O objectivo principal desta entrevista era descobrir as diferenças entre as ilhas do norte da Escócia e a Madeira. As primeiras pertencem ao mistério de "Inverness", o 27º livro de Ana Teresa Pereira. A segunda é a ilha onde nasceu e trabalha. Enviámos-lhe uma lista de perguntas e recebemos um texto meio hipnótico, meio fascinante. A entrevista que se segue é um exercício de montagem. "Inverness" é um objecto de sedução que leva o leitor à perdição (isto é, a apaixonar-se sem razão aparente): uma actriz (Kate) interpreta o papel da mulher desaparecida de um escritor (Clive), para que este termine o seu livro. No processo, a actriz desaparece e entramos na bruma (ou no nevoeiro), atmosfera de policiais, contos de fada e também de loucura: "todas as frases se tornam misteriosas. Todas as palavras se tornam estranhas. De certa forma, é uma língua desconhecida", explica, sem explicar, a autora. Expliquemos nós: o mistério é a própria construção do livro. O escritor dentro do livro, a mulher deste e a actriz que faz de conta ser ela, confundem-se, e todos buscam algo, de que são dependentes. E enquanto as personagens se dissolvem no corpo do texto, a leitura materializa a experiência do fascínio. Ana Teresa Pereira diz que para escrever um livro é capaz de usar uma pessoa. O leitor arrisca desgraçar-se nesta escrita-fatal.
Há uma loucura partilhada - ou que transita - entre as quatro personagens de "Inverness", ao ponto das suas identidades se confundirem (nomeadamente entre Clive, Jenny e Kate). Qual é a relação de Ana Teresa com o outro lado, ou seja, com a loucura?
Interessa-me a alucinação. Todos nós criamos a nossa realidade. Algumas das minhas personagens levam isso ao extremo. Talvez estejam a enlouquecer, mas essa é a sua realidade. E torna-se interessante ter duas personagens com versões da realidade (histórias) que se excluem mutuamente. Uma delas está a alucinar, mas não sabemos qual.
E quanto às personagens? Pode estabelecer a sua genealogia?
Há uns dois ou três anos, escrevi os primeiros capítulos de um livro que se chamava "Inverness". Começava num teatro. E a ideia central estava logo nas primeiras linhas: não há diferença entre escrever e representar. Algum tempo depois, numa entrevista de Orson Welles, encontrei a mesma ideia: o escritor, como o actor, deve entrar na pele da personagem e criar a suspensão da incredulidade.
A certa altura interessei-me muito pela personagem de Sherlock Holmes e os actores que o interpretaram. Jeremy Brett era um "becomer". Um actor que se transforma na sua personagem.
Só há alguns meses a nova versão de "Inverness" começou a tomar forma. A história de uma actriz que toma o lugar de outra mulher e se transforma nela.
As personagens. Nunca sabemos de onde elas vêem. Kate e Clive surgiram pela primeira vez em "O Mar de Gelo" [2005]. Kate voltou em "Quando Atravessares o Rio" [2007]. De certa forma não são personagens mas actores que representam diferentes papéis.
E com o teatro?
O teatro para mim é o teatro de Londres. Os teatros de Londres. As minhas personagens vão ao teatro como vão à igreja de St Martin-in-the-Fields assistir a um concerto à luz das velas. São lugares onde se entra religiosamente, lugares onde pode acontecer uma epifania.
A Ana Teresa consegue traçar uma linha de demarcação entre a sua identidade, e aspectos dela que possam passar para as suas personagens?
Acho que não faz sentido separar os livros da vida, e também não faz sentido separar as minhas personagens de mim própria.
Quando Kate diz "A primeira casa de que me lembro ficava no extremo de uma povoação. Não tinha jardim, nem sequer um muro. E o vento era constante", trata-se de uma recordação de um lugar por si conhecido?
A primeira casa de que Kate se recorda. Um quadro que vi em Amesterdão. Não me lembro do pintor, Redon, talvez, mas eu já conhecia aquela rua, aquelas casas.
"Hoje, amanhã ou dentro de uma semana, é igual para um habitante das ilhas." O tempo também é assim, cerradamente circular, no Funchal?
A observação sobre o tempo, vem de um filme de Michael Powell e Emeric Pressburger: "I Know Where I'm Going".
