Fernando Meirelles Realizador brasileiro Uma verdade rara no cinemaOs dois Saramagos que conheci

a Não li todos os livros de José Saramago mas li muitos deles. Mesmo assim, por ser apenas um leitor comum, não me sinto preparado para fazer considerações sobre sua obra, me restando apenas escrever brevemente sobre o homem que conheci e admiro.

Tive a felicidade de conviver um pouco com o José e com sua extraordinária mulher, Pilar, em função da adaptação que fiz para o cinema de seu Ensaio Sobre a Cegueira. Em encontros em Lisboa, Madrid ou São Paulo, tivemos um contacto rápido mas muito afetuoso. Apesar disso, acho que realmente só vim a conhecê-lo mesmo ao assistir o documentário José & Pilar, que o documentarista Miguel Mendes está terminando de montar e do qual tenho o orgulho de ser um dos co-produtores.

O Miguel acompanhou o casal em suas casas de Lanzarote e de Lisboa e em suas viagens pelo mundo. Como foram três anos de gravações, conforme contou o próprio José, num momento a câmera deixou de ser uma intromissão e passou a fazer parte de suas vidas e o Miguel se tornou uma pessoa da família. Por causa desta transparência adquirida, esta câmera foi capaz de revelar uma intimidade e uma verdade rara no cinema nos permitindo ver um lado escondido atrás da expressão quase sempre séria deste homem, sua generosidade, sua ternura e também seu afiadíssimo senso de humor.

José & Pilar é uma comovente história de amor entre uma mulher mais jovem e um homem de oitenta e cinco anos que sabe que a porta de saída está se aproximando e tem pena de morrer. Em muitos momentos, Saramago reflete sobre o dia em que não mais estaria aqui, fala sobre isso com certa tristeza mas com tranquilidade. Ele combatia as religiões e não via nenhuma possibilidade de outras vidas além desta que chegava ao fim. Por esta postura poderia ter-se tornado um cínico, mas pelo contrário, sem os filtros da fé enxergava a vida de forma objetiva e lúcida e esta postura deu-lhe a dimensão exata do valor da vida. Impressiona ver como ele se agarra a seu trabalho como se imaginasse que através de cada leitor pudesse estender um pouco sua permanência aqui. Mas isso ele não faz por vaidade, é com tranquilidade que ele nos lembra que um dia toda a sua obra será esquecida, e completa,Os Lusíadas também desaparecerão, assim como a humanidade e qualquer rastro de memória de que houve um dia este pequeno planeta perdido no universo.

José Saramago, 1966. Arquivo Fundação José Saramago

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