Criadas (1947) de Genet, onde a troca de posições já é malsã, permanente, homicida.
A primeira vez que vemos o criado, logo na cena inicial, não diríamos que se trata de um criado. Está bem vestido, hirto, confiante, de chapéu de coco, sobretudo e guarda-chuva, há nele determinação e um esgar superior. Quando entra em casa do futuro patrão, Losey filma o criado de pé, dominador, e o patrão esparramado numa cadeira de praia, um jovem louro, bem-parecido, boémio, ocioso, posh. A distribuição de papéis fica decidida numa negociação laboral que contém uma surda tensão sexual. O patrão (James Fox) é tratado por sir, enquanto o criado (Dirk Bogarde) é um servant, ou melhor, manservant, um mordomo, um valido, uma função arcaica em 1963. O patrão é apatetado, e o criado composto, contido, sisudo. Quanto às suas atribuições, o solteirão endinheirado pede ao criado que "trate de tudo".
E o criado faz tudo o que lhe pedem. Traz o almoço numa bandeja reluzente, limpa o pó, escova os fatos, lava a loiça, trata dos resfriados do patrão com uma bacia de água quente. Mas, como se considera um homem de bom gosto, faz mais que isso. Muda a decoração de casa, usa luvas brancas, tira os objectos de um sítio para o outro, escolhe os vinhos e discorre sobre as castas. Ou seja, torna-se "insubstituível", embora extravase as suas funções e quebre um certo decoro.
Quem não acha graça ao figurão é a namorada do patrão (Wendy Craig), uma rapariga meio frígida que não suporta ver Barrett, o criado, sempre atrás da porta, sempre a interromper cenas íntimas, sempre a opinar. Um dos momentos mais importantes do filme é quando a namorada do patrão, Susan, se apercebe de que quem manda ali é o criado. O que fazer?
O passo seguinte do maquiavélico Barrett é trazer Vera, a sua noiva e cúmplice, uma rapariguinha com ar de ingénua promíscua, como criada de dentro. Ele apresenta-a como sua irmã. Ela está incumbida de seduzir o patrão. A deliciosa Sarah Miles faz isso facilmente, com os seus olhos líquidos e boca apetecível, as suas blusas apertadas, as saias subidas que são o grande fetiche deste filme. O patrão, que não faz nada e não tem vontade própria, cai rapidamente nos braços da criada.
A partir daqui, dá-se a reviravolta. Susan ainda tenta humilhar Barrett, e pergunta-lhe: "What do you want from this house?" Barrett, cujo desprezo por Susan é evidente, responde, falsamente submisso: "I"m the servant, Miss." Mas depois o criado e a criada são apanhados nos aposentos do patrão, seminus, numa cena magistral, toda feita de sombras e contrastes, fotografada pelo grande Douglas Slocombe.
Um filme convencional acabava aqui. Mas Pinter, no auge da sua carreira, depois de The Collection (1961) e The Lover (1962), entrega-se com verve às relações de poder. Barrett, expulso, é mais tarde readmitido, porque o patrão sente falta dele. Mas volta em igualdade de circunstâncias, em igualdade social, como se fossem companheiros de casa, é agressivo, malcriado, embora diga que os dois são como "velhos amigos". Jogam às escondidas, às cartas, à bola. Certas conversas, como uma recordação dos tempos da tropa, são Pinter vintage: um ambiente homossexual entre dois homens aparentemente heterossexuais. "Não arranjas melhor do que eu", diz o criado.
O criando vence, manda na casa, enche-a de uma fauna discutível, enquanto o patrão se torna um farrapo humano, está quase sempre no chão, grotesco, a ouvir um disco romântico. É a degradação total. Quando o criado e o patrão brincam, atirando uma bola um ao outro, é o patrão quem está no cima das escadas, e o criado em baixo, como na sociedade classista. Mas o criado está seguro, orgulhoso. E o patrão tem que se baixar, tem que dobrar a espinha, tem que se tornar um invertebrado.