"A menina que acompanhava o pai de uma ilha para a outra, essa sabia quem era. A adolescente que estudava em Inverness e tinha grandes planos, essa também sabia quem era.". É capaz de reformular estas duas frases, trocando "Inverness" pelo Funchal, e Kate por Ana Teresa?
O meu pai era médico, não professor. Mas foi ele que me ensinou a ler. Foi ele que me comprou os primeiros livros. Ainda me lembro da altura em que comecei a explorar a sua estante de policiais.
Até que ponto é que transpôs recordações da sua infância para a sua obra?
Nasci numa ilha, cresci numa ilha. Há imagens que fazem parte de mim: a neve a cair no Pico do Areeiro, a estrada velha do Seixal num dia de tempestade, o Paul da Serra coberto por um lençol de água; o Paul do Mar que até há alguns anos era um lugar solitário, "the edge of the world". O jardim da Quinta do Palheiro, onde se passam tantas das minhas histórias.
Mas também cresci numa casa onde havia gatos e livros, sobretudo livros ingleses. Há imagens de livros que são tão fortes como as outras: a rapariga que se perde de noite nas ruas cheias de nevoeiro e encontra uma loja aberta; a casa junto à charneca e as quatro crianças que brincam no jardim e cantam "Mulberry Bush". Eu podia passar o resto da vida a escrever a partir dessas duas imagens.
"Era como se sempre tivesse vivido no meio da chuva, do vento forte que empurrava os corpos, dos gritos dos pássaros, das ondas que batiam contra as rochas. Uma pequena ilha que ficava isolada quando o mar estava muito agitado". Se tivesse que fazer uma cena filmada deste parágrafo que ilha escolheria como cenário?
As ilhas de "Inverness" vêem dos filmes de Michael Powell, em particular "The Edge of the World". De fotos. De "A Aventura no Mar" de Enid Blyton.
As campainhas brancas e azuis, as flores do viburno, as folhas de gunera, as ervilhas-de-cheiro, as plantas de nigela, os fetos aquáticos, os corações flutuantes, a merugem da água; elodea canadensis, utricularia vulgaris, myriophyllum verticalatum, são algumas das plantas citadas em "Inverness". Podem encontrar-se na Madeira?
As plantas são as dos campos ingleses. Quando escrevi o romance anterior, "O Verão Selvagem dos Teus Olhos", fiz inúmeras perguntas a um amigo meu, um botânico, porque queria criar um jardim possível. Queria saber se uma planta podia crescer ao lado de outra, ou se precisavam de terrenos muito diferentes, se uma planta podia crescer perto do mar. Aquele jardim é o de Manderley mas é também um pouco meu. Tal como Rebecca, sendo a personagem de Daphne du Maurier, tem as minhas marcas. O centro da história, o confronto entre o anjo caído e o anjo bom, estava em "Rebecca", eu só o trouxe mais para a superfície.
Quando já tinha escrito a primeira versão de "Inverness", senti que a segunda parte do livro precisava de "detalhes". Afinal, Deus (e o diabo) está nos detalhes. Tinha de conhecer a casa, tinha de "ver" a casa, tinha de ver o jardim, para compreender Jenny. E foi depois de encontrar a casa e o jardim que Jenny ganhou vida, na verdade ganhou tanta força que quase fez desaparecer as outras personagens.
No capítulo 20 escreve que Jenny "era suficientemente forte para manter aquela situação [ter dois amantes] mesmo que eles não o quisessem. Ela continuava a controlar o mundo que criara." Clive, o escritor, diz por seu lado: "já não consigo controlar o mundo que criei". Qual é a sua opção?
Não acredito que as personagens se possam tornar autónomas. O escritor tem de controlar o mundo que criou.
Escrever, como ler, deve ser uma experiência muito forte. Viver com o livro durante meses ou anos, tomar apontamentos. E um dia sentar-se à secretária e começar a escrevê-lo a partir de um bloco de notas. Quatro ou cinco dias a escrever, sem reler nada. E o livro está todo naquela primeira versão. Depois é preciso continuar a trabalhá-lo, mas ele já existe.
Eu acredito que há um inconsciente do livro. A partir de certa altura começo a senti-lo. Uma frase que surge inesperadamente. Um gesto que ganha um novo sentido. Existe algo lá no fundo que por vezes vem até à superfície.
E então todas as frases se tornam misteriosas. Todas as palavras se tornam estranhas.
De certa forma, é uma língua desconhecida.
E apaixono-me profundamente pelo livro.
E depois, na altura de rever, o desencanto, as frases transformam-se em frases, e as palavras em palavras, e as imperfeições tornam-se bem visíveis.
Mas depois, quando o livro está terminado, o que fica é o vazio, e sinto a falta das personagens, e da casa, e do colar, e compreendo que não gosto muito de mim mesma. Kate a sair do teatro vazio. Kate que venderia a alma ao diabo para trabalhar de novo.
Pode partilhar um pouco do seu dia-a-dia, na Madeira, a sua forma de trabalhar?
A minha forma de trabalhar é cada vez mais cinematográfica. Não só escolher actores para representarem os papéis, mas escolher o guarda-roupa. Criar os cenários. Estes livros são os meus filmes, as minhas peças de teatro. E posso trabalhar com Jeremy Irons e Gabriel Byrne e Keira Knightley...
À minha volta tenho os meus livros, os meus quadros, os meus ícones, e uma primeira edição de bolso de uma novela de Truman Capote, e um policial de uma biblioteca itinerante da Escócia, e a caixinha de música... e a minha cadela dorme aos meus pés.
Às vezes leio os manuscritos num jardim.
Primeiro escolher os actores, reunir algumas fotografias deles. As fotos de Keira Knightley, o chapéu azul, o vestido de noite verde. As capas dos livros de Clive, a primeira edição de uma novela de Truman Capote, uma velha edição de um policial de William Irish.
Escolher a música: a banda sonora de "La Double Vie de Véronique".
Escolher o perfume da personagem. Das duas personagens.
E o colar celta de Kate, o meu colar.
E, como Clive, ser o escritor e a personagem, ser aquele que move as marionetas e uma marioneta, e às vezes quase ver os fios.
O pacto do escritor Clive com a actriz Kate é tremendo. Ela deve representar o papel de Jenny (a mulher desaparecida de Clive) para o livro ser acabado. Conseguiria trabalhar numa situação semelhante?
Tal como Clive, eu sou capaz de qualquer coisa pelos meus livros.
Se um escritor está em total sintonia com o livro, esse é quase um estado de consciência alterada. E o que é mais estranho é que o escritor pode forçar a realidade. Pode invocar as suas personagens (e foi num teatro de Londres que uma das minhas personagens se veio sentar ao meu lado). Pode entrar numa livraria numa cidade desconhecida e encontrar o livro ou a gravura de que precisava. Entrar numa galeria e encontrar o quadro certo. Entrar numa loja de ícones, atravessar uma ponte, ver um gato num barco e sentir que aquilo faz parte do livro.
Sou capaz de usar uma pessoa. O escritor de "Intimações de Morte" é inspirado num escritor real, e lembro-me de que usei frases dele e fragmentos das suas cartas.
E sou capaz de tudo para defender o livro que estou a escrever do mundo exterior.
Mas depois Clive fica perplexo por Kate encarnar Jenny. Como se Jenny já não existisse. A charada entre recordar e imaginar gera então o medo em Kate "como nunca sentira antes na vida". De onde vem esse medo? Que vida está em perigo?
O medo de Jenny vem de uma recordação ou daquilo que ela imagina... não posso responder a isso. Robert Mitchum a dizer a Teresa Wright: "Imagining? Remembering..." O filme chama-se "Pursued" [Raoul Walsh, 1947]. Os dois actores fizeram outro filme juntos, "Track of the Cat" [William A. Wellman, 1954]. Lembro-me de uma frase igualmente enigmática: "A pantera negra é o mundo".
Que lugar é o de Owl Cottage, a casa onde Kate encarna Jenny?
Owl Cottage é uma casa de campo num vídeo de jardinagem... Se o romance anterior me fez mergulhar nos livros de botânica, para "Inverness" tive de aprender algumas coisas de jardinagem, e plantar ervilhas de cheiro e narcisos... E para o livro que estou a escrever tenho de voltar à Irlanda e aprender gaélico